quinta-feira, 29 de abril de 2010

AUTÊNTICOS EM 1500, HOJE OU EM 2154?

É comum jornais, filmes e comerciais de TV suporem que os índios são (ou deveriam ser) iguais àqueles descritos pelos primeiros cronistas, inteiramente exteriores ao universo ocidental. Nessa representação, o tempo transcorreu de modo absolutamente diverso para “brancos” e “índios”. Uns, os não indígenas, estão situados na História e se caracterizam pela variabilidade, mudança e complexidade. Os outros, os indígenas, são como estátuas de pedra, que apenas podem apresentar-se como idênticas ao que antes (supostamente) eram.

Recusar ao índio a História e o exercício da própria voz, imaginando-o apenas antes da chegada dos brancos, é um expediente útil para silenciar sobre o violento processo de colonização, propiciando uma autoanistia aos colonizadores. É essa categoria redonda, inteiramente infensa à História, plena de seduções e lisa de culpas, que o senso comum repete e consagra incessantemente. Em estudos anteriores, eu apontei um artifício narrativo que chamei de “o efeito túnel do tempo”. O artifício garantia a qualquer não índio, como em um passe de mágica, uma flagrante superioridade em relação a qualquer indígena. É também com base nisso que a tutela, apesar de autoritária e etnocêntrica, veio a ser simploriamente legitimada como instituto necessário e até filantrópico.


Tal idéia está muito viva nas mais variadas manifestações discursivas dos brasileiros: artes, literatura, chiste e linguagem cotidiana. Os índios seriam algo apenas relativo ao passado colonial do Brasil, havendo uma enorme e generalizada dificuldade em compreender os índios atuais.


O reconhecimento se limita a faixas da Amazônia, onde ainda haveria grupos isolados e arredios (“índios verdadeiros”). Os demais são ditos apenas “remanescentes”, índios “misturados” e, no limite, “falsos índios”. Pretende-se instituir uma polaridade entre as culturas indígenas “intocadas” (seriam as autênticas) e aquelas afetadas por “processos de aculturação” (seriam inautênticas). Partindo daí, setores da administração pública colocam em segundo plano as demandas de “índios” no Nordeste, seja omitindo se face ao reconhecimento de suas terras, seja criminalizando suas lideranças e enquadrando- as em um regime carcerário próprio de praticantes de crimes hediondos.


Os direitos indígenas, tais como definidos na Constituição de 1988 e na Convenção 169 (acolhida no Brasil em 2003), não decorrem, porém, de uma condição de pureza cultural a ser comprovada nos índios e coletividades indígenas atuais, mas sim do reconhecimento pelo estado de sua condição de descendentes da população autóctone. Trata-se de um mecanismo compensatório pela expropriação territorial, pelo extermínio de incontáveis etnias e pela perda de uma significativa parcela de seu patrimônio cultural.


Não é justificado estabelecer parâmetros arbitrários para definir o que é (ou o que deva ser) uma cultura indígena. A incorporação de rituais, crenças e práticas exógenas não necessariamente significa que aquela cultura já não seria “autenticamente indígena” ou pertencesse a “índios aculturados”. Para constituir analiticamente uma cultura, é preciso partir do que pensam, fazem e sentem os seus portadores atuais. É preciso libertar-se do efeito “túnel do tempo”, da abordagem objetificante e da relação tutelar.


Os debates sobre Belo Monte nos evidenciam essa complexidade. Ali se expressam as velhas concepções sobre os indígenas, que alimentam tanto argumentos desenvolvimentistas quanto ambiguidades do discurso tutelar. Manifesta-se também uma tensão no interior do novo paradigma, uma vez que os indígenas buscam exercer o seu protagonismo, mesmo assumindo posições temporariamente antagônicas — como no caso da aldeia Paquiçamba. Aprender a respeitar e a lidar com a contemporaneidade do indígena será um aprendizado importante para as autoridades.



Os embates ideológicos fizeram curiosamente reviver o potencial utópico da figura do índio, apropriando- se agora da poderosa máquina de fabricação de mitos que é o cinema e remetendo-os ao futuro. A retórica dos ecologistas estabeleceu um paralelo entre os Na’vi e os indígenas atuais da região, visando a apontar os riscos para o ecossistema amazônico e mesmo planetário. A disputa pela autenticidade remete agora a 2154!


Texto de João Pacheco de Oliveira

quarta-feira, 28 de abril de 2010

ECOLOGIA MENTAL

No dia 02 de Fevereiro de 2007, ao ouvir em Paris os resultados acerca do aquecimento global dados a conhecer pelo Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas (IPCC), o então Presidente Jacques Chirac disse: "Como nunca antes, temos que tomar a palavra revolução ao pé da letra. Se não o fizermos, o futuro da Terra e da humanidade é posto em risco".

Outras vozes já antes, como a de Gorbachev e de Claude Levy Strauss pouco antes de morrer, advertiram: "ou mudamos de valores civilizatórios ou a Terra poderá continuar sem nós".

Esse é o ponto ocultado nos fóruns mundiais, especialmente o de Copenhague. Se for reconhecido abertamente, ele implica uma autocondenação do tipo de produção e de consumo com sua cultura mundialmente vigente. Não basta que o IPCC diga que, em grande parte, o aquecimento agora irreversível é produzido pelos seres humanos. Essa é uma generalização que esconde os verdadeiros culpados: são aqueles homens e mulheres que formularam, implantaram e globarizaram o modo de produção de bens materiais e os estilos de consumo que implicam depredação da natureza, clamorosa falta de solidariedade entre as atuais futuras gerações.

Pouco adianta gastar tempo e palavras para encontrar soluções técnicas e políticas para a diminuição dos níveis de gases de efeito estufa se mantivermos este tipo de civilização. É como se uam voz dissesse: "pare de fumar, caso contrário vai morrer"; e outra dissesse o contrário: "continue fumando, pois ajuda a produção que ajuda a criar empregos, que ajudam a garantir os salários, que ajaudam o consumo que ajuda a aumentar o PIB". E assim, alegremente, como nos tempos do velho Noé, vamos ao encontro de um dilúvio pré-anunciado. Não somos tão obtusos a ponto de dizer que não precisamos de política e de técnica. Precisamos muito delas. Mas é ilusório pensar que nelas está a solução. Elas devem ser incorporadas denro de um outro paradigma de civilização que não reproduza as perversidades atuais. Por isso, não basta uma ecologia ambiental, que vê o problema no ambiente e na Terra. Terra e ambiente não são o problema. Nós é que somos o problema, o verdadeiro "Satã" da Terra, quando deveríamos ser seu "Anjo da Guarda". Então: importa fazer, consoante Chirac, uma revolução. Mas como fazer uma revolução sem revolucionários?

Estes precisam ser suscitados. E que falta nos faz um Paulo Freire ecológico! Ele sabiamente dizia algo que se aplica ao nosso caso: "Não é a educação que vai mudar o mundo. A educação vai mudar as pessoas que vão mudar o mundo". Precisamos destas pessoas revolucionárias, caso contrário, preparemo-nos para o pior, porque o sistema imperante é totalmente alienado, estupificado, arrogante e cego diante de seus próprios defeitos. Ele é a treva e não a luz do túnel em que nos metemos.

É neste contexto que invocamos uma das quatro tendências da ecologia (ambiental, social, mental e integral): a ECOLOGIA MENTAL. Ela trabalha com aquilo que perpassa a nossaa mente e o nosso coração. Qual é a visão de mundo que temos? Que valores dão rumo à nossa vida? Cultivamos uma dimensão espiritual? Como nos devemoso relacionar com os outros e com a natureza? Que fazemos para conservar a vitalidade e a integridade de nossa Casa Comum - a Mãe Terra?

Não dá, em poucas linhas, para traçar o desenho principal da ecologia mental. O primeiro passo é assumir o legado dos astronautas que viram a Terra de fora da Terra e se deram conta de que a Terra e a Humanidade formam uma entidade única e inseparável e que ela é parcela de um todo cósmico. Segundo, é saber que somos Terra que sente, pensa e ama, por isso homo (homem e mulher) vem de húmus (terra fecunda). O terceiro, que nossa missão no conjunto dos seres é de sermos os guardiães e os responsáveis pelo destino feliz ou trágico dessa Terra, feita nossa Casa Comum. O quarto, é que junto com o capital natural que garante nosso bem-estar material, deve vir o capital espiritual que assegura aqueles valaores sem os quais não vivemos humanamente, como a boa-vontade, a cooperação, a compaixão, a tolerância, a justa medida, a contenção do desejo, o cuidado essenciala e o amor.

Estes são alguns dos eixos que sustentam um novo ensaio civilizatorio, amigo da vida, da natureza e da Terra. Ou aprendemos estas coisas pelo convencimento ou pelo padecimento. Este é o caminho que a história nos ensina.

Texto de Leonardo Boff

domingo, 25 de abril de 2010

KELKATANI... a pedra escrita

Chichillapi é uma comunidade andina, a 4.300 metros de altitude e a 150 quilômetros do lago Titicaca, no final de um caminho medonho chamado de "penetração". Nos seus arredores encontramos cavernas rupestres que ocultam a raríssima mensagem dos "Fundadores do Mundo", no antigo santuário de KELKATANI - em aimara, "pedra escrita".

A caverna e a rocha pintada são uma HUACA - rocha sagrada, respeitada e venerada pelos comuñeros kolla, que a protegem como "santuário de seu mundo cosmogônico". E foi graças a esse culto secular, sempre praticado porém mantido no maior segredo, que a "mensagem" foi protegida de uma provável destruição. Os kallawayas (curandeiros) da região utilizam a "raspa da huaca" na composição de um filtro contra o SUSTO, uma estanha doença do medo que mata o índio dos Andes mais do que qualquer outro mal relacionado pelos médicos ocidentais.

Um frio rigoroso maltrata no interior da caverna, onde o termômetro desce a menos de 5º. É preciso manter um fogo de taquia (excremento seco de lhama) para poder se aquecer e admirar os desenhos. Foi, provavelmente, esse mesmo meio de aquecimento e iluminação arcaico que um grupo utilizou para ocupar outrora a caverna e decorar-lhe as paredes: o PRIMEIRO SANTUÁRIO RUPESTRE DO ALTIPLANO!

A extraordinária mensagem mural ade KELKATANI, de silhueta levemente entalhada, está pintada em "positivo" ou em "negativo", numa larga tela de granito que cobre vinte e seis metros de comprimento por seis de altura. Um pequeno filete de água que corre na gruta, pouco a pouco solapou a base e projetou a rocha para frente; esta inclinação protegeu tão bem as pinturas da erosão que o conjunto está em excelente estado de conservação.


Cheias de vivacidade e de movimento, embora de grande simplicidade, as litografias mostram danças cinegéticas ou de iniciação tribal muito animadas, choques de guerreiros pronto a se defrontarem, expedições de caça em grupo ao longo dos rios ou a erraticidade dos homens primitivos ao longo de pistas sinuosas e acidentadas. Estas ilustrações alternam-se com cenas pastoris repousantes, mostrando o pastor guardando
um grande rebanho de lhamas ou guiando-as em uma longa caravana, o pescoço de um animal preso à cauda da lhama que o precede por uma corda rígida figurada como uma serpente.

As silhuetas humanas são, em geral, apenas esboçadas. Mas a corrida dos camelídeos que tentam desesperadamente escapar do caçador, os animais que titubeiam, cabriolam ou caem feridos têm um vigor extraordinário.

Às vezes o cenário anima-se com alguns fugitivos tarucas - pequenos cervídeos que enchem os cumes das Cordilheiras, em vias de desaparecimento atualmente mas que outrora deviam abundar nesses lugares desérticos. Em outras cenas, um lagarto corre, um caracol se arrasta, uma coruja fascina um grande pernalta e patas de águia, uma raposa de penacho estufado escapa... Distingue-se ainda um felídeo com garras - o puma.

A maioria dos personagens representados trazem uma tanga curta, provavelmente cortada em casca de árvore batida ou em pele de guanaco, ou ainda de caniço, à moda uru. De toda forma, uma vestimenta leve que segue o movimento do corpo. Trazem à cabeça um "boné" com altas plumas em cima. Quando representam uma dança cerimonial, os homens adoram seu peito com colares feitos de grãos e têm braceletes de bolotas nos braços. Em geral, um tufo de penas guarnecem seu torso, às vezes os rins.

Noventa por cento dos animais representados são camelídeos de salto leve: vicunhas rápidas, guancos e lhamas mais pesados, alpacas lanosas e um quinto camelídeo sul-americano, de pescoço muito curto em relação aos outros, frequentemente desenhado em cerâmicas pré-colombianas, mas desaparecido antes da chegada dos europeus.

Esses milhares de pinturas informam que a economia dos povos de altitude repousava quase inteiramente sobre a caça, a domesticação e a criação
desses camelídeos - exclusivos dos altos vales e do Altiplano. Desértico antes, o Kollão (altiplano) cobre-se progressivamente de animais e de pessoas que são vistas, em cenas rupestres, formigar cada vez mais de época em época. Uma civilização florescente que se multiplicaria até a última e monumental cultura de TIHUANACO.

Os afrescos murais mais nervosos e irriquietos descrevem o CHACO, grande caça coletiva que reunião centenas ou milhares de pessoas e que foi, muito mais tarde, retomada e celebrada em grande pompa pelos Inca reinantes. Todos os cronistas descreveram com muitos detalhes estas grandes caçadas imperiais.

Os descendentes daqueles cavernícolas ainda vivem às margens do Titicaca, autodenominando-se CHOKKELA. E ainda hoje revivem o chaco: brandem um bastão, perseguem em corrida as vicunhas desvairadas, mortalmente atingidas; é fácil ouvir os gritos que soltam os homens para espantar e desorientar o rebanho. Animais escampam, outros são transpassados por uma lança, um dardo, uma azagaia ou uma flecha. Dois ou três Chokkela antepassados, pintados no primeiro plano da parede de pedra, armados de um cacete grosso, braços erguidos, calcam aos pés um guanaco caído por terra. Sua dança é frenética! Com se eles quisessem acabar de estraçalhar o despojo do animal. Dele já não resta senão a parte posterior...

Entretanto, representar tão cruamente o caçador que atinge um animal, enterrando-lhe um dardo na carne, reproduzir o pânico e a debandada do rebanho, não é apenas um esboço artístico de amador pré-histórico. Parece tratar-se de um ato de MIMETISMO MÁGICO, que o caçador imagina na esperança de garantir para si, quando de um próximo chaco, a tomada de carne necessária à subsistência mesma do clã que dependia de sua agilidade para sobreviver ou, na falta dela, morrer!

Como pano de fundo, fragmentos de grandes redes de malhas largas. Os Chokkela desdobram essas redes, segurando-as, para formar um imenso círculo volteando um pico inteiro. Progressivamente, a roda se estreitava, aprisionando as vicunhas e os guanacos que outros homens, antes, desviaram para ali e os cercaram.

Magnificos desenhos reproduzem fêmeas de ventre tão pesado que se arrasta por terra, prestes a parir. Obsidiado pelo mistério da reprodução da espécie, o pintor primitivo teve a idéia de figurar, de perfil, dois ou três pequenos no ventre inflado de sua mãe. Este assunto domina a mente do artista, volta sem cessar e o impele a pintar esta religião da fecundidade metológica, comum a todos os antigos povos do mundo.

Uma certeza parece manifestar-se: nas fronteiras do céu, sobre o cume dos Andes, a psicologia do homem do Titicaca, do caçador de guanacos, é a mesma que a do homem da rena ou do bisão, do caçador pré-histórico de mamute, de cervo, de canguru e de outros animais selvagens em outros lugares do planeta.
Baseado no texto de Simone Waisbard

sexta-feira, 23 de abril de 2010

A GAIOLA DE PÁSSAROS GIGANTES

Que significa atribuir às grandes figuras do feérico pampa de Nazca? A falta de fontes escritas sobre o assunto o torna m dos mais cativantes mistérios dos Andes. Eugênio Alarco prega que "o fundamento mitológico constitui a grandiosa linguagem dos primitivos, para se comunicarem os os mistérios do mundo".

Duas razões me impeliram a iniciar minhas pesquisas pela análise dos desenhos de pássaros. A primeira é sentimental. Retomando o caminho seguido por Paul Kosok, me encontrei, primeiramente, confrontada com um dos mais belos espécimens do zoo dos Nazcas: um gigantesco pássaro planando sobre o deserto. Portanto, como ele ainda, eu não o compreendi em terra. Kosok apenas viu o pássaro tomar forma sobre a sua mesa de desenho, retraçando "as medidas de um estranho caminho".

A segunda razão e que o tema preferito dos artistas do deserto foi precisamente aquele pássaro; dezoito acham-s ainda nitidamente visíveis, embora, conforme as fotografias aéreas e o sobrevoo, eles foram certamente muito mais numerosos na origem.

Transmitida pelos folcloristas peruanos desde a Conquista, a tradição oral abunda de fábulas das quais os pássaros, sob formas múltiplas, são os intérpretes: mensageiros ou agentes dos deuses, divindades ou sua progênie. Neste caso, eles tomam "feições lunares", mas suas extremidades não possuem mais que quatro dedos, à maneira das patas dos pássaros. Em muitas das lendas da costa, eles encarnam astros, gênios e, sobretudo, espíritos ancestrais. Alugns possuem uma posição sagrada. Frequentemente, a lua e o sol nasceram de um ovo de condor. Por toda a parte, eles estão associados aos poderes mágicos. Em Cuzco, conta-se que quando o Inca Mayta Capac desejou reunir uma grande quantidade de ídolos, para com eles preencher os alicerces de seu palácio, aqueles fugiram a toda pressa sob a forma de pássaros.


Um verdadeiro CULTO DO PÁSSARO existe deste o Alaska até a Patagônia, onde a espécie está smepre associada à magia e, frequentemente, aos sacrifícios, quer deles sja oo hholocausto ou o executor.

Terrestres ou marinhos, por toda pasrte também os pássaros são cooperantes com os ritos da fertilização e da produção do solo. A chegada ou passagem de tal ou tal categoria de pássaros assinala a boa ou má estação. As semi-estaçaões são tão breves que, da noite ao dia seguinte, três meses de pleno sol tropical sucedem à interminável e entristecedora presença da corrente de Humboldt sobre a costa peruana; os pássaros indicam o momento chegado das colheitas nos vales e oásis, o tempo favorável ao entreposto do excedente, aquele para os pescadores se aventurarem no mar ou nos rios, para ali apanharem um maná precioso. As brumas fazem reverdecer os lomas costeiros, onde podem pastar os rebanhos e os animais perseguidos pelos caçadores. A chegada das chuvas ou do degelo na serra arratam o barro fertilizante.

Se atualmente eles já não interpretam o vôo dos pássaros, à moda dos HAMURPAS, os mágicos do Inca que praticavam a ornitomancia, isto é, a adivinhação pelo vôo e canto dos pássaros, os pescadores do Pacífico interpretam , todavia, os indícios meteorológicos pelos costumes de certas espécies. Quando os brujillos ("pequenos bruxos") de crista vermelha, bico longo e corpo escuro, lançam gritos desesperados, visto que eles se transtornam sabendo que vão ter dificuldade em se aprovisionarem de mariscos e crustáceos, dos quais se alimentam, os pescadores são advertidos que o mar vai se enfurecer.

Certas hordas de pássaros migradores deviam anunciar a data na qual os vendedores ambulantes Nazcas partiam para o ponto de encontro dos cumes, nos quais se mantinham imensos mercados de troca com os índios dos Andes e aqueles das florestas tropicais, quando os acrogáticos caminhos das cordilheiras voltavam a ser praticáveis.

Mas onde os deslocamentos dos pássaros do mar no céu omava todo os eu valor augural, é verdadeiramente relacioando como guano das ilhas peruanas. A colheita, por exemplo, só se pode efetuar fora do período de nidificação dos guaneros, a fim de não perturbar o ciclo anual de reprodução. É então, entre os meses que correspondem a abril e outubro, que os homens partiam em grupos para as ilhas rochosas, para ali desfrutar de espessas camadas de dejeções esbranquiçadas, com o pavoroso odor amoniacal... Os cronistas do século XVI desceveram a orgíaca cerimônia do AKATAY MITA ou "RETORNO DO GUANO", clebrada no finala do ano, grande festa licenciosa que presidia a fumagem das terras a fertilizar.

Quando os pescadores do Pacífico, nossos contemporâneos, percebem que os pássaros guaneros fogem em direção ao sul e ao Chile, é proque chove excepcionalmente ao norte. E se chove, o oceano fica inesperadamente reaquecido, rompendo todo o ciclo das manifestações da misteriosa corrente de Humboldt. Nõa somente as aves emigram aos milhares, mas eles morrem outro tanto, visto que os bancos de pequenos peixes como a anchoveta e o plancton de que se alimentam, são arrastados ao largo. A colheita de guano diminuirá em milhares de toneladas e a falta deste adubo naturla, que sozinho permite fecundar as ingratas culturas à beira dos desertos, tornar-se-á dramática. Por outro lado, peixes vorazes surgirão, devorando as espécies comq ue se alimentam habitualmente os povos do litoral. Enfim, as águas saturadas de organismos mortos, em decomposição, serão perigosas para a navegação marítima.

Hoje, os mágicos Nazcas não estão mais lá para esclarecer os homens sobre o futuro e ninguem sabe (ou não se interessa) mais, no Peru, em prognosticar tão catastróficas anomalias!

Consciente da importância desses fenômenos meteorológicos, um investigador peruano - Jorge Salinas - tem-se perguntado se o pássaro gigante dos pampas naõ teria, precisamente, por objetivo predizer a referida anomalia. Essa figura não parece, de fato, estar orientada ao acaso.

"O pássaro com as asas estendidas dá a impresão de voar em direção ao sudeste", estipula Jorge Salinas, "isto , coincidindo com o perfil da costa e com a direção tomada atualmente, em anos anormais, pelos guaneros em seu exílio chileno". Além disso, acrescenta ele, "de asa a asa, uma linha atravessa o pássaro para marcar o solstício de verão". Os antigos Nazca teriam desenvolvido uma verdadeira ciência "barométrica" e "meteorológica", sem nenhuma necessidade de aparelhos de precisão. Assim, apenas observando o vôo dos pássaros, eles previam a tempo os anos funestos de penúria e podiam remediá-los através de medidas de economia tomadas de urgência, tais como a preparação de peixe seco e de algas desitradadas.

O pássaro gigante de Jorge Salinas, aquele que Kosok descobriu acidentalmente, um dos desenhos que se fotograva mais frequentemente de avião por sua suprema elegância, verdadeiro "poema voador", mede 135 metros de comprimento. A linha quebrada que lhe dá nascimento a oeste, liga-o a um monumental quadrilátero com 850 metros de comprimento por 80 de largura. Como o indicou Salinas, ele é de ponta a ponta, em toda a sua envergardura (120 m), interceptado por uma outra linha que o ultrapassa e se prolonga por 6 quilômetros aproximadamente, antes de ir ter num local onde se entrelaçam novos traços.

Bordado com pequenas pedras na areia, como uma "geometria em suspenso", provido de asas possantes, o pássaro-totem parece iniciar uma viragem dem direção sul-sudoeste... A qual espéice pertence realmente? Embora de um realismo perfeito, como os dezessete outros megafrescos de pássaros que se divertem no imenso aviário mitológico de Nazca, não é fácil identificá-lo com toda certeza. Cada modelo tem ou um detalhe a menos... ou um a mais!
No conjunto, ele é designado pelo nome de FRAGATA ou ÁGUIA DO MAR, um palmípede que se alimenta de carne morta, pirata do ar e que, através de seu batimento de asas estrondoso ou, na estação do acasalamento, dilatando seu papo de uma grossura supreendente, assusta e coloca em fuga todos os outros pássaros. À vista da ave de rapina, eles deixam cair, para seu benefício, uma presa da qual ela se apodera destramente em vôo.

Na mitologia do Pacífico, a fragata personifica a Quilla - a Lua, deusa da pesca. Sob traços ornitomorfos - o bico curvo torna-se um nariz, os olhos êm a forma de asas -, a divindade noturna, luxuosamente ornada, é esperada pelo Sol, circundado por uma multidão de pássaros marinhos, sobre uma ilhota rochosa onde, ao amanhecer, ele a fecundará com seus raios quentes.

Um segundo pássaro visto de perfil correspondente melhor às características da fragata, embora o desenho seja mais desajeitado: papo inflado, bico ligeiramente curvo na ponta e, sobretudo, patas curtas. Quer dizer, ele é totalmente diferente do majestoso exemplar, impecável no traçado, possuidor dde longas patas esticadas. Outro detalhe totalmente típico da fragata - que os Nazca não teriam omitido -, é a cauda bifurcada, em "andorinha", enquanto que o geógrifo gigante aparesenta uma cauda trapezoidal, prolongada por uma importante pena rectriz central.

Trata-se mais de uma espécie de andorinha-do-mar. Luiz Lubreras qualifica-o, antes de tudo, "de um pássaro mitológico" reproduzido seugndo a "constelação do pássaro". As linhas que partem da cauda e acentuam as asas, podeiram ser solsticiais.


Texto de Simone Waisbard

quinta-feira, 22 de abril de 2010

CIÊNCIA INCA

O saber inca nas áreas das artes e das ciências foi, em boa parte, herdado das civilizações que os precederam. O império cuzquenho aproveitou para si os avanços dos povos incorporados e aliados. Sua maior virtude, porém, foi não ter se limitado à imitação e sim reelaborado aquelas experiências somando-as aos seus próprios conhecimentos.

A história costuma apontar a astronomia como a ciência que emergiu primeiro entre várias civilizações. Nos Andes, assim como em outras partes do mundo, os movimentos cíclicos do sol e da lua foram entendidos como grandes determinantes do ritmo bioecológico da vida.

As observações astronômicas dos antigos mexicanos e os calendários centro-americanos são apresentados, comumente, como superiores aos incas. No entanto, John Earls explica que a astronomia inca baseou-se na observação e apreciação de regularidades bem alheias às concepções adotadas pelos povos do hemisfério norte. E, ousadamente, sugere que o cálculo do tempo, nos Andes, visando a agropecuária e sua cuidadosa organização, foi talvez mais importante do que em outras civilizações.

O ano inca correspondia ao ano solar, provavelmente começando no solstício de inverno (junho). Eles possuiam observatórios astronômicos e davam grande importância às estrelas e planetas. Conheciam Vênus (Chaska), Saturno (Jaucha), Marte (Auqakuc), Júpiter (Pirwa); as constelações das Plêiades (Qollqa), de Virgem (Mamana), Aquário (Mikikiray), Gêmeos (Mirku), a estrela Sírius e etc. Como alguns desses astros eram deificados, percebe-se que a ciência mesclava-se com a religião. Era tênue também a fronteira entre astronomia e astrologia.

A ciência da saúde também tinha algo de divino e parte dela era ritualizada. Poma de Ayala menciona a existência de curandeiros que "chupavam" as enfermidades do corpo - ação semelhante à dos pajés brasileiros, por exemplo. Os jejuns, comprovadamente benéficos ao organismo, eram frequentes e parecem ter tido uma dupla função: homenagear os deuses e melhorar a saúde, ou seja, limpar a alma e o corpo.

Ritualizada também era a lavagem anual dos povoados e casas, sem dúvida uma medida de bom efeito sanitário. A higiene pessoal e material (residências, estábulos, bens coletivos) era um a exigência do Estado. A sujeira era crime! Segundo Laurette Séjourné, o povo inca tomava banho todos os dias, mesmo sob temperaturas gélidas.

Além dos curandeiros havia também médicos - os janpikamayuc. Tudo indica que realizavam inclusive cirurgias. Arqueólogos encontraram corpos com sinais semelhantes a intervenções cirúrgicas, como se pode ver no Museu Arqueológico de Lima.

Como medicamentos, os incas utilizavam uma enormidade de substâncias naturais, cujos nomes, em sua maioria, perderam-se com a invasão européia. As folhas de coca, mascadas em ocasiões especiais com autorização do Inca, davam vigor e força. Como remédio, os médicos utilizavam emplasto de coca para desinfetar ferimentos, fortalecer ossos quebrados e abrandar febre. Garcilazo de la Vega e Jesús Lara informam que empregavam também a salsaparrilha, a quínua e o milho. Conheciam ainda a akhana, a amasisa, chachakuma, ijmawacachi (tipo de malva), jayacpichana (usada para afugentar pulga), kachiyuyu (para enfermidades hepáticas), mullaka e centenas de outras ervas.

Hoje, em Las Huaringas, conjunto de lagoas de águas medicinais nas alturas da cordilheira de Piura, extremo norte do Peru, ainda há velhos índios conhecidos por praticar curas através de banhos e ervas.

Numa grande interrelação, a produção de alimentos e medicamentos exigiu a astronomia; a astronomia exigiu a matemática, e a esta exigiu a estatística. "Não importa que nos falte compreender os princípios da matemática inca, ou andina em geral: o importante é que sua existência foi estabelecida para os fins da computação", afirma Earls.

A estatística e a computação eram usadas para tudo: fenômenos climáticos, demografia, plantio, colheita, produção de tecidos, estoque dos depósitos, etc. Os cálculos eram feitos com base num sistema numérico decimal, facilitados pela invenção de um tipo de ábaco. Esse ábaco tinha cinco fileiras de quatro casas, entre as quais se distribuíam séries de um a cinco grãos de milho. Os resultados eram registrados nos quippus. Constituído por um cordão mestre, medindo desde alguns centímetros a mais de um metro de comprimento - do qual pendiam vários cordõezinhos com nós, torções e cores diversas - o quipu representava números, de acordo com a espessura dos nós e sua localização nos cordões.

Os quipus eram confeccionados e interpretados apenas por funcionários treinados e ainda não foram totalmente decifrados. O padre Blas Valera garantia ter traduzido quipus antigos e neles ter encontrado poesias. Poma de Ayala concorda: os nós não registravam apenas números, mas também histórias.

Isso conduz a um tema polêmico: os incas tinham escrita? Grande parte dos historiadores afirmam que os Filhos do Sol não tiveram escrita ou que parecem não ter tido. No entanto, alguns cronistas, como Sarmiento de Gamboa, Cristobal de Molina e Fernando Montesinos relataram a existência de uma escrutra ideográfica (quellca), cujo exemplo maior teriam sido os painéis históricos da pinacoteca criada por Pachakuti nas redondezas de Cuzco.

Pesquisadores contemporâneos, como a peruana Victoria de la Jara e o alemão Thomas Barthel levataram a hipótese de que, por volta do século XV, os incas tinham superado a quellca com a invenção de uma escrita policromática de palavras (não de letras ou sílabas). Consistia em símbolos quadrados e retângulos bordados, tecidos ou pintados em mantos, túnicas, jarros, cântaros cerimoniais, cuja leitura se fazia no sentido vertical ou horizontal, da esquerda para a direita. Victoria de la Jara, a primeira a investigar essa escritura pré-alfabética, conseguiu, entre 1962 e 1970, interpretar 294 de seus símbolos.

A língua mais utilizada no império foi o quêchua. Declara como oficial e obrigatório, o quêchua - também chamado de "runasimi" (língua humana) - suplantou e enfraqueceu outros idiomas. Tudo indica que sua origem não seja cuzquenha mas das regiões de Abancay e Andahuaylas. Talvez por isso certos historiadores digam que os primeiros incas não falavam quêchua mas outra língua.

Baseado em texto de Rosana Bond

quarta-feira, 21 de abril de 2010

CARAÍ... profeta e homem-santo

Os CARAÍ – também chamados de CARAIVA ou CARAÍBA – são os pagy uaçu (grande xamã), porém não se trata de curandeiros nem feiticeiros, mas “PROFETAS”, “HOMENS SANTOS”, “GUIAS ESPIRITUAIS”. Apenas uns poucos xamãs conseguem tornar-se caraí.

Os caraí vivem retirados, afastados das aldeias, e nunca residem com os demais (inclusive com os chefes) nas grandes casas comunais – como fazem os outros xamãs. Yves d’Evreux, entrevistando Pacamonte, um caraí, colhe a seguinte explicação: “Todo caraí demonstra uma gravidade exterior; falam pouco, amando a solidão, e evitam o mais que podem as companhias (...) e erguem suas moradas à parte, afastadas de vizinhos. Não é bom nem conveniente que nós, de quem dizem que conversamos com os Espíritos, sejamos levianos ou fáceis e às primeiras novidades nos ponhamos a caminho: porque somos olhados por nossa gente (nhadê – os primeiros humanos) e eles seguem nossos gestos e palavras. Os volúveis e os que, ao primeiro ruído, enfeitam-se com penas e vão ver às pressas o que aconteceu de novo, são pouco estimados e não se tornam grandes principais”. Essa bela lição de técnica de vida dos grandes desse mundo dispensa comentários e merece ser citada. Assim, o comportamento dos caraí, seu modo de vida, os designa como personagens excepcionais.

Mais ainda do que uma atitude apenas destinada a ressaltar sua importância, esse isolamento deliberado é uma maneira de marcar que eles possuem um estatuto à parte, que não pertencem verdadeiramente a uma comunidade específica, que não são de lugar algum. Com efeito, eles não só vivem afastados numa morada feita para seu uso exclusivo (enquanto toda a comunidade vive em grandes casas comunais, organizadas por parentesco), como também permanecem pouco tempo na mesma aldeia. Deslocam-se constantemente, percorrendo províncias inteiras. Uma vida errante! Aliás, mais um traço que os opõe às outras categorias de xamãs. Os caraís evitam misturar-se com os outros, participar das conversas e sobretudo dos vários trabalhos; jejuam constantemente, recusando às vezes ostensivamente a comida que lhes é oferecida e pretextando que não têm necessidade alguma de alimento. Mas, em certos momentos do dia, dirigem-se à aldeia reunida, através de discursos muitas vezes bastante compridos.

Nas suas andanças, os caraí podem percorrer todas as aldeias de uma província, inclusive aldeias inimigas. E isso só eles podem fazer. Em várias cartas, os jesuítas assinalavam essa liberdade desfrutada pelos profetas e que lhes permitia circular, como melhor entendessem, entre as províncias inimigas. E Soares de Souza dá uma curiosa informação que talvez possa lançar luzes no seu sentido: “Entre este gentio são os músicos mui estimados e, por onde quer que vão, são bem agasalhados, e muitos atravessaram já o sertão por entre seus contrários, sem lhes fazerem mal”. O mesmo autor diz, ainda, que os tupi desistiam, às vezes, de comer um prisioneiro de guerra se este fosse um bom cantor. Mas ser um ótimo cantor não significa apenas ser capaz de modular agradáveis melodias, mas sobretudo poder cantar muito tempo e enunciar conteúdos significativos – ÑE’E PORÃ, as “Belas Palavras”. O canto é um DISCURSO... pontuado, entrecortado de melodias não faladas. Se, portanto, os tupis poupavam esses cantores excepcionais, é porque deviam reconhecê-los como caraís – já que esses podiam acompanhar expedições guerreiras, mesmo não combatendo.

Essa dupla liberdade dos caraís quanto ao espaço – exteriores à aldeia e exteriores à província – é sinal de um estatuto duplamente marginal. Pelo menos ideologicamente, seu estatuto torna-os exteriores às alianças políticas e exteriores ao parentesco. Pois estar fora da comunidade não significa apenas morar afastado; ou melhor, esse afastamento só manifesta uma exterioridade mais profunda: a que situa o caraí fora, do ponto de vista social (e não apenas espacial) do que precisamente constitui uma comunidade – a rede de parentesco.

A impressão que nos fica é de que nunca se sabe DE ONDE VÊM os caraís: nem de qual lugar do espaço, nem – por conseguinte – de que ponto da genealogia. Indo e vindo constantemente, portanto sem residência, estão em toda parte e, por isso mesmo, em nenhum lugar. Lozano diz que eles afirmam não serem nascidos de pai, mas somente de mãe. Não ter pai, para os tupi-guarani, que são patrilineares, é não ter parentes. De modo que, enunciando tal pretensão – ter nascido só de mulher –, os caraís exprimem e reivindicam o estatuto ideal da liberdade. São aparentados, sim, com os caraíbas míticos, os heróis culturais, cujo espírito atualizam. Os poderes atribuídos aos caraís evocam os daqueles caraíbas: são capazes de se “transformarem” em animais; sabem fazer o milho e as plantas crescerem sozinhas; podem resgatar a alma dos mortos. E como os aqueles, também vivem na solidão, falando pouco e praticando grande abstinência.

Essa semelhança explica o fascínio que os caraís exercem... e porque devemos chamá-los, não de xamãs, mas de PROFETAS e HOMENS SANTOS.

Baseado em texto de HÉLÈNE CLASTRES

segunda-feira, 5 de abril de 2010

BELAS PALAVRAS

Esse é parte de um canto do povo Guarani – As Belas Palavras – dirigidas a Nhamandu. Cantam a reflexão humana diante da finitude, ao mesmo tempo em que, investindo as Palavras de potência sagrada, visam alcançar a morada de Nhamandu.


Nosso Pai, o último, Nosso Pai, o primeiro,

fez com que seu próprio corpo surgisse

da noite originária.


A divina planta dos pés,

o pequeno traseiro redondo:

no coração da noite originária

ele os desdobra, desdobrando-se.


Divino espelho do saber das coisas,

Compreensão divina de toda coisa,

divinas palmas das mãos,

palmas divinas de ramagens floridas:

ele os desdobra, desdobrando a si mesmo, Nhamandu,

no coração da noite originária.


No cimo da cabeça divina

as flores, as plumas que o coroam,

são gotas de orvalho.

Entre as flores, entre as plumas da coroa divina,

o pássaro originário, Maino, o colibri,

esvoaça, adeja.


Nosso Pai primeiro,

seu corpo divino, Ele o desdobra,

em seu próprio desdobramento,

no coração do vento originário.

A futura morada terrena,

Ele não a sabe ainda por si mesmo;

a futura estada celeste, a terra futura,

elas que foram desde a origem,

Ele não as sabe ainda por si mesmo:

Maino faz então com que sua boca seja fresca

Maino, alimentador divino de Nhamandu.


Nosso Pai primeiro, Nhamandu,

ainda não fez com que se desdobre,

em seu próprio desdobramento,

sua futura morada celeste:

a noite, então, Ele não a vê,

e todavia o sol não existe.

Pois é em seu coração luminoso que Ele se desdobra,

em seu próprio desdobramento;

do divino saber das coisas,

Nhamandu faz um sol.


Nhamandu, Pai verdadeiro primeiro,

habita o coração do vento originário;

e, aí onde ele repousa,

Urukure’a, a coruja, faz com que existam as trevas:

ela faz com que já se pressinta o espaço tenebroso.


Nhamandu, Pai verdadeiro primeiro,

ainda não fez com que se desdobre,

em seu próprio desdobramento,

em seu próprio desdobramento,

sua futura morada celeste:

Ele ainda não fez com que se desdobre,

em seu próprio desdobramento,

a terra primeira:

Ele habita o coração do vento originário.


O vento originário no coração do qual nosso pai

de novo se deixa unir cada vez que volta

o tempo originário.

Terminado o tempo originário, quando a árvore tajy está florida,

então o vento se converte um tempo novo:

ei-los aqui já os ventos novos, o tempo novo

o tempo novo de coisas não mortais.


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Aqui temos o canto do nascimento de NHAMANDU. Ele gera-se a partir de si mesmo, na escuridão inicial. Diferentemente do humano, ele nasce de pé; as plantas dos pés como que raízes fincadas naquela escuridão. A seguir, o assento - que significa o lugar ocupado pelos sábios, mas que significa, também, a metafora do jaguar.


Há homogeneidade entre o mundo divino, o mundo animal e o mundo vegetal. O quadro que se desenha é de uma beleza extraordinária: as mãos floridas fazem um conjunto harmonioso juntamente com a cabeça, coroada de flores e de plumas. Aí, abriga-se Maino, o colibri (beija-flor) sagrado que tem a função de refrescar, sempre, a boca do Nhamandu, habitat das Palavras Sagradas.


Nhamandu desdobra-se no seu próprio desdobramento, ou seja, ele gera a si mesmo, no coração do vento originário, quando ainda não há sol para os homens, pois ainda não existe a sua morada celeste, porém, ele próprio é o sol. Todavia, esta morada virá a existir, no momento em que, numa das suas repetições, na Primavera, quando a árvore tajy estiver florida, então, será o momento de um tempo novo, o tempo dos imortais.


Este é o tempo almejado pelos Guarani que, durante não se sabe quanto tempo, procuraram, em multidões, encontrar o espaço físico onde se encontra a Terra sem Mal. Contudo, hoje, tendo em vista que estes deslocamentos são impossíveis, este povo concentra-se em profundas meditações, questionando sempre o destino do homem e buscando sempre pontes entre homens e deuses, entre mortais e imortais.


As Belas Palavras são o resultado desta busca infindável, agora, não mais feita em grandes deslocamentos pela imensidão verde do Brasil, até porque, esta, é cada vez mais diminuta, mas concentrada em velhos índios, que detêm uma sabedoria imensuravel e que, por isso, oferecem alguma tranquilidade a este povo que, a cada dia, vê sua sobrevivência mais e mais ameaçada pelo avanço dos brancos.


Baseado em texto de Neiza Teixeira