quinta-feira, 14 de setembro de 2017

A JUSTIÇA INDÍGENA ORIGINÁRIA

A justiça comunitária, ou justiça originária indígena campesina, é o sistema jurídico dos povos indígenas, administrado pelas autoridades originárias e regido pelas normas e procedimentos por meio dos quais os povos indígenas, originários e comunidades campesinas regulam a vida de suas comunidades e solucionam conflitos.

Quando acontece um roubo na comunidade aimara de Calangachi, perto do Lago Titicaca, no departamento de La Paz, vários passos devem ser seguidos. A vítima, em primeiro lugar, deve ir até as autoridades responsáveis, os secretários de Justiça. Em seguida, as autoridades mobilizam toda a comunidade para comunicar que uma família sofreu um roubo e inicia-se uma investigação. “Começam a deliberar, a rastrear. O campo não é de cimento nem de tapete, onde não se pode ver nada. No campo, se podem ver as pegadas na terra”, explica Rodolfo Machaca, dirigente da comunidade.

Localizado o acusado, este é submetido a uma censura moral por parte de toda a comunidade. Publicamente, ele – ou ela – deve explicar as razões do delito. “O ladrão fala, pode dizer a verdade ou mentir. Mas isso não interessa. O que interessa é que nesse momento ele reflita profundamente sobre o que fez e devolva o que roubou”, aponta Machaca. A penalidade é pedir desculpas não só para a vítima, como também para toda a comunidade, além de se comprometer a não voltar a cometer o mesmo erro. Também pode ter que compensar a comunidade com trabalho (construção de adobes, trabalho nas terras das escolas, reforma de prédios comunais).


E, em Calangachi, se recebe um huascazo, uma chicotada, como forma simbólica de garantir que não se desviará do caminho correto. Mas a punição não se resume a isso. Durante um bom tempo, a pessoa é vigiada de perto por todos da comunidade, e uma pessoa da sua família deve responsabilizar-se por sua conduta. “Os olhos de todos os comunários ficam voltados para essa pessoa, onde está, o que está fazendo, se está trabalhando. Todos vigiam. A intenção é fazer com que ela comece a trabalhar e a se comportar bem”, completa Rodolfo Machaca.

Segundo o conjunto de normas de muitas comunidades, a mentira e a preguiça também são vistas como delito. Isso porque afetam diretamente a comunidade e a convivência harmônica entre seus membros. Ama sua, Ama llulla, Ama quella (Não seja ladrão, não seja mentiroso, não seja preguiçoso) são normas de fundamental importância para os povos quéchua e aimara. E como romper essas regras é um delito, também são vistos como uma vergonha, passível de punição.

“No caso da mentira, é igual. Convoca-se o comunário para que explique por que mentiu. Depois de horas de conversa, ele começa a falar e se conscientiza, desde o coração, passa a dizer a verdade e explica por que mentiu. As autoridades recomendam que não faça isso, mas, por um tempo, mesmo que ele esteja falando a verdade, tudo o que sair dos seus lábios não é crível para a comunidade. Para recuperar a confiança, tem que corrigir sua conduta. É uma sujeição psicológica, para restaurar a pessoa. Isso se chama ‘inserção’ na comunidade”, explica Machaca.

COMUNIDADE
Em cada comunidade, vivem entre 80 e 100 famílias, dependendo das características de cada região. Cada grupo tem suas próprias regras e normas, de acordo com usos e costumes muitas vezes milenares. “Isso serve para regular o caráter de uma família, de uma pessoa e da coletividade”, salienta Rodolfo Machaca. Essas normas têm a ver com o mesmo significado de “ser” comunidade: ali, todos são família e qualquer dano ao outro é visto como grave. “A vida tem de ser harmônica. Harmônica com a Mãe Terra e também entre nós, como seres humanos”, considera Julia Ramos, secretária-geral da Confederação de Mulheres Campesinas Bartolina Sisa.

Julia é de outra comunidade, quase do outro lado do país, Ancón Grande, no departamento de Tarija. No local, os problemas se resumem principalmente a danos causados por animais. “Por exemplo, temos nossas vacas, nossos burrinhos. Se eles entram no seu cultivo e causam dano, o primeiro passo é tentar entrar em um acordo, você e eu. Tenho que reconhecer, mas se não quero pagar, digo: ‘Não vou fazer nada’. Aí vem o conflito, e temos de nos dirigir às autoridades da comunidade, que são como mediadoras”, informa Julia. “Aí entramos em acordo, não ofendo você, que também não me ofende. E na mesma ata constam as penalidades. Se voltar a acontecer, tem de se pagar multa. O melhor, como dizemos em Tarija, é levar a festa em paz. Nos ajudamos, cooperamos, e aí continua a vida em comunidade”.

O prestígio e o respeito de cada um estão de acordo com o seguimento das normas. “Na comunidade, ninguém quer ser conhecido como sendo de uma ‘família ruim’. ‘Essa é família de ladrões, ou de mentirosos, como você vai se casar com essa pessoa?’, assim se comenta. Por isso, desde wawitas [crianças], nos dizem: ‘Não vá cometer erros’ ”, relata a vice-ministra de Justiça Originária Indígena e Campesina, Isabel Ortega, nascida em uma comunidade do departamento de Oruro.

GRATUITA E REPARADORA
As normas dos povos indígenas, originários e comunidades campesinas constituem em conjunto seu próprio Direito, e vão criando precedentes pela repetição e pela prática cotidiana. É bom esclarecer que o sistema jurídico dos povos indígenas não é um meio alternativo de solução de conflitos, e sim uma jurisdição especial, composta por autoridades, normas e procedimentos administrados no contexto e sobre a base da cultura e valores de cada povo indígena.

A Constituição boliviana reconhece 36 etnias, mas, segundo o Conselho de Ayllus e Marcas do Qollasuyo (Conamaq), existem no país pelo menos 54 etnias ou nações originárias. Cada uma delas possui um conjunto de normas e, assim, seu próprio Direito. Algumas dessas etnias estão isoladas, e são de difícil acesso, seja por questões geográficas ou por opção (como é o caso dos Pacahuaras), o que faz com que conhecer as normas, usos e costumes de cada uma delas seja um desafio e uma dificuldade para pesquisadores e mesmo para o Estado boliviano.

Mas existem características já identificadas como comuns nos diferentes tipos de justiça originária. Uma delas é a gratuidade. Para as comunidades, esse é um ponto muito importante. A Justiça, assim como o trabalho das autoridades, faz parte de uma lógica de trabalho comunitário e tem a ver com direitos que são de todos. Portanto, não deve ter valor financeiro. “A justiça ordinária funciona com dinheiro e o governo tem que destinar recursos para que funcione, tem que pagar o salário dos juízes, dos funcionários. A energia que move a justiça ordinária é o dinheiro”, considera Rodolfo Machaca. Também por não depender de papéis, advogados e juizados, a justiça originária é rápida. “Não passa por outras instâncias e é muito mais rápida. Não tem suborno, não tem chantagem, não tem processo. Não tem que perder o tempo procurando advogado. Só tem que ir diante da autoridade originária competente”, conta Juan José Sardina, da nação Chichas, localizada ao sul do departamento de Potosí.

E a justiça originária é, principalmente, reparadora. Ou seja, não busca uma punição por vingança, e sim soluções práticas para o bem de toda a comunidade e a reintegração do infrator. Por essa razão, depois do julgamento e do trabalho comunitário que deve realizar, aquele que infringe as regras deve ir a todas as casas de toda a comunidade para se desculpar. E todos dão conselhos. A partir desse momento, todos são responsáveis. “Porque dentro de um ayllu, se entende que temos que conviver como família. Isso é o ayllu”, explica Juan José.

Nos casos de delitos graves, como assassinato e violação sexual, o acusado é encaminhado à justiça ordinária, além de receber também uma punição por parte da comunidade, a mais dura de todas: o desterro. Isso significa perder tudo, ser apagado da memória da comunidade, deixar de existir para aqueles que antes eram sua família. “Aquele que ‘elimina’ uma pessoa, com ou sem motivo, é expulso da comunidade e entregue à polícia. Perde todos os seus bens, seu terreno, sua casa, tudo. Cometeu um delito grave e não merece a convivência em comunidade”, detalha Rodolfo Machaca.

RECONHECIMENTO
Sendo um sistema jurídico com estrutura e procedimentos próprios, a justiça originária indígena campesina não engloba a “justiça” feita pelas próprias mãos por uma multidão eventual. “Os linchamentos não têm nada a ver com a justiça dos povos originários. Essas pessoas que usam o discurso da justiça comunitária estão usando isso para encobrir um delito, que é o linchamento, que é tomar a justiça pelas próprias mãos sem um processo justo, sem uma resolução, sem análise e sem investigação”, explica o advogado Yamil Vera Callisaya.

O artigo 190 da Constituição boliviana estabelece que “a jurisdição indígena originária campesina respeita o direito à vida, o direito à defesa e demais direitos e garantias estabelecidos na Constituição”. “Eu não posso dizer que estou fazendo justiça se estou me convertendo em um assassino”, considera Julia Ramos. “É preciso respeitar o direito à vida. A justiça indígena não mata e não lincha, ela orienta”, explica a vice-ministra, Isabel Ortega.

O reconhecimento pela Constituição foi um primeiro passo importante, mas ainda existem muitas arestas a serem aparadas. “É preciso fortalecer nossa justiça indígena originária em nível nacional e também coordenar para que as duas justiças se apoiem”, considera Isabel Ortega. “Temos que recordar que esse modelo de justiça veio de um grupo social que formou durante séculos sua própria cultura, e tem sua própria filosofia de vida. Muita gente não entende bem por que se aplica essa justiça, como se aplica e tampouco querem entender ou aplicar essa justiça. E quando um advogado ou um jurista vai a uma comunidade, querem impor as leis que aprenderam na universidade”, considera o advogado Yamil Vera.

Provavelmente o tema não passa pela aceitação ou pela tolerância. Neste momento, isso é pouco. A hora é de aprender. “Queremos reconstruir os valores que tiveram nossos ancestrais, nossos antepassados. Não como está a sociedade agora, com ameaças para a tranquilidade da vida do ser humano, dos animais. Não faltam depredadores da natureza, de animais, de seres humanos. Aonde estamos chegando?”, questiona Rodolfo Machaca. Boa pergunta.

BREVE HISTÓRICO DA JUSTIÇA INDÍGENA
No que agora é o território boliviano, antes de se tornar colônia, existiram vários sistemas jurídicos. O mais importante foi o Tawantinsuyo andino, que se expandiu desde o sul da Colômbia até o que hoje é o norte do Chile. Mas também existiram outros modelos como é o caso dos guaranis, chiquitanos, mojeños, pacahuaras, guarayos, entre outros – hoje se reconhecem 36 nações originárias e, todavia, existem nações não reconhecidas.

Durante o período como Colônia, o governo impôs seu modelo de Direito e seu próprio sistema jurídico aos habitantes originários que viviam na região. Muitos conhecimentos dos povos foram perdidos, nações inteiras exterminadas. “Os espanhóis chegaram para nos invadir, mas desde antes tínhamos nossas autoridades e nossas leis. Quando nos invadiram quiseram que deixasse de existir nossa justiça, mas nós seguimos”, considera a vice-ministra de Justiça Indígena Originária e Campesina, Isabel Ortega.

Como consequência da aprovação do Convênio 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas (1989) e da Marcha pelo Território, a Dignidade e a Vida protagonizada pelos povos indígenas de terras baixas da Bolívia (1989), em 1994 houve uma reforma na Constituição dessa época, reconhecendo o Estado boliviano como “multiétnico e pluricultural” e dando o direito às comunidades indígenas e campesinas de administrar seu próprio sistema jurídico.

Mas só em 2006, com a ascensão de um descendente aimara à Presidência do país, criou-se pela primeira vez na estrutura orgânica do Poder Executivo um vice-ministério dedicado à justiça originária, o Vice-Ministério de Justiça Comunitária, hoje denominado Justiça Indígena Originária Campesina. Em setembro de 2007, o sistema jurídico dos povos indígenas foi reconhecido pela Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, sendo ratificado dois meses depois como lei boliviana. Em 2009, foi promulgada a nova Constituição do país, que deu especial espaço à justiça originária.

Texto de Lídia Amorim, em “Revista Fórum Semanal

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

OS TIRIYÓ, filhos do barro e da escuridão

Os Tiriyó que vivem no Brasil compartilha, desde o final dos anos 1960, a faixa oeste do Parque Indígena de Tumucumaque, com Katxuyana, Txikuyana, Ewarhuyana e Akuriyó. Algumas famílias tiriyó encontram-se na faixa leste do parque, convivendo mais com Aparai e Wayana que habitam no médio e alto curso do rio Paru de Leste. No Suriname, onde vivem em maior número que no Brasil, os Tiriyó encontram-se nos rios Tapanahoni, Sipariweni e Paroemeu.




Costumam dizer que “Tiriyó” é o nome que o branco lhes deu. Quando falam em sua própria língua identificam-se como “Wü Tarëno” (Eu sou Tarëno), que significa “Eu sou daqui, dessa região”.

Até a década de 1960, época da chegada dos missionários em sua região, os ascendentes dos atuais Tiriyó reconheciam-se como pertencentes a grupos diferenciados, com denominações próprias. Relacionavam-se entre si, e com outros grupos indígenas vizinhos, por meio de redes de troca, guerra, migração e comércio. Por compartilharem uma ampla faixa de terras consideravam-se todos Tarëno, ou seja, “os daqui” (dessa região), e que inclui diferentes grupos, dentre os quais se encontram identificados em fontes escritas e orais os próprios Tiriyó, Aramixó, Aramayana, Akuriyó, Piyanokotó, Saküta, Ragu, Yawi, Prouyana, Okomoyana, Wayarikuré, Pianoi, Aramagoto, Kirikirigoto, Arimihoto, Maraxó e outros. Com a chegada dos missionários franciscanos no lado brasileiro de suas terras, e protestantes no lado surinamês, todos esses grupos foram englobados sob o nome “Tiriyó” no Brasil, e “Trio” no Suriname. Por esses nomes genéricos que se tornaram mais conhecidos, passando então a utilizá-los no contato interétnico, sem no entanto deixarem de continuar designando-se, em sua própria língua e entre os seus, como Tarëno.

Os Tiriyó vivem, de longa data, num meio multi-lingüístico, seja por conviverem historicamente com a imensa diversidade dialetal e lingüistica própria dos grupos Karib, Tupi e Aruak da área guianense, assim como dos grupos de africanos e descendentes refugiados que povoaram a região e arredores. Ademais, por viverem em ambos os lados da fronteira Brasil/Suriname, há mais de meio século parte dos Tiriyó que vive no lado brasileiro convive com falantes do português e do alemão, e parte que vive no Suriname convive com falantes do holandês e do inglês. Assim, além de sua própria língua, os Tiriyó falam, ou pelo menos compreendem, as línguas dos grupos, agentes e países com os quais mantêm relações mais estreitas.

As primeiras notícias a respeito de grupos que mais tarde vieram a compor os atuais Tiriyó remontam ao século XVII. Mas é somente na segunda metade do século XX que abandonam a condição de relativo isolamento em relação aos ocidentais. Até então, mantinham uma densa rede de trocas e guerras entre si e com os demais grupos indígenas vizinhos, além de manterem relações comerciais com os Mekoro (negros refugiados da antiga Guiana Holandesa), por meio de quem obtinham bens manufaturados em troca de produtos nativos. Seus contatos com ocidentais eram indiretos ou esporádicos, quando da presença de viajantes em algumas de suas aldeias.

Até 1950, consta de fontes escritas e orais alguns contatos diretos de grupos ancestrais dos Tiriyó com ocidentais. Em 1906, Goeje, tenente neerlandês, visita algumas aldeias e recolhe as primeiras notícias mais detalhadas. Em 1928, por ocasião de uma viagem de inspeção de fronteiras, o então General Rondon encontra os “Maratchó” e os “Ragú-Prouyana”. Nove anos mais tarde, o Comandante Braz Dias de Aguiar faz contatos com os Maratchó do alto rio Panamá e com grupos das cabeceiras dos rios Marapi, Cuxaré e Paru de Oeste. Ainda no decorrer da primeira metade do século XX, principalmente na década de 50, alguns aventureiros e expedições de exploradores mantiveram contatos esporádicos, mas deletérios com grupos da região, causando doenças graves e um aumento significativo de mortes nas aldeias da região.

É apenas nos anos 60, com a chegada de missões religiosas na área, que este quadro começa a se reverter. Nesse período, a Força Aérea Brasileira (FAB) abriu um campo de pouso na região, promovendo assim o início da instalação da “ Missão Tiriyó” no lado brasileiro. Na mesma época, surgiram no Suriname duas missões protestantes, que passaram a disputar entre si a centralização do maior número possível de grupos indígenas dos arredores. De fato, muitos Tiriyó atravessaram a fronteira atraídos pelas missões protestantes, enquanto os que permaneceram no Brasil aglomeraram-se em torno da missão católica que se estabeleceu no alto Paru de Oeste.

ORGANIZAÇÃO SOCIAL
Nos locais denominados “pata”, é possível identificar a unidade sócio-espacial básica de referência para os Tiriyó. Pata equivale ao que costumamos designar, genericamente, de aldeia. Em tiriyó, pata significa lugar de moradia, e cada um destes lugares está associado ao seu “pataentu”, ou seja, ao “dono do lugar”, aquele que identificou, escolheu o local e nele reuniu um conjunto de parentes bi-laterais.

Cada pata é composta por uma única ou por um conjunto de unidades residenciais, denominadas pakoro. Em cada pakoro, normalmente, vive um casal com seus filhos solteiros e/ou com sua filha e genro recém-casados - composição básica de um imoitü, termo que designa grupo familiar de parentes co-residentes.

Imoitü é uma categoria que designa a existência de parentesco (real ou virtual) e de co-residência, mas possui um caráter relativo e necessita de um referente espacial para que se possa compreender, contextualmente, seu escopo de referência. Neste sentido, as possibilidades de composição de um imoitü variam conforme o âmbito que se tome, e ao longo de um gradiente que vai da família nuclear, que co-habita em uma mesma pakoro, passando pelo conjunto de parentes bi-laterais que co-habitam em uma mesma pata, ou ainda por um conjunto de parentes bi-laterais que residem em duas ou mais pata relativamente próximas. É possível chegar até um limite genérico, em que a co-residência no mesmo território, de um ponto de vista mais amplo, designa o pertencimento ao conjunto dos imoitühton (plural de imoitü num sentido coletivo).

O número de pakoro existentes em uma pata varia de acordo com o número de parentes que o pataentu consiga reunir e conforme o tempo de existência do lugar. A disposição das pakoro ocorre em torno de um espaço denominado anna, que é uma espécie de praça pública, equipada com uma toëfa (tábua de dança), onde ocorrem as festas. Normalmente, há ainda, no espaço da anna, uma casa de reuniões, frequentemente de formato oval ou retangular, denominada paiman.

O território mais amplo que circunscreve o conjunto das pata em que reside toda população é designado “Tarëno nono”, ou seja, “terra dos Tarëno”. Embora seja possível constatar que não há uma distribuição aleatória, mas um padrão de ocupação baseado na formação de conjuntos de pata em torno das principais bacias deste território, não há, em tiriyó, termo específico para designar tais conjuntos.

Assim, enquanto pakoro (casa), pata (aldeia) e tarëno nono (território) servem para designar realidades ao mesmo tempo físicas e sociais, sendo portanto unidades sócio-espaciais de referência, os conjuntos de pata que se formam em torno das bacias do “tarëno nono” não encontram, em termos nativos, uma concepção que permita recortá-los enquanto unidades sociológicas. Tais conjuntos, de fato, constituem realidades físicas e sociais, mas não configuram “unidades”, e sim “dinâmicas” que são fruto das relações entre as unidades sócio-espaciais básicas tiriyó, ou seja, entre as pata.

Fisicamente, apresentam-se na forma de “aglomerados” de “aldeias” em torno dos cursos de alguns rios. Na falta de termos nativos, a noção de aglomerado permite descrever uma realidade que, de fato, aparece-nos de forma altamente fluida e provisória, porém, se tomamos a falta de termos nativos como um indício de que entre a unidade social básica (pata) e a unidade social mais ampla (tarëno nono) não há “unidades” sociais intermediárias, nem simplesmente “fluidez”, mas “dinâmicas” sociais que funcionam sob formas específicas de articulação social, então a noção de “redes de sociabilidade” se torna mais útil à compreensão da paisagem sociológica da região.

Com base nesta perspectiva, tem-se nas redes de relações entre os pataentu a espinha dorsal da estrutura social tiriyó, e na pata, a unidade sociológica básica de referência desta estrutura. O nível de maior densidade nas relações sociais é dado pela co-residência entre o pataentu e sua parentela bi-lateral, que equivale ao seu “yimoitü” (“minha família” ou “meus parentes co-residentes”). No interior de cada pata, a parentela de um pataentu tende a manter, entre si, relações estreitas e preferenciais de troca matrimonial. Cada parentela local corresponderá a uma única ou a mais de uma pakoro, conforme sua extensão e sub-divisões. Em seguida, há o nível inter-local, dado pelas relações entre os pataentu de lugares diferentes. Neste nível, cada pata funciona como unidade trocadora e estabelece, através de seus sub-componentes, as pakoro, trocas simultâneas com membros de outras pakoro, de diferentes lugares. Formam-se, assim, múltiplos direcionamentos nas relações de troca.

RITUAIS

Dentre os rituais que acionam o funcionamento das redes de relações inter-comunitárias, destacam-se o diálogo cerimonial e as festas. Ambos têm em comum o potencial de fazer e desfazer os laços que interligam o conjunto das comunidades locais, que, no caso tiriyó, corresponde ao conjunto das patahton (plural de pata), e têm ainda em comum, embora por mecanismos distintos, o poder de transformar quem era “de fora” em alguém “de dentro” e vice-versa.

Cada um destes rituais, porém, corresponde a âmbitos distintos. O diálogo cerimonial põe em foco relações entre membros de diferentes itupü, tendo como figura principal o tamutupë (chefe de uma itupü); e as festas põem em foco relações entre membros de diferentes pata, tendo dentre seus principais protagonistas a figura do pataentu (dono do lugar). Do ponto de vista das relações internas às fronteiras sócio-culturais nativas, o diálogo cerimonial e as festas permitem que relações do tipo kutuma (relação entre não-parentes) sejam administradas e que sejam viabilizados, ou evitados, o estabelecimento de novos laços.

Cada um destes rituais encerra, a seu modo, um sinal positivo e outro negativo. Por meio do diálogo cerimonial, que implica um desafio de argumentos entre chefes de itupü diferentes, ambas as partes podem sair com vantagens iguais, ou uma delas em desvantagem. E, por meio das festas, por um lado surgem novas possibilidades de trocas matrimoniais ou materiais, mas, por outro lado, o contato com quem é “de fora” abre margem para novos conflitos e descontentamentos. Mas este é um jogo político com o qual os Tiriyó se mostram muito bem familiarizados, de tal forma que o seu mundo é impensável sem essas instituições ou sem formas adaptadas delas. É por meio delas que se negociam casamentos e bens, assim como se recebem visitantes.

Em contextos que extrapolam as fronteiras sócio-culturais nativas, como é o caso das históricas relações de comércio com os Mekoro (negros), bem como em contextos recentes, de maior convívio com os Karaiwa (brancos do continente) e com os Pananakiri (estrangeiros de além-mar), observa-se na performance dos encontros, apesar das evidentes dificuldades linguísticas, a tentativa de administrar as relações nos moldes das relações baseadas no diálogo cerimonial.

Um momento na vida dos Tiriyó especialmente interessante de ser focalizado, já que parece condensar e confrontar todas as dimensões, valores e seres que fazem parte deste mundo, é o da Festa. Os Tiriyó definem a Festa como uma “brincadeira” que “tem que ser organizada”. O que remete à ideia de brincadeira na Festa são as encenações e imitações de situações e de seres diversos que compõem o seu universo. Também o clima lúdico em que os momentos se desenrolam e, ainda, a leveza de estado de espírito dos participantes parecem apontar para a pertinência de tal definição.

Em suas festas fazem-se presentes os próximos e os distantes, os “iguais” e os “diferentes”, os parceiros e os inimigos, os humanos e os não-humanos. Nelas, desenrola-se a sequência mítica por meio da qual um estado de guerra inicial dá lugar a um processo de enyawa (termo que designa a constituição de uma parceria), de tal forma que a aliança - que pode envolver casamento, mas não necessariamente - entre uns e outros torna-se possível. Neste sentido, paralelamente à ideia de brincadeira, a festa remete à ideia de guerra. Com efeito, as etapas das festas tiriyó parecem corresponder ao processo de afronta, guerra, apaziguamento e troca, ou então, de estranhamento, familiarização e aliança recorrente em suas narrativas e mitos. É interessante notar que os termos brincadeira e guerra parecem intercambiáveis. Assim, quando um Tiriyó diz que a festa é uma brincadeira, bem poderia estar dizendo que na festa se “brinca de fazer guerra”.

COSMOLOGIA

A origem do mundo para os Tiriyó corresponde à própria origem do espaço e do tempo, para além há o indizível, associado à escuridão, ao silêncio e à falta de movimento. Kuyuri é o primeiro ser que existiu, ainda sem forma, apenas com existência. Dizem que Kuyuri não tinha cara nem de homem, nem de bicho, não tinha forma porque não foi feito por ninguém, ele simplesmente 'brotou' (ahtao) da mistura primordial que deu origem ao início dos tempos (pena ahtao), época definida como onde e quando a vida brotava 'sem pedir', por si própria. Assim Kuyuri designa o ser dotado de uma luz, surgido onde antes havia apenas a escuridão; de fala mágica, onde antes havia só o silêncio; e de um fluido fértil, que antes era inerte.

O mundo de Kuyuri é descrito como uma paisagem terrestre clara, circundada por um meio aquático, e envolta pela escuridão. Neste mundo, Kuyuri vivia sozinho, tinha a palavra, mas não tinha com quem conversar; enxergava mas não via ninguém. Seu mundo era só espaço, sem tempo, porque nada acontecia. Ele era capaz de criar por meio de sua palavra mágica e de sua luz, vendo diante de si o que nomeava.

Não querendo mais ser único, Kuyuri, fruto de uma mistura primordial, precisava agora fazer sua própria mistura para deixar de ser sozinho. Não bastava mais dar vida pela palavra, era preciso moldar a vida pela forma e, então, diferenciar-se para finalmente deixar de ser só. Kuyuri, que era homem, queria fazer uma mulher. Foi então que, realizou a segunda mistura primordial, a partir de dois tipos de matérias concebidas como inertes, quando isoladas entre si, tais como o barro, takuren, e o breu, warunu. O takuren é a matéria que Kuyuri extrai do interior de seu mundo claro e vazio para misturar com o breu (escuridão) que extrai do exterior. Quando misturada com takuren, a escuridão ganha qualidades próprias, transformando-se no espesso e denso fluido vital sangüíneo denominado munu. Tornado sangue, seu fluido espiritual que era sem cheiro, ipoinna, ganha aroma próprio, podendo tornar-se agradável e desejável, tüpoinye, ou desagradável e indesejável, tüpoküne.

Diz-se que o fluido espiritual de Kuyuri era incolor, koronna, e tornou-se vermelho, tamire, que é definido como a cor da vitalidade. E diz-se que o conteúdo fértil de Kuyuri era sem forma e sem envoltório, e que, misturado ao barro e à escuridão, toma forma de 'fio', formando assim a 'corda da vida', warumunu, cujos protótipos são, para os homens tiriyó, o waruma (arumã) e a fibra de kurawa (curauá). Daí se origina toda uma simbólica vinculada aos princípios masculino e feminino. A começar pela forma que Kuyuri moldou a partir daquela mistura de barro com breu, evocando uma estreita associação entre as vasilhas de argila em geral, denominadas ëri, e a mulher, wëri, não apenas a humana, mas as fêmeas em geral, com forma corpórea e 'sangue por dentro'. Diz-se que Kuyuri fez a sua primeira mulher de argila, ërino, mas ela era muito frágil. Quando ela se partiu, ele viu que tinha sangue dentro. E que, portanto, a tentativa de Kuyuri não tinha sido em vão: a forma era frágil, mas o conteúdo era vital.

A partir daí, onde antes tinha apenas espaço instaurou-se o tempo e, com ele, o movimento da vida. Os caminhos do fluido espiritual kupü se espalharam e os lugares do sangue munu se proliferaram ao longo do espaço e do tempo em que o espírito vital começou a percorrer, produzindo incessantemente a sua própria continuidade.

Cada nova criatura de Kuyuri é como se fosse um braço seu, porque de cada uma delas depende a continuidade de seu espírito. Sob este mesmo princípio, compreende-se que, se a continuidade do espírito de Kuyuri depende de suas criaturas, a continuidade do espírito destas, depende, por sua vez, de um processo de re-criação sem fim semelhante ao inaugurado por Kuyuri. Desde quando, querendo deixar de ser só, misturou o barro takuren com a escuridão warunu, dando origem ao sangue, para que seu espírito pudesse ser transportado de criatura em criatura, e, assim, continuado, humanos e animais são concebidos como oto, 'corpos animados'. Porém, diferenciam-se no que diz respeito à utilização da linguagem que permite a uns e não a outros auto referenciarem-se como um oto que é wütoto, ou seja, gente. Diferenciam-se portanto quanto a sua condição no mundo, ficando a condição humana reservada aos seres capazes de se auto-referirem enquanto sujeitos continuadores do espírito de Kuyuri, que vivem coletivamente 'como gente', wütoto me.

A LINGUAGEM DE KUYURI: DOS PRESENTES E DOS ANTI-PRESENTES
O mundo deixou de ser, por assim dizer, um mundo estacionado no espaço e no tempo a partir de quando Kuyuri concebeu a forma corpórea feminina como um invólucro (ëri) com sangue (munu) feito para receber o espírito contido no fluido fértil masculino (kuru) e para produzir emukupünu ou simplesmente muku, que é a designação abreviada para filho(a).

Desde então, a cada filho que nasce, seja homem ou mulher, cabe aos pais ensiná-lo a saber como se tornar capaz de continuar o espírito de Kuyuri, e, desde então a ordem primeva, em que o mundo dividia-se em um conjunto de espécies feitas para alimentarem e outras para serem alimentadas, não passou senão a dizer respeito a uma matriz explicativa da linguagem pela qual Kuyuri se comunica com seu mundo. Porque de lá para cá, a memória tiriyó foi sendo densamente povoada de histórias de seres que foram eleitos como pëeto (ajudantes, continuadores) e que, não se mostrando capazes de retribuir Kuyuri com a continuação de seu espírito foram transformados em pëera, e de seres que chegaram a mostrar-se pëera, cometendo erros de conduta, revelando-se incapazes em algumas situações, mas que aprenderam a tornar-se pëeto, e, assim, transformaram-se em eleitos e bem sucedidos continuadores do espírito dele.

Os eleitos de Kuyuri, seus pëeto, são aqueles que se mostram tüpuye, ou seja, como capazes de continuar seu espírito, e é a eles que ele dá presentes, em forma de alimentos, por meio dos quais ganham nome e existência em seu mundo. Inversamente, cabe a estes dar nome e existência a Kuyuri dando-lhe de presente mais espírito e, assim, ad infinitum.

Tudo que Kuyuri disponibiliza para o desfrute de suas criaturas é denominado ekaramahpë, que designa um dar que é ao mesmo tempo um devolver, porque se concebe que quem ganha um presente, ganha a devolução de sua própria existência diante de quem o dá. Esta é a linguagem de Kuyuri, é assim que ele se comunica com suas criaturas: ele favorece ou desfavorece as suas condições de vida e, no limite, dá ou tira seu nome e existência, mostrando a elas e aos relacionados a elas sua satisfação, imënna, ou insatisfação, imë, com determinadas condutas que possam interferir na continuidade de seu espírito. Tudo que Kuyuri quer de suas criaturas é que se façam karime, noção que envolve a aquisição de coragem, bem como de força e resistência física, em busca da solidez da forma corpórea, para que o espírito ekapü, aquele que dá existência e nome aos corpos, encontre-se protegido em seu interior.

E se é através dos presentes, ekaramahpë, que Kuyuri demonstra sua avaliação positiva quanto ao comportamento dos 'descendentes', ipëri, é através de seus 'anti-presentes', ekëriyatühpë, cujos protótipos são as monstruosas cobras ëkëimë, que ele demonstra sua avaliação negativa. A estes seres que personificam sua insatisfação, sob formas designadas pelo sufixo aumentativo -imë, Kuyuri dá existência ativa quando seus ipëri se mostram pëera me, como incapazes, e os aquieta quando seus ipëri mostram-se pëeto me, como capazes de conduzirem-se adequadamente.

YARAWARE E URUTURA: MASCULINO E FEMININO

Na exígua literatura sobre cosmologia tiriyó, Yaraware é descrito como um humano imerso no desenrolar da vida, tal como ela começou a ser vivida no princípio dos tempos. E, com efeito, a partir das informações que obtive junto aos Tiriyó, Yaraware é descrito como uma espécie de Kuyuri mundano, que personificava, na terra, as potencialidades do espírito masculino de Kuyuri, ao lado de sua esposa Urutura, que revelava, em sua existência, o espírito feminino, tal como ele existiu desde quando a mulher ainda não tinha forma corpórea, era apenas espírito.


Um espírito e outro, masculino e feminino, surgem concebidos como dotados de potências inversas, porém complementares: a fala do espírito feminino não é associada à luz, como é a fala do espírito masculino, mas à escuridão. E a partir desta diferença de base os Tiriyó explicam boa parte dos desdobramentos que seu mundo tomou, desde quando Kuyuri misturou o barro com o breu para que pudesse não ser mais único e, como tal, infecundo. Desta mistura e da forma moldada a partir dela, deriva aquela estreita associação mencionada acima, entre as vasilhas de argila em geral, denominadas ëri e a mulher, wëri.

A relação entre ëri e wëri, 'recipiente' e 'mulher' assemelha-se àquela entre oto e wütoto, 'animal' e 'homem respectivamente, e me parece estar associada à diferença entre o ser que é dotado de vida animada, tal como se concebe que seja a argila, ëri, assim como o animal, oto, 'com sangue por dentro', e o ser que, além de 'sangue por dentro', pode se auto-referir, através da linguagem, ou ser referido por outrem como sujeito de uma vida animada.

A respeito desta época definida como pena ahtao, a memória tiriyó é prolífica em narrativas que tratam de encontros primevos, não mais simplesmente entre matéria e não-matéria, como quando a vida brotava, sem pedir das misturas primordiais, mas entre diferentes tipos de gentes que, sendo dotados de fala, visão e movimento, concebiam-se indistintamente 'como humanos', vivendo num mundo inteiramente relacional e comunicativo, causacional e transformacional, que não estava dado diante dos olhos de quem o via, ele era, ou deixava de ser aquilo em que o desenrolar das relações entre os seres o transformava.

Se a lua nunca se encontra no céu, com o sol, wei, é porque um dia competiram entre si, viajando em canoas celestes, para ver quem conseguia iluminar mais o mundo. Tendo perdido a competição para o sol, desde então, a lua evita encontrá-lo, e só aparece quando ele já se foi. O sol é concebido como um ser de Kuyuri, que preserva a continuidade de seu espírito e que, enquanto tal, é associado às qualidades do espírito masculino. E a lua, ao contrário, é associada à escuridão, e às qualidades do espírito feminino, que, em sua origem, provém daquele breu do qual Kuyuri precisou para criar novos seres e então continuar seu espírito.

O patamar em que a lua se encontra é descrito como a morada das almas que, na terra, incorporaram, em si, os defeitos do espírito feminino. Por sua vez, o sol é descrito como o mais distante que existe em relação à lua, num lugar onde é sempre dia e onde as potências do espírito masculino de Kuyuri se realizam plenamente, sem necessidade de relação com potências contrárias. Lá, então, o mundo é só fertilidade, fala mágica e luz. Nada precisa ser feito, está tudo pronto ao desfrute de quem soube cultivar em si, e continuar em seus descendentes, o espírito de Kuyuri. Porém, no princípio dos tempos, a humanidade foi se distanciando muito deste lugar paradisíaco, e que, conforme o espírito humano contagiava-se mais com a potência do espírito feminino, mais obstáculos foram surgindo nos caminhos, estrategicamente povoados de anacondas e outros tantos seres monstruosos que se encarregam de controlar a entrada de espíritos nefastos naquele lugar.

E o desenrolar do convívio de Yaraware com Urutura, enquanto casal, ilustra bem as origens deste distanciamento cada vez maior entre a terra e o céu. As desavenças entre ambos, causadas pelo comportamento glutão de Urutura, que sistematicamente comiam toda comida que ele levava para casa, antes mesmo que ele pudesse servir-se. Insatisfeito com o comportamento descomedido do espírito feminino de Urutura, Yaraware queria controlar as manifestações nefastas deste espírito, e desenvolver as qualidades do espírito masculino em todas as suas criaturas, fossem elas homens ou mulheres. Para tanto, usando a mesma linguagem de Kuyuri concebeu seus presentes e seus anti-presentes. Transformado em lagarto, ërukë, Yaraware passou a representar uma eterna ameaça para as manifestações do espírito feminino, que deve ser cuidado e cuidar-se para não ser atacado. Tornando-se o tamütupë dos lagartos, os fez apreciadores do cheiro do sangue humano, ao mesmo tempo em que indigestos aos humanos. Com sua capacidade de metamorfosear-se, Yaraware-lagarto deu morada a seus ipëri-lagartos no mundo subterrâneo, nonowae, de onde saem de tempos em tempos, atrás dos 'presentes' que seu tamu coloca ao seu dispor. Para tanto, possuem a capacidade de, metamorfoseando-se, atacarem suas vítimas por todos os lugares possíveis onde elas possam encontrar-se. É então, sendo tamu dos lagartos, que Yaraware encontra como ser um 'anti-tamu' dos humanos, ou seja como 'não levar o sangue adiante' daquelas criaturas que considera pëera e que, como tal, proliferando-se, ameaçam a sua humanidade.

Assim, na floresta, toma forma de anta (tëhpaime), nas proximidades das moradias dos humanos transforma-se em gente (ehkui), com aparência de homem sedutor, ou de mulher sedutora, se a vítima for masculina; e, nos rios, toma forma de peixe (amahta).

Antes, porém, desta transformação e de sua ida para o céu, usando a parte interna do waruma, denominada wakuru, Yaraware deu corpo à mandioca wüi, tubérculo concebido como o alimento por excelência de quem é wütoto e, portanto, de quem é humano.

Neste sentido, se as visitas dos lagartos aos humanos constituem-se em seu 'anti-presente', ekëriyatühpë, às manifestações impróprias do espírito feminino, a cassava e o conhecimento de seu cultivo constitui-se no 'presente', ekaramahpë, que concedeu às suas criaturas terrestres para que elas pudessem viver como seus pëeto, ou seja, 'como seus braços capazes e bonitos', e para que pudessem continuar seu espírito na terra.

Depois que foi para o céu, Yaraware passou a eleger, dentre os tamu de cada uma das ramificações de seu espírito continuado na terra, aqueles a quem se denomina püi'yai, que são os pajés, concebidos tendo 'espíritos auxiliares', a quem ensinou a 'magia das roças'. Magia esta que envolve o conhecimento dos cantos mágicos ëremi, que são concebidos com um fio vital que sai da voz, omi, de quem o pronuncia e que se conecta amplamente aos seus destinos, conforme o conteúdo e o vigor com que é pronunciado. Envolve também as danças watü, por meio das quais deve-se, literalmente, 'fazer corda' com as 'mãos amarradas em corda', ëinyawa, em torno das plantações para que o 'fio vital', contido nos cantos entoados pelos cantadores entre dentro delas.

Este aprendizado envolve, ainda, o manuseio pelo püi'yai das pedras kuri, consideradas pedras doadoras de fertilidade, que são enterradas no meio da roça, normalmente numa pequena elevação, onde se cruzam seus principais caminhos. Estas pedras são colocadas aos pares, uma masculina, outra feminina, com certa distância, uma da outra. E é durante este enterramento que se deve dançar e recitar os cantos cerimoniais.


Deste empenho em 'fazer o espírito continuar' que caracteriza o espírito masculino, faz parte o controle das manifestações contrárias, concebidas como próprias do espírito feminino, reveladas em homens e mulheres, nas tantas condutas impróprias que são potencialmente capazes de cometer e, no caso específico das mulheres, na fragilidade da forma corpórea feminina que, ciclicamente, deixa 'vazar' o sangue menstrual. Neste sentido, a ameaça dos anti-presentes personificados nos lagartos e em suas metamorfoses é compreendida como uma forma encontrada por Yaraware de conduzir o espírito humano a este controle.

Daí que as potências humanas que ali foram introduzidas por Yaraware precisem ser ativadas através dos processamentos que devem torná-la própria para o consumo, pois compreende-se que consumi-la pura ipoinna, seria como consumir-se a si mesmo, num processo de autofagia e de auto-evenenamento. Como alimento cotidiano, em forma de caldo fervido, tukupi, de bebida com baixo teor de fermentação, sakura, e em forma de beiju, uru, concebe-se que os derivados da mandioca contêm em si o 'espírito que dá vida e sabedoria', kapühpë, a quem o consome. Espírito este que reside no céu, kaputao, e que desce à terra em forma de chuva, que é enviada na época em que Yaraware, concebido como o 'dono da mandioca', wüi entu, aparece no céu em forma de estrela (Orion), no início de dezembro, para anunciar o início das chuvas que irão expandir as raízes da mandiocas cultivadas nas roças tiriyó.

Assim como os alimentos derivados da mandioca são concebidos como capazes de introduzir fala, e, portanto, conhecimento aos corpos que o ingerem e digerem, transformando-o em fluidos vitais, diz-se que, são também capazes de extrair a fala, quando feitos não para alimentar o corpo de espírito, mas para desalimentá-lo pelo vômito, como é o caso das bebidas rituais feitas para convidados especiais, de quem se quer extrair alguma informação, tal como o kasiri, bebida com alto teor de fermentação, concebida como capaz de fazer soltar a fala daquele que a ingerir. Feita para ser vomitada, a bebida kasiri é especialmente feita para receber visitantes, a quem é oferecida para que, literalmente, 'soltem a fala que encontra-se presa no interior de seus corpos', seja simplesmente para descontraírem-se e ficarem alegres, seja para que eventuais dúvidas ou curiosidades que seus anfitriões tenham em relação a eles sejam esclarecidas.

Baseado em texto de Denise Fajardo Grupioni

Fonte: Instituto Socioambiental | Povos Indígenas no Brasilacessado em: 13/09/2017

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