quinta-feira, 3 de setembro de 2009

UAIKI - o amigo da vida


O poder humano de criar a chamada “civilização” equivale, hoje, ao seu poder de violação da natureza. Numa civilização que chegará, na metade desse século, a 9 bilhões de pessoas, não é mais possível pensar a “casa” humana só no espaço circunstancial da cidade. O impacto da existência e a medida do poder desses seres se alastram e, talvez nós tenhamos que rever a nossa relação com o planeta, recalcular a força de nossa interferência e o efeito do nosso comportamento. Enfim: REPENSAR O ETHOS!

A palavra grega ETHOS está ligada à vida na POLIS (cidade), lugar das tradições, valores, místicas e religiosidade. Ethos liga-se à morada humana, e a sua compreensão mais profunda remete à condição do homem como co-habitante de um mesmo lugar, onde partilha a vida com outros seres humanos e, numa versão mais atual, com os outros seres vivos. Portanto, quem quiser entender a condição humana deve sempre se perguntar sobre o ETHOS que a origina e que a circunda.

Pensemos a morada, não necessariamente como a casa de paredes, o edifício, a vivenda, mas o ETHOS, que e a tradução dos princípios fundamentais que regem a organização da vida dentro dela. A casa compreende todas as relações que os habitantes desse lugar estabelecem, seja consigo mesmos, com os outros humanos, com os outros seres vivos, com o mundo que os cerca e até com os Deuses que cultuam. Assim, cada casa tem uma forma própria de viver o ethos, como construção histórica de um destino próprio que dá o seu caráter, o modo como cada um vê o mundo, os valores que possui, ou ainda as normas que cria a partir dessa forma de organizar a vida.

Ethos é o jeito como nós vemos a casa a partir de dentro – o lugar existencial, o nosso modo de ser e de exercer a nossa humanidade, a nossa essência enquanto seres humanos. A isso denominamos ÉTICA.

O ethos, além de ser a casa vista de seu interior, é também o modo como os moradores nela se comportam. Ele emerge do ambiente cultural de determinado grupo em certo período da história. E a isso que Heráclito, no século V a.C., chamou de ETHOS ANTHROPO DAIMON – que, numa tradução mais solta, significa: “A habitação do homem está nos deuses!”.



Daimon denota, aqui, simplesmente o destino pessoal do homem, o qual é determinado pelo seu próprio caráter e não por poderes externos que atuam sobre os indivíduos. Heidegger afirma que o enigma da frase heraclítica afirma que o que faz o ser humano ser o que ele é são os Deuses que ele escolhe para morar embaixo do mesmo teto, para co-habitar. Dessa forma, Daimon é a voz interior do ser humano, proveniente de um poder superior. Concluímos, então, que a frase de Heráclito nada mais é do que uma contravenção ao sentido da ética oferecido pelos filósofos sistemáticos, os quais, numa tradição contrária, tentaram negar o Daimon (a voz interior, o lado dos quereres, dos instintos, da vontade, do amor, das pulsões...) como algo perigoso demais, com o intuito de afirmar uma voz exterior baseada na racionalidade, tida como força constituinte capaz de anular e/ou controlar o Daimon.

Mas perante a atual crise ecológica provocada pelo processo de “civilização”, parece ser preciso resgatar o Daimon e reintegrá-lo ao sentido da ética. É preciso reinterpretar a ética a partir de uma visão integradora do ser, como o lugar donde deriva todo o mundo simbólico, mítico, religioso e sacramental da própria vida, entendida não como uma linha divisória, mas como uma instância aproximadora dos seres, círculos celebrativos da existência cósmica. Esse tipo de ética está na raiz da condição humana e precede qualquer elaboração racional de regulamentos, padrões ou normas morais.

Essa compreensão de ética parte da fé no ser humano. Faz acreditar que a essência humana se traduz em noções como cuidado, amor, procura, pertença, integração, interconectividade, afeto, ternura... Esses são os valores hoje evocados diante da maior crise que a humanidade talvez tenha vivido: a crise de sua própria essência, a crise de sua própria existência! As notícias de catástrofes e flagelos, calamidades e desgraças, ainda que explicadas como “naturais”, evocam a responsabilidade do ser humano na sua produção. São resultado da ação destrutiva desse ser que negou a essência de cuidado e apostou na racionalidade enquanto tentativa de domínio tecnocientífico do mundo. Torna-se urgente resgatar o Daimon porque é ele que nos possibilitará ouvir a voz de Pachamama, a Terra viva. Resgatar o Daimon nosso e o da própria Terra é uma forma de ressacralizar a natureza e re-humanizar o homem, antes que seja tarde demais.

Essa nova ética aponta para mudanças nas normas de comportamento, uma vez que os padrões atuais estão levando a morada à bancarrota. É preciso que nos sintamos de novo uma “parte”, protegendo e restaurando, dando chance para que a casa se regenere em vista da garantia dos direitos humanos, dos direitos da Terra e do bem-estar de toda a comunidade viva.

Não nos serve mais uma ética antropocêntrica. A ética passa, sobretudo, pela reverência a todas as formas de vida e pela compreensão do ser humano como partícipe dessa aventura. Ela exige a consideração sobre os interesses da natureza no jogo da vida, não apenas os interesses propriamente humanos. Isso significa procurar n ao só o bem humano, mas também o bem das coisas extra-humanas. Revestir, enfim, de dignidade aquilo que a tecnociência despiu de sacralidade. Aprender que o bem do ser humano se encontra dependente do bem dos outros seres e da natureza como um todo.

O desafio é repensar o lugar do ser humano no seio da vida, e não transformá-lo num indesejado alienígena dentro da natureza. A vida humana continua sendo o critério ético fundamental, mas é preciso reconhecer que ela não existe isoladamente, e mais: que ela se inter-relaciona com todas as outras formas de vida no planeta. O ambiente só faz sentido a partir dos agentes que nele vivem e nele se integram, todos aconchegados no ventre silencioso de Pachamama, cuidados e abraçados.

Baseado no texto de Jelson Oliveira e Wilton Borges

Nenhum comentário:

Postar um comentário