terça-feira, 27 de outubro de 2009

SEPÉ TIARAJU


Nós, mais de mil participantes desta Assembléia Continental do Povo Guarani, pertencemos aos povos que são os antigos donos destas terras do Sul. Aqui viveram nossos antepassados durante milhares e milhares de anos. Em paz, nossos antepassados criaram comunidades e culturas; em paz nossos antepassados criaram gerações e gerações que conviviam com base no respeito, na solidariedade e na igualdade plenos.

Para cá vieram, 400 anos atrás, religiosos europeus que propuseram à nossas antigas comunidades viver na forma das chamadas missões jesuíticas. Como vieram em paz e como o que propunham pareceu, aos olhos dos nossos antigos, bom, foram aceitos e assim surgiram os Sete Povos das Missões, envolvendo os territórios do atual Brasil, Argentina e Paraguai.

No entanto, o poder político e econômico de Portugal e Espanha, no século XVIII, entendeu que aquelas missões e os povos que delas participavam eram uma ameaça a suas pretensões de dominação colonial nestas terras americanas. Como conseqüência, os exércitos de Portugal e Espanha, juntos, desataram toda sua violência contra nossas comunidades.

Com sua guerra e suas armas, espalharam o terror e a morte em nossos campos sagrados. Nosso grande herói, SEPÉ TIARAJU, liderou a resistência de nosso povo e por isso foi assassinado no dia 7 de Fevereiro de 1756. Pouco tempo depois, cerca de 1500 guerreiros de nosso povo foram massacrados pelos exércitos invasores nos campos de Caiboaté.

Durante estes dias, em que relembramos todos estes episódios de luta e dor da nossa História, homenageamos o inesquecível Sepé Tiaraju e fomos até os campos de Caiboaté, chorar e homenagear nossos mortos, 250 anos depois do terrível massacre.

Realimentados e fortalecidos pelo espírito e pelo sangue de nossos antepassados, conscientes de que esta terra sempre pertenceu ao nosso povo e que dele foi roubada, nos dirigimos às sociedades e aos estados brasileiro, argentino e paraguaio.

No caso do Brasil, apesar da Constituição Federal de 1988 ter reconhecido nossos direitos como povos e ter mandado demarcar todos os nossos territórios num prazo de cinco anos, muito ainda falta ser feito. Apenas cerca de 40% dos territórios indígenas foram demarcados e homologados. O sistema judiciário brasileiro tem agido, em muitos casos, como instrumento dos invasores, tanto no âmbito estadual como federal. Exemplo disto foi o violento despejo na Terra Indígena Nhanderu Marangatu, no estado de Mato Grosso do Sul. Este território já estava demarcado e homologado, no entanto, a comunidade indígena que lá vivia foi violentamente expulsa no dia 15 de Dezembro de 2005 pela polícia federal, devido a ordem vinda do Supremo Tribunal Federal, que acatou ação judicial dos fazendeiros invasores. Ameaçada pelas armas, a comunidade de Nhanderu Marangatu foi para a beira da estrada e lá, o líder Dorvalino Rocha foi covardemente assassinado por pistoleiros que trabalham para os invasores da Terra Indígena.

No caso da Argentina, também existe uma Constituição Federal que reconhece os direitos originários dos povos indígenas. No entanto, por falta de vontade política e pela ação dos inimigos, a lei maior do país não é levada à prática. Não chegou até as Constituições Provinciais o reconhecimento dos direitos indígenas. Devido a esta situação, os problemas mais aflitivos de muitas comunidades indígenas na Argentina seguem sem solução ou providências que possam resolvê-los, resultando no fato de 75% dos territórios não estarem ainda reconhecidos e titulados.

No caso do Paraguai, políticos inimigos dos povos indígenas tentaram aprovar uma chamada "Lei Indígena", às escondidas e sem a consulta às comunidades que seriam diretamente afetadas por suas conseqüências, em todos os aspectos de sua vida. Somente com uma forte mobilização indígena e de nossos aliados foi possível fazer o poder legislativo recuar ante a violência que estava prestes a cometer.

Apesar deste recuo, a situação dos territórios indígenas no Paraguai é escandalosa, com a maior parte dos territórios insuficientes e não reconhecidos. Esta situação desagregadora causa a migração de famílias indígenas para as cidades no Paraguai, assim como ao Brasil e à Argentina, expulsos de sua terra original. Ironicamente, muitos invasores que se apropriam de nossos territórios indígenas no Paraguai são empresários brasileiros, gerando uma situação de profunda injustiça e miséria, que nos faz lembrar da violência colonial.

Nestes dias em que estivemos juntos, na Assembléia Continental do Povo Guarani, não comemoramos os episódios de 250 anos atrás, mas retomamos a memória do que ocorreu ao nosso povo para refletir, aprender e seguir lutando por nossos direitos, principalmente pelo sagrado direito à terra, com força e determinação. Sepé Tiaraju continua vivo na luta dos povos indígenas da América Latina. Nos 250 anos de sua morte, Sepé Tiaraju multiplicou-se em milhares de lutadores e lutadoras do Povo Guarani, dos Povos Indígenas e todos os Povos Latinoamericanos.



Declaração da Assembléia Continental Guarani em São Gabriel, RS

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Sepé Tiaraju foi um
guerreiro guarani, nascido em data desconhecida no aldeamento jesuítico de São Luis Gonzaga, na região de Sete Povos das Missões, no atual Rio Grande do Sul. Foi batizado com o nome cristão de Joseph e em 07 de Fevereiro de 1750 mudou-se para a Missão de São Gabriel, na região da Campanha gaúcha.

Tornou-se líder indígena na Guerra Guaranítica em defesa da terra e dos rebanhos guaranis contra as tropas luso-brasileiras que, de acordo com o Tratado de Madri (1750), passavam a ser posse da Coroa Portuguesa.

Viviam na região dos Sete Povos das Missões aproximadamente trinta mil guaranis. Somando-se os do Paraguai
e da Argentina, alcançaram um total estimado de oitenta mil indígenas, que habitavam em aldeias planejadas, organizadas e conduzidas como verdadeiras cidades. O interesse luso-brasileiro por esta extensa região deveu-se, além da posse territorial, ao gigantesco rebanho de gado, o maior das Américas, mantido por esses mesmos indígenas.

Pereceu em combate contra o exército espanhol
na Batalha de Caiboaté, às margens da Sanga da Bica, na entrada da cidade de São Gabriel, durante a invasão das forças inimigas às aldeias dos Sete Povos. Após sua morte pereceram aproximadamente 1.500 guaranis diante das armas luso-brasileiras e espanholas.

Por seus feitos, passou a ser considerado um santo popular (embora sem reconhecimento da Igreja Católica) e virou personagem lendário do Rio Grande do Sul
. Sua memória ficou registrada na literatura por Basílio da Gama no poema épico "O Uruguay" (1769) e por Ério Veríssimo no romane "O Tempo de o Vento". É-lhe atribuída a exclamação: "Esta terra tem dono!".
No dia 21 de setembro de 2009, foi publicada a Lei Federal 12.032/09, que traz em seu artigo 1º o texto: "Em comemoração aos 250 (duzentos e cinquenta) anos da morte de Sepé Tiaraju, será inscrito no Livro dos Heróis da Pátria, que se encontra no Panteão da Liberdade e da Democracia, o nome de José Tiaraju, o Sepé Tiaraju, herói guarani missioneiro rio-grandense".

Como homenagem ao heroísmo e à coragem de Sepé Tiaraju, a rodovia RS-344
recebeu o seu nome. Existe também no Rio Grande do Sul o município de São Sepé, nome que reflete a devoção popular pelo herói indígena.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

INTI, PACHAMAMA E RUNA

WILLKA TATA, INTI TATA!
QUE ESTE ANO HAJA BOA COLHEITA, QUE NÃO HAJA FOME!

As mãos do amauta (sacerdotes-mestres dos mais respeitados entre os inkas) apresentam uma oferenda a Pachamama - a origem de tudo, a propiciadora dos sonhos, a protetora da fecundidade e dos jovens. Ao lado dele uma enorme fogueira dá o tom místico à cerimônia.

WILLKA TATA, INTI TATA!
QUE ESTE ANO HAJA BOA COLHEITA.

Repete o amauta, para logo depois depositar a WAJTA (oferenda) sobre o fogo. Soam os PUTUTUS.(instrumento musical parecido com uma trombeta). Os amautas despejam álcool sobre o fogo para que arda com intensidade. As ÑUSTAS (donzelas) cantam e as WIPHALAS (bandeiras) se agitam.

Ao redor do templo de KALASASAYA centenas de runas (pessoas) observam em silencio respeitoso. É o prelúdio da volta de INTI, o Deus-Sol, um Novo Ano Andino. Será o ano de 5517 segundo os amautas. Ocorre no amanhecer do dia 21 de junho... como há centenas de anos, entre as 06.30 e 07.30 da manhã nas ruínas de Tiwanaku.

Os amautas do povoado dão a Pachamama uma oferenda agradecendo pelas colheitas do ano passado, por menores que tenham sido: uma TARWA ILLA, para que o gado se multiplique, e uma ESPALLA, ou tributo a terra.

Quando saem os primeiros raios de sol, os amautas pedem que todos os que estão presentes se dêem às mãos e as mostrem abertas ao céu para recebê-lo. Centenas de mãos se elevam em direção ao sol. Mãos morenas e calejadas dos camponeses do vem de longe, do norte de Potossí, que chegaram para a celebração... Mãos brancas dos moradores locais... Mãos delicadas dos visitantes estrangeiros.

Alguns entoam orações, outros se ajoelham, alguns tremem de emoção e há sempre aqueles que não conseguem conter as lágrimas. Os primeiros raios de Sol que surgem nas ruínas de Tiwanaku são considerados como bênção e possuidores de força curativa.

Os pututus vibram e começam a soar as tarkas e zampoñas. Depois da emoção vêm à alegria e com ela as danças no centro do templo de Kalasasaya.

No dia anterior, os amautas leram nas folhas de coca para ver se o ano que se inicia será melhor que o ano que termina. Mas tudo irá depender de que os camponeses não se esqueçam de fazer oferendas à Mãe Terra. O ano será o resultado da reciprocidade! A terra nos provê como uma mãe e temos que pagar por isto. Dentro da cosmovisão andina, o homem não pode viver sem pagar à terra. Trata-se de uma filosofia de reciprocidade para se viver em harmonia.

O solstício não só se converte em um ritual onde se agradece a Pachamama por todas as bênçãos recebidas durante o ano, como também se constitui em uma forma de convidar o Deus Sol a participar das atividades que a comunidade realizará durante todo o ano. Segundo os aymaras, o Sol fecunda e Pachamama germina.

Baseado em texto de Aislin Ganesha

sábado, 17 de outubro de 2009

AI APAEC e os MOCHICAS

Em Maio de 1996, o arqueólogo canadense Steve Bourget, escavando ao redor da Huaca de La Luna – pirâmide mochica situada a seis quilômetros ao sul da atual cidade de Trujillo, no Peru – encontrou um fosso com dezenas de esqueletos. Havia crânios macerados, vértebras cortadas, fêmures partidos... Ele e sua equipe levaram dois meses limpando e catalogando osso a osso, formando cerca de setenta corpos.

A CULTURA MOCHICA foi batizada em homenagem ao vale do Rio Moche, onde o alemão Max Uhle encontrou seus primeiros vestígios, em 1899. A palavra significa SANTUÁRIO na língua daquele povo, que foi falada até o final do século XVIII. Hoje ela só dá nome a lugares, como o aqueduto de Chacarpe e a cidade de Sipán. Cenas de animais fantásticos como pumas esfaqueando prisioneiros são comuns nas pinturas que adornam os potes de cerâmica desse povo, levando à desconfiança de que os sacrifícios fossem comuns. Mas ninguém havia encontrado os corpos dos sacrificados, levando muita gente a pensar que as figuras fossem apenas simbólicas. Desde 1986 Bourget observava pinturas que mostravam prisioneiros sendo atirados do alto de uma montanha, chegando a levantar a hipótese de que o morro seria uma espécie de “altar", uma “montanha sagrada”. Em 1995, ele foi apresentado à Huaca de La Luna, onde deparou com uma plataforma rochosa bem parecida àquela das pinturas nos vasos. Não deu outra: era mesmo o altar!

A iconografia mochica também serviu de pista para outro arqueólogo, o peruano Santiago Uceda, da Universidade Nacional de Trujillo. No ano seguinte ele encontrou um segundo fosso sacrifical. As descobertas tornam a Huaca de La Luna a mais importante pista de que os estudiosos dispõem para decifrar o mistério dos sacrifícios rituais entre as antigas culturas americanas.

Os sacrifícios mochicas tinham propósito religioso: eles acreditavam que o sangue humano era a única forma de conter aquilo que hoje conhecemos como El Niño – o fenômeno meteorológico que, de tempos em tempos, muda radicalmente o clima do planeta. É justamente ali, no árido litoral peruano, que as águas do Oceano Pacífico esquentam acima do normal, provocando o El Niño. Nas épocas em que o fenômeno era muito violento, as cidades mochicas sofriam com chuvas torrenciais e enchentes. Segundo Bourget, "o sacrifício humano era uma forma de tentar devolver a ordem ao mundo".

Os mochicas não desenvolveram a escrita, mas pintavam suas cerâmicas com imagens tão realistas que ilustram bem os seus hábitos culturais. Segundo o arqueólogo americano Christopher Donnan, "suas obras de arte estão entre as mais espetaculares da América pré-hispânica. Eles alcançaram um grau de realismo nas esculturas de cerâmica que supera de longe os maias, a mais desenvolvida civilização americana". O Estado centralizado e poderoso podia se dar ao luxo de sustentar uma classe de artesãos. O estilo mochica clássico é o chamado huaco-retrato, que surgiu no século V na cidade que estava aos pés da Huaca de La Luna. São vasos de gargalo com esculturas que mostram figurões da política, o cotidiano da população e cenas de sexo explícito que até hoje ruborizam os visitantes dos museus peruanos. Para produzi-los em grande quantidade, os artesãos mochicas foram os primeiros na América do Sul a usar moldes.

Mas foi na metalurgia que eles deixaram seu maior legado. As peças de ouro e cobre desenterradas em 1987 por Walter Alva no túmulo do chamado Senhor de Sipán formam o conjunto mais rico da ourivesaria pré-hispânica. Assim como a cerâmica decorada, as peças de metal eram de uso exclusivo dos nobres, que prezavam sobretudo o ouro. Para que tudo parecesse dourado, mergulhavam peças de cobre em uma solução daquele metal e diversos sais, como o bicarbonato de sódio. A mistura era capaz de criar uma corrente elétrica. Isso fazia os átomos de ouro grudar no cobre. Assim, séculos antes da eletricidade, os índios peruanos já banhavam peças em ouro.

A arte mochica fala, entre outras coisas, das propriedades milagrosas do sangue humano para resolver qualquer tipo de problema: havia sacrifícios para comemorar boas colheitas, para lamentar desastres naturais, para controlar secas e chuvas e, acima de tudo, para manter o poder sobre a sociedade. Um dos temas favoritos dessas pinturas eram as BATALHAS RITUAIS, que tinham o objetivo de capturar prisioneiros para a imolação. "Os mochicas fizeram do sacrifício humano um elemento religioso central", diz Steve Bourget. Os murais coloridos da Huaca de La Luna mostram uma figura assustadora, com dentes de felino, que traz um machado em uma mão e uma cabeça na outra. Seu nome é AI-APAEC – que, em mochica, significa TODO PODEROSO – também chamado El Degollador, em espanhol. O deus-felino é uma figura comum entre as culturas andinas; supõe-se que o seu culto tenha começado há mais de 3.000 anos, em Chavín de Huantar, a primeira cidade da América do Sul, nos Andes peruanos, que teria inaugurado o culto sistemático a um deus felino.

O desenvolvimento do culto a Ai-Apaec teve um auge por volta do ano 50 da nossa era, quando uma classe de guerreiros tomou o poder nos vales da costa norte peruana. Esses homens, conhecidos como Lordes Mochicas, criaram uma confederação de cidades-estado que dominou um território de 400 quilômetros de extensão. Transformaram enormes faixas de deserto em terras cultiváveis, construindo aquedutos tão eficientes quanto os da Roma antiga e que são usados até hoje pelos camponeses peruanos. Os mochicas também ergueram algumas das maiores construções da América pré-colombiana, como a Huaca del Brujo e a Huaca del Sol. Esta última, com mais de 40 metros de altura, ocupava uma área superior à da famosa Pirâmide de Quéops, a maior do Egito. Sua principal cidade, no vale do Rio Moche, chegou a ter 15 000 habitantes. Lá, artesãos e ourives produziram as obras de arte mais espetaculares de toda a América pré-hispânica.

"Os lordes criaram uma estrutura social incrivelmente complexa, baseada no controle da autoridade religiosa, política e militar", segundo o arqueólogo Walter Alva, diretor do Museu Brüning de Arte Pré-Colombiana em Lambayeque, Peru. Assim como os faraós egípcios, eles reivindicavam para si mesmos o status de divindade.

Os mochicas habitavam um deserto onde a água era o bem mais precioso. Como viviam da agricultura, dependiam inteiramente dos rios que descem da Cordilheira dos Andes. O calendário religioso acompanhava o ciclo das chuvas nas montanhas. Seus momentos mais importantes eram os CULTOS DA FERTILIDADE, realizados duas vezes por ano, os solstícios. Eram sempre épocas mitologicamente tensas, quando Ai-Apaec, o deus da ordem, enfrentava outra figura mítica, um Puma, representante da desordem. A vitória do Todo-Poderoso prenunciava boas chuvas e invernos amenos. Mas para garantir que ele ganhasse a luta era preciso alimentá-lo com sangue...

O El Niño era um complicador, pois qualquer desequilíbrio climático punha toda a sociedade em risco. Por isso era natural que o número de sacrifícios aumentasse nessas épocas de seca ou de grandes inundações, fortalecendo Ai Apaec na sua batalha pelo bem-estar do povo mochica.

Usando técnicas de Medicina Legal para estudar os esqueletos encontrados, descobriu-se marcas claras de que os guerreiros cativos passavam dias sob tortura, pois suportar a dor era uma prova de coragem. Mas sementes de coca e restos de alucinógenos foram encontrados no local, sugerindo que alguns guerreiros – talvez os que não estivessem agüentando a tortura – foram drogados para ajudar.

No momento do sacrifício, o prisioneiro era conduzido à pedra-altar, no alto da Huaca de La Luna, onde o sacerdote o degolava com uma espátula afiada. Marcas de corte nas vértebras permitiram identificar esse tipo de execução. Uma sacerdotisa, então, recolhia o sangue em uma taça de cerâmica. Suspeita-se que uma substância anticoagulante fosse aplicada no pescoço; assim, ficava mais fácil encher a taça. O sangue era, então, oferecido ao lorde, que o bebia. Era o ponto alto da cerimônia. Ninguém sabe ao certo quantos prisioneiros eram executados em cada cerimônia. Os cientistas estimam três mortes por vez.

Depois, alguns corpos – provavelmente dos que tenham se mostrado mais “corajosos” em suportar a dor – eram levados a um recinto fechado da huaca e, pelo tipo de corte que os ossos apresentam, deduz-se que toda a carne foi retirada; não seria absurdo imaginar que tenha sido comida. Os esqueletos, ainda articulados, eram usados como marionetes em uma espécie de DANÇA DOS MORTOS. Muitas pinturas mochicas representam esqueletos dançando e tocando instrumentos musicais. Parece macabro, mas esse tipo de sacrifício estripador geralmente tinha o consentimento das vítimas capturadas em combate: para os povos andinos, ser reduzido a esqueleto significa entrar no mundo dos ancestrais, o que é uma grande honra. E o descarnamento era uma forma de acelerar esse processo.

Entre os séculos VI e VII, o clima pirou muito. Estudos das capas de gelo da Cordilheira dos Andes mostram que, naquela época, alterações meteorológicas produziram uma sucessão de secas que durou trinta anos na região, esgotando os rios que abasteciam as cidades mochicas. A sociedade entrou em crise. Para piorar, o El Niño atacou com toda a sua fúria, esquentando demais as águas do Pacífico, espantando anchovas e outros peixes de água fria que formavam a base da dieta indígena. Nuvens escuras teriam coberto os céus durante meses. Um aguaceiro fenomenal teria atingido o deserto. Os rios encheram rapidamente, provocando inundações que arrebentaram os canais de irrigação e destruíram as casas de barro e palha dos camponeses. As grandes pirâmides, feitas de adobe (barro cru, endurecido ao sol), derreteram como montinhos de açúcar. Os sedimentos resultantes dessas chuvas até hoje podem ser vistos na Huaca de la Luna. As lavouras se arruinaram. Quem não morreu de fome ou arrastado pelas torrentes, padeceu de tifo e outras epidemias.

Os lordes também desesperaram. Como guardiões da ordem natural das coisas, seu papel era evitar a catástrofe. Assim, dezenas de guerreiros foram sacrificados na Huaca de la Luna. Mas os deuses não pareciam não ouvi-los mais; os lordes não conseguiram resolver os problemas climáticos, e acabaram perdendo a credibilidade da população. Foi o começo do fim: sem o apoio dos súditos, o poder dos senhores mochicas foi ruindo, como seus templos de barro.


Baseado no texto de Claudio Angelo

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

DIARQUIA INCA

A tradição andina tendia a dividir o governo de uma comunidade em duas metades, em que ambas se complementavam, ainda que uma tivesse um status e poder maior que a outra. A divisão clássica dos ayllus era em HANAN e HURIN, sendo o setor Hanan o que predominava numa situação normal.

Os cronistas espanhóis não foram capazes de perceberem essas estrutura política do Tahuantinsuyo porque jamais conceberam a possibilidade de um governso diárquico, devido às suas concepções ideológicas. Devemos lembrar, no entanto, que pelo simples fato se ser uma diarquia não significava que os dois reis eram iguais, mas antes que se complementavam, no marco da dualidade andina.

No caso inca, segundo Waldemar Espinoza, a diarquia já se encontrava em Taypicala, a antiga capital da cultura Tiahuanaco, da qual se originaram os Incas. Após a destruição do estado Tiahuanaco pelas invasões aymaras no setor Hurin de Taypicala, os Haran são vencidos e só alguns ayllus sobrevivem, mas submissos aos Hurin. Esses últimos são os que migram para a direção de Cuzco – representados pelo casal primordial, Manco Cápac e Mama Ocllo –, onde passam a governar, fundando o Hurin Cuzco. Só com a ascenção de Inca Roca que se restabelece a diarquia, iniciando-se a dinastia dos Hanan Cuzco.

Com Pachacútec se consolida o poder Hanan, embora continuassem a existir os reis hurin, provenientes do Ayllu Tarpuntae, de onde se escolhia o VILLAC UMU (Sumo Sacerdote do Sol). A relação entre o Sapa Inca (líder Hanan) e o Villac Umu (líder Hurin) era de complementariedade, representando as duas metades de Cuzco: o Sapa Inca ou Rei Hanan teria o poder político, administrativo e de governo geral da etnia inca, mas o aspecto religioso estava sob o poder do Villac Umu ou Rei Hurin, únicos incumbidos de alimentar os MALLQUIS (múmia dos Ancestrais) - e, portanto, os guardiães da espiritualidade e dos ensinamentos antigos, que legitimavam o poder inca
. Se o Sapa Inca era reconhecido como “FILHO DO SOL”, o Villac Umu era chamado de “SERVO DO SOL”.

A diarquia no mundo andino é um tema que ainda precisa ser melhor estudado, contando sobretudo com o testemunho dos curacas. A dualidade ou complementariedade do mundo andino não se dá só no âmbito político, mas também no social, no religioso e no econômico.

Baseado no texto de Juan Candela Alva

PACHACÚTEC - O REFORMADOR DO MUNDO

PACHACÚTEC, que em quéchua significa “AQUELE COM QUEM COMEÇA UMA NOVA ERA", é o nome simbólico de TITO CUSI YUPANQUI. Ele soube organizar todos os povos andinos para criar um Estado produtivo e expansionista como não houvera até então na América do Sul : TAHUANTINSUYO, o Império Inca. Por isso foi um verdadeiro divisor de águas na história do estabelecimento da etnia Inca na região andina.

Ao tornar-se líder dos incas – depois de uma espetacular vitória contra a tentativa de invasão dos Chanca –, iniciou uma política de expansão e ocupação de territórios muito mais amplos do que seus antecessores haviam podido algum dia imaginar. Submeteu os reinos Chanca e Ayarmaca, ocupou a região dos Tambos (hoje Ollantaytambo), fundada pelos poderosos Taipicala, anexou as etnias Cuyo, Cugma e Huata e incorporou os senhorios de Vilcabamba, Vitcus, Amaybamba, Pampa, Cotapampa, Cotanera, Omasayo e Aymarae.

Ao Norte de Cusco, tomou posse de Andahuayllas, sede dos Chanca, de inúmeras regiões e etnias da costa, como as de Nasca e Ishmay (hoje Pachacámac-Rimac), além de Pultamarca (hoje Cajamarca), na serra setentrional, e das férteis terras das margens do rio Pampa. Ao Sul, incursionou sobre os Colla e os Lupaca, vencendo-os de uma vez por todas e chegando até Tiahuanaco. A Oeste foi até Camana e a costa central peruana, e a Leste chegou a Marcapata (Carabaya).

Pachacútec não foi somente o iniciador da expansão imperial dos Inca; foi, de acordo com todos os registros, o organizador do Tahuantinsuyo em seus mínimos detalhes, aproveitando o conjunto de conquistas culturais que etnias sem conta haviam desenvolvido no correr da história e as dispondo de forma a permitir a gradativa hegemonia Inca. Num trabalho que envolveu, principalmente, a crescente organização centralizada de todas as formas de pensar, sentir, agir e fazer das incontáveis etnias que se espalhavam pelas regiões da América Andina.

Para a consolidação e expansão do Tahuantinsuyo foi necessário forjar uma série de lendas sobre as origens da etnia Inca, valorizando-a como a forma mais bem acabada de civilização possível. De acordo com elas, tudo teria tido começo no Lago Puquinacocha (atual Lago Titicaca), onde um casal primordial – Manco Cápac e Mama Ocllo – teria sido concebidos pelo Deus-Sol e enviados a Cuzco para civilizar os habitantes daquelas regiões. Desta forma, a andança dos primeiros incas desapareceu das versões oficiais e foi dado destaque ao período em que assumiram o poder em Cusco, na passagem do Século XII ao XIII. A desfiguração histórica foi tão intensa que as primeiras emigrações passaram a coincidir com o início do ordenamento do universo e dos homens por TICSI HUIRACOCHA PACHACHAYACHIC – o maior Deus da hierarquia teológica e cosmogônica de toda a região andina -, mesclando-as com a peregrinação deste deus ao Norte da região; então, Manco Capac aparece como filho de um deus e nomeado por este como regente da humanidade, sempre à frente da etnia Inca.

Mas foi necessário muito mais que apenas uma coleção de lendas para criar, organizar e estabelecer um Estado Imperial e a etnia Inca teve de intervir em todos os aspectos da vida andina da época, codificando-os e os dispondo de forma a regulamentá-la em detalhes. Para isto, Pachacútec organizou a base das atividades do Tahuantinsuyo:

● regulamentou o sistema de MITMAS ("traslado de povoações", dirigido pelo Estado com várias finalidades);
● delimitou as terras, os mananciais e os pastos para racionalizar a produção;
● ampliou o uso de estatística no controle da população e da produção têxtil, agrícola e pecuária;
● iniciou o sistema de expansão e controle de etnias pela redistribuição organizada de produtos agropecuários;
● intensificou a construção de PATAPATAS (ou “andenes”, como os espanhóis os chamaram) e HUAROHUAROS (ou "camellones") nas serranias, visando ampliar as terras agricultáveis em todas as regiões conquistadas;
● realizou a demarcação política dos reinos e senhorios, mantendo as características locais de cultura e poder;
● incrementou a construção de caminhos, pontes e llactas ("cidades planejadas"), com a infraestrutura política, civil, militar e judicial necessária para uma boa administração;
● dividiu o Estado em suyos ("regiões") e huamanis ("províncias");
● implantou o serviço de tucricuts ("governadores") e de tucuirucuts ("olheiros do Estado");
● iniciou a utilização do sistema decimal para controle da população através de pachacas (unidades administrativas de 100 famílias), guarangas (unidades administrativas de 1.000 famílias) e unus (unidades administrativas de 10.000 famílias), sistema este que já havido sido adotado pelos Huari, quando de seu ponto máximo de desenvolvimento;
● procedeu à replanificação e reedificação total da cidade de Cusco, sempre utilizando maquetes;
● concebeu e construiu um novo templo sacerdotal, o Q’ORICANCHA, construindo-o de pedra e adobe e fazendo-o revestir de placas de ouro, utilizando blocos rochosos vindos da região dos Sano (nos arrabaldes de Cusco) e empregando um verdadeiro exército de mitayos ("trabalhadores por turno"), aos quais pagava com roupas, coca, alimentos e bebidas;
● conformou definitivamente o sistema de parcialidades de Cusco, demarcando com precisão as terras de Anan e Urin – Alto Cuzco e Baixo Cuzco –, entregues aos principais ayllus de cada parcialidade;
● estabeleceu benefícios especiais para as etnias Sahuasera, Antasayac e Alcahuisa, dando-lhes o título de Incas de Privilégio (costume ampliado mais tarde para premiar aliados políticos e líderes militares ou especialistas técnicos);
● iniciou a construção da fortaleza-templo de Sacsayhuamán nos cerros ao Norte de Cusco, inspirando-se nas velhas construções de Taipicata e enviando especialistas até aquela longínqüa região;
● preencheu a praça principal da cidade (Aucaypata, a futura Plaza de Armas) com areia vinda de Chincha, secando o banhado ali existente e elevando seu nível;
● ampliou a Acllahuasi da cidade ("Casa das escolhidas", mulheres que ali se dedicavam à produção das bebidas e artefatos têxteis necessários à nobreza Inca e suas práticas de retribuições, como veremos mais adiante);
● instalou cárceres para delinqüentes em Sano;
● erigiu pousadas (tambos) e depósitos estatais de gêneros alimentícios (collcas) no vale do rio Vilcamayo;
● definiu o papel dos curacas (líderes locais), do exército, dos funcionários e dos administradores estatais, montando uma infra-estrutura administrativa burocraticamente organizada;
● definiu as faixas etárias dentro das quais os cidadãos eram considerados responsáveis por determinados papéis sociais;
● acatou as regras sucessórias dos curacazgos regionais, com o objetivo de evitar tumultos ou guerras civis depois da morte de cada curaca;
● estabeleceu a guarda pessoal do Sapainca ("O Único Inca"), sempre de guerreiros vindos de Anancusco;
● criou escolas para a educação e a formação histórica e/ou administrativa da elite Inca, ampliando o uso de quippus ("cordões com nós", com os quais se registrava quantidades e qualidades estatísticas);
● reorganizou e instituiu festas religiosas; e
● fez propagar amplamente uma série de versões mitificadas sobre seus antecessores, estabelecendo-os como paradigmas de toda a vida organizada e civilizada da humanidade andina. Nesta versão ideologizada, Manco Cápac foi transfigurado como o Organizador Inicial do Tahuantinsuyo e Pachacútec como seu Organizador Definitivo, sempre tendo por objetivo justificar a dominação das etnias subjugadas e conseguir mais facilmente sua submissão.

Por tudo isso Waldemar Espinoza Soriano resume assim o papel deste Inca no processo de implantação do Tahuantinsuyo: "Pachacútec e seu co-regente (Túpac Yupanqui, seu filho) levaram a cabo o que se pode chamar de um 'casamento de conveniência' entre a velha civilização andina, sobretudo a da serra, incapaz de renovar a si mesma, e a etnia Inca, que não destruía o conquistado mas dele se apropriava, o assimilava e se acreditava legítima sucessora dos deuses estelares. O surgimento do Estado Imperial Inca, conseqüentemente, não implicou o desaparecimento das culturas precedentes e das demais etnias andinas (o que foi possível) porque quase todas, praticamente, participavam dos mesmos elementos culturais. A formação do Império foi rápida e fácil porque entre Cusco e muitas etnias regionais haviam inúmeros traços de semelhança, coincidência em crenças e concepções políticas ou morais, fenômeno que vinha sendo gestado deste os vetustos tempos de Chavín, de tal forma que a expansão Inca veio a ser a vitória do sincretismo".

Pachacútec morreu em 1471, e teve sua múmia colocada no Templo do Trono que fizera construir em T'oqoq'achi (hoje San Blás, em Cusco); ao seu lado estava o principal ídolo dos Chanca, de acordo com o costume de conservar o ídolo dos povos conquistados como troféus do Inca que os submetera.

Baseado no texto de Luiz Carlos Teixeira de Freitas

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

WIRACOCHA NA MEMÓRIA BRASILEIRA

KON ILLA TICSI WIRACOCHA, ou simplesmente VIRACOCHA, é possivelmente uma divindade de origem pré-incaica, tendo sido cultuado inicialmente na região de Waruchiri, vale ao sul da atual cidade de Lima, com o nome de KUNIRAYA ou KON IRAYA.

Entidade civilizadora, que ensinou diversas técnicas aos povos andinos, notadamente agrícolas, Wiracocha era descrito como tendo pele clara, cabelos e barbas longas e vestindo uma longa túnica.

Essa figura santa teria desagradado alguns curacas (chefes) da época e esses tentaram matá-lo. Wiracocha, então, de acordo com o mito mais tradicional, desapareceu pelo Oceano Pacífico, "caminhando sobre as águas como se estivesse na terra, sem afundar", prometendo que um dia voltaria. Por isso, os conquistadores espanhóis, no século XVI, foram confundidos com emissários de Wiracocha.

Curioso notar que um personagem semelhante à essa divindade inca existe também na memória dos índios do Brasil. Aqui, porém, é conhecido como SUMÉ, ZUMÉ ou PAI SUMÉ. Sobre isso, Hernâni Donato garimpou informações preciosas em seu "Sumé e Peabiru". Informa que "guardam os Tupi a lembrança de um benfeitor e legislador desaparecido, a quem chamam de Sumé, que lhes ensinou a viver em boa regra, a cultivar a mandioca, e que desapareceu depois para o lado do mar..."

Donato lembra, ainda, os botucudos da bacia do rio Doce descrevem Sumé com "cabeleira clara, ruiva, estatura maior do que a dos outros homens, andando à tona das águas ou sobre as nuvens (...) inventou o batoque e as danças (...) e feria com invisível flecha o coração de seus inimigos".

Para alguns cronistas do século XVI, como o jesuíta Antônio Ruizs de Montoya - fundador das missões do Guairá -, Sumé teria chegado ao Brasil e depois, abrindo o Caminho do Peabiru, teria chegado ao Peru. Os jesuítas o relacionaram com a figura de São Tomé, apóstolo de Jesus.

Donato diz que o fascínio por Sumé-Wiracocha no Brasil fez com que Villa-Lobos compusesse, em 1953, "Sumé-Pater Patrium" (Sinfonia nº 10). E mais: fez com que Frei Caneca, em 1823, sugerisse num ensaio do escudo do Império do Brasil ostentasse a figura de um pé humano em "memória do apóstolo Tomé que, como se diz, andou por aqui, pregando aos índios".

Hernâni Donato sublinha que o fabuloso Wiracocha-Sumé esteve presente não só no Peru e no Brasil, mas na maior parte da América pré-colombiana: "A mesma aparência física e o nome, apenas com variantes leves de sul a norte, comparecem na mítica de quase toda a América. É este, o do Sumé, o mais sensível traço de ligação entre povos e regiões do Novo Mundo".

E cita A. Métraux, falando do enigmático fantasmas do "velho fazedor de terra das primitivas cosmogonias, comum a todas as tribos indígenas do Alasca à Terra do Fogo".

Baseado no texto de Rosana Bond