segunda-feira, 29 de novembro de 2010

SIMBOLISMO DE TIWANAKU

O principal edifício de Tiwahaku é a PIRÂMIDE DE AKAPANA, perfeitamente orientada segundo os pontos cardeais. A noroeste dela, ergue-se o PALÁCIO DE KALASASAYA (onde se encontra a Porta do Sol), cuja entrada principal está orientada para o leste. Este templo encontra-se na frente de um pequeno templo subterrâneo, orientado no eixo norte-sul. Uma estrada passa entre Akapana e Kalasasaya, no sentido Nordeste-Sudoeste, indo até o TEMPLO DE PUMAPUNKU, a uns 980 m de Kalasasaya.

A partir desses elementos podemos ver, com clareza, a bipolaridade da cidade: HANA PACHA, a Cidade Alta, e HURIM PACHA, a Cidade Baixal. Em Tiwanaku, Kalasasaya, solar e diurna, se contrapõe a Pumapunku, lunar e noturna.

O pórtico de entrada do templo solar de Kalasasaya está orientado para o leste. Chega-se a ele por uma pequena escadaria de sete degraus, onde os dois últimos são formados por um bloco monolítico de dezenas de toneladas. Esse pórtico foi projetado para que o sol nascesse bem no seu centro nos Equinócios (de Outono, em 20-21 de Março e da Primavera, 20-21 de Setembro). Mas à frente, no centro trigonométrico do lugar, está o MONOLITO DE PONCE.

Este monólito tem diversas características interessantes: de dois metros de altura, em estilo geométrico, tem o aspecto de um sacerdote paramentado com roupas rituais e em postura hierárquica, trazendo sobre o peito dois vasos de oferendas. Parece que desempenhava uma missão de “relógio solar”, indicando as horas com sua sombra.

Saindo de Kalasasaya pela porta principal, após atravessar um calçada cheia de oratórios, chega-se ao templo semi-subterrâneo, cuja entrada é
uma escadaria de seis degraus no seu lado sul. Esta construção é uma das mais antigas do conjunto. Também orientada pelos pontos cardeais, é um espaço retangular de 26m x 28,50m. De suas paredes de andesita rosa destacam-se “cabeças” de pedra clara, projetadas para fora do muro, muito semelhantes às cabeças do homem-jaguar encontradas nas praças semelhantes em Chavin.

No pátio desse templo, encontram-se diversas estátuas, como por exemplo a de u
m músico tocando uma flauta-de-Pã e os dois ascetas guardando a entrada, mas cujas colunas se transformam em serpentes, - eles parecem simbolizar o sacrifício e o conhecimento adquirido. O aspecto esquelético de todas as estátuas, recorda aquelas de madeira encontradas na Ilha de Páscoa.

Uma das estátua mais interessantes de Tiwanaku é o MONOLITO DE BENNET, em cujo corpo estão gravados os mesmos "gênios alados" encontrados na Porta do Sol. Trata-se de uma representação de WIRACOCHA ou de seu Sacerdote, portador do poder do Jaguar Celeste. Em suas vestes encontramos pontos circulares na disposição da constelação de Órion (Constelação do Jaguar). Tem nas mãos vasos de oferendas, de onde saem peixes – símbolos de sacrifício à Lua.

Todos os aspectos do sol diurno e noturno estão representados no corpo desse monólito, vivificando cada um de seus aspectos e poderes. Uma l
arga “trompa” se destaca na sua toca, lembrando um elefante. Esse animal – chamado de WARI WILKA – representa o sopro da vida, a energia da Divindade. O mais interessante é que os elefantes desapareceram da América há mais de 7.000 anos.

A principal construção de Tiwanaku é, sem dúvida, a Pirâmide de Akapana: um edifício de base retangular, com terraços superpostos, coroados por um templo; grandes escadarias que dão acesso ao santuário. Akapana é o símbolo da terra seca e do fogo celeste, da ilha de fogo e da sabedoria que sobrevive aos cataclismas.


Nas escadarias desse templo piramidal, encontramos o ideograma HURAKESA, que representa a Terra. Mas, se invertido, passa a representar o Céu.
Dessa forma, aplicados nos degraus, fazem das escadarias de Akapana uma “ponte” de união entre esses dois mundos: UKU PACHA, a Terra, a Cidade de Baixo, e HANA PACHA, o Céu, a Cidade do Alto. Assim, subir as escadarias de Akapana leva os tiwanakus da Terra ao Céu; ao descer, voltavam do Céu para a Terra. Akapana é, portanto, a ligação entre os dois universos andino.

Perto dali, em outro monte artificial, encontra-se um pórtico de pedra semelhante à Porta do Sol, mas com representação de perdizes no lugar de condores. Esses dois pássaros eram considerados como portadores de luz através do céu: perdizes transportavam raios da lua, enquanto condores, levavam raios solares. Isso indica, portanto, que esse pórtico é uma representação lunar e, então, ficou conhecida como Porta da Lua.

O templo de PUMAPUNKU, cujo nome significa “A Porta dos Jaguares”, está, hoje, reduzido a um terraço, cujo principal enfeite é o signo “S” – que, em Tiwanaku está associado ao jaguar, representando sua cauda em movimento, e portanto um símbolo de vitalidade. Parece que havia ali uma grande pirâmide de pedra sobre a qual deveria estar o templo do Jaguar. Porém suas pedras foram deslocadas pelos invasores espanhóis para construção de palácios e igrejas.



sábado, 27 de novembro de 2010

ORAÇÃO A WIRACOCHA

Oração a CON TICSI WIRACOCHA, copilado por Guamán Poma de Ayala, em 1600.


Tiqsi Wira Quchá... Qaylla Wira Quchá... Pacha Kamáq, Runa Ruraq!
Fogo dos fundamentos... Fogo que impõe limites...
Princípio do espaço-tempo que faz a realidade dos homens.

Maypim kanki? Maypim kanki? Yayá!
Onde estás? Onde estás? Princípio meu...

Tiqsi Qaylla Wira Quchá!
Fogo que impõe fundamentos e limites

Maypim kanki, hanaq pachapichu, kay pachapichu qaylla pachapichu?
Onde estás? Acima daqui, nas profundezas ou aqui nesse mundo mesmo?

Kay pacha Kamáq, Runa Ruráq!
É tu quem faz a realidade dos homens!

Maypim kanki?
Onde estás?

Uyariway!
Olha por mim!

MITO DE WIRACOCHA

Mito inca sobre QUN TIQSI WIRAQUTRA (ou Com Titi Wiracocha, ou simplesmente Wiracocha) e a origem de Tiwanaku, copilada por Betanzos, cronista do século XVI:


Da lagoa de Collasuyo saiu QUN TIQSI WIRAQUTRA
Senhor muito poderoso
que criou o Céu e a Terra
e os seres humanos,
deixando tudo na escuridão.

Por sua desobediência,
estes primeiros homens
provocaram a cólera do Deus
que os transformou em pedras.

Este período é chamado PURUM PACHA.

Logo, QUN TIQSI WIRAQUTRA
saiu pela segunda vez da Lagoa de Titicaca
e se dirigiu às proximidades do lago
até um lugar chamado Tiahuanaco
E ali, criou o Sol e o Dia
e ordenou ao Sol iniciar sua carreira
que continua até hoje.

Depois, criou a Lua e as estrelas
e modelou uns homens-pedra
assim como um príncipe para governá-los.

Os mensageiros de QUN TIQSI WIRAQUTRA
percorreram todo o Andes
e vivificaram os homens-pedra
ordenando-os que saissem das grutas, dos rios e dos mananciais
de onde haviam nascido, para ir povoar o território
e instalar-se em diversas províncias.

Assim, pouco a pouco, se povoou toda a terra,
depois do Dilúvio HUNO PACHACUTI,
que havia destruído a primeira humanidade.

É em Tiwanaku
que QUN TIQSI WIRAQUTRA
deu vida ao primeiro homem de pedra:
WIRAQUTRA, seu filho,
um homem branco, vestido de branco
e levando um cetro de ouro.

Vindo para civilizar os homens
lhes transmitiu leis justas,
triunfando assim de seus inimigos.
Pecorreu os Andes até a costa
e andando sobre as ondas desapareceu no mar.

Já que andava sobre as águas
- como a espuma -
foi chamado de WIRAQUTRA: "espuma do mar".

QUN TIQSI WIRAQUTRA é o Deus
ordenador do mundo.

Sua obra se manifestou nos três mundos:
no céu, na terra e no abismo.

Cria o movimento diurno e noturno:
o Sol e a Lua.

Seu corpo constitui o eixo vertical do mundo.
Seu impulso, o eixo horizontal.

Nessa nova ordem, os tres mundos podem se manifestar:
- A TERRA, com o cedro duplo
- O CÉU, com o cetro do condor
- O ABISMO, com o cetro da perdiz

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

CHAVIN - Pacto entre o Céu e a Terra

CHAVIN DE HUÁNTA está situada na região montanhosa no norte de Peru, a uma altitude de 3.180m acima do nível do mar, entre os rios Mosna e Wacheska. Foi, durante séculos, o principal centro de religioso dos Andes. As ruínas arquitetônicas, as cerâmicas e outros vestígios que subsistiram, atestam ali se instalou um povo forte e enérgico, que, desafiando o clima dos Andes, implantou as raízes de uma importante civilização. Chavin é considerada a CULTURA MÃE por estar na origem das culturas que se sucederam por todo o território andino, deixando uma profunda influência religiosa e artística tanto na costa quanto nas montanhas. Chegou inclusive ao Império Inca, com a representação mágico-religiosa do JAGUAR, símbolo da origem e do fim do mundo pré-colombiano.

C
havin construiu um grande centro cerimonial, em torno de 1.800 a.C., que ficou em atividade até o século XIV d.C. – ou seja: por mais de 3.000 anos. No começo da construção, ergueram estruturas piramidais (hoje transformadas em colinas), plataformas e praças rodeadas por terraços. A parta mais antiga, chamada de TEMPLO DO LAZON tem a forma de um grande U com os três braços mais ou menos do mesmo tamanho. Posteriormente, construíram o que hoje chamamos de TEMPLO TARDIO ou O CASTELO. As duas estruturas não são maciças; pelo contrário, têm um complicado sistema de galerias subterrâneas.

As galerias do Templo do Lazon começam no alto de uma escadaria no lado ocidental da praça principal do complexo, com 21 metros de diâmetro, murada por pedras onde foram esculpidos imagens antropomórficas e jaguares (símbolo predominante nesta cultura). Essas galerias foram construídas em vários níveis, subindo e descendo, e são acompanhadas por um fantástico sistema acústico, alimentado por água, que produz sons semelhantes a rugidos por toda a sua extensão. Isso produziria um clima de sobrenatural, que preparava o encontro com o LAZON, no meio do templo, em uma larga câmara com orientação norte-sul. O Lazon é uma escultura de pedra, com 4,53m com a forma de um canino, e esculpida com a figura de um Jaguar. Essa é a divindade suprema de Chavin: o Jaguar Subterrâneo, em oposição ao Jaguar Celeste.

O Lazon representa a força da natureza, o Fogo primordial, a força telúrica. Em Chavin encontramos os três planos da natureza: o Jaguar Celeste (representado pela constelação de Órion), o Jaguar Diurno-Solar (representado pelo felino antropomórfico e caracteres ornitomórficos do Condor e de répteis das Amarus) e o Jaguar Noturno (o sol oculto durante a noite, representado pelo Lazon). Este último representa a união das energias celestes e subterrâneas, o pacto entre o Céu e a Terra!

Segundo estudos realizados por Lumbreras, em 21 de Dezembro – solstício – as estrelas de Órion (o Jaguar Celeste) se refletem exatamente em cada um dos orifícios do altar que fica na superfície, exatamente em cima da câmara do Lazon, de forma que lá de baixo se consegue ver toda a constelação brilhando em um “céu” de pedra escura – como se a constelação descesse à terra e mergulhasse em seu subterrâneo. Uma grande celebração acontecia, nessa câmara, na noite do solstício até a manha do dia seguinte, quando os primeiros raios do sol atravessam uma fenda na parede leste e ilumina plenamente o rosto do Lazon, representando a renovação de sua força. Ao longo do dia, para completar essa cerimônia, o sistema hidráulico de sons era colocado para funcionar em plena potência.

No centro da praça principal, ficava o OBELISCO DE TELLO – atualmente no Museu de Lima –, esculpido em um bloco maciço de diorita de aproximadamente 2 metros de altura. Este monólito tem a representação de dois felinos – macho e fêmea –; na extremidade superior, sobre suas cabeças, há várias figuras de condores (símbolo do sol) e perdizes (símbolo da lua), além da constelação de Órion (símbolo do Jaguar Celeste).

Não se conhece outro culto em Chavin. Só na época incaica é que o conjunto adquiriu também um sentido oracular e tornou-se um lugar de peregrinação.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

PARACAS

PARACAS é uma cidade do atual departamento de Ica, na costa peruana, aproximadamente a 250 km ao sul de Lima.

Frederic Engel descreve sua paisagem como:

“Um mundo vermelho, cinza, amarelado e turquesa, tal parece Paracas, com suas colinas, suas extensas áreas arenosas e sua baia de frente par
a a imensidão do Pacífico. Quando o sol se põe e reflete na areia cinzenta, se pode perceber, escondidas debaixo da areia branca,restos do cemitério daqueles homens que nos deixaram uma recordação inolvidável: os célebres 'tecidos de Paracas', cheio de cores, de vida, de magia, com testemunho de sua relação com essa enigmática baía. Aqui onde nunca chove, onde os ventos sopram formando 'chuva de areia', a natureza conservou, quase intacto, o milenar mundo da Baia de Paracas”.

O nome PARACAS significa, segundo alguns investigadores, “chuva de areia”, enquanto outros dizem ser “testa alta”. Na verdade, as duas acepções estão certas: os ventos, carregados de areia, são característicos dessa região e, por outro lado, as múmias descobertas têm uma testa achatada e alongada artificalmente.

A região de Pa
racas corresponde ao complexo agrícola mais antigo do qual se tem conhecimento no Peru. As datações através do carbono 14, demonstram que os “paraquenhos” conheciam o cultivo de plantas há mais de 9.000 anos. Cerca de 6.000 anos atrás, produziu-se um fenômeno climático que elevou uns 30 metros o nível do mar, chegando – por volta do ano 3.800 a.C. – a 3 metros acima do nível atual. Esse fenômeno de trasngressão marinha criou novas praias e destruiu outras. É interessante assinalar que quando o nível do Pacífico alcançou o nível atual – há 6000 anos atrás –, numerosos grupos de agricultores e pescadores apareceram na costa. Paracas é um desses grupos, surgido em torno de 3.100 a.C.

Paracas foi descoberta por J. C. Tello, em 1958, ao escav
ar um antigo cemitério onde encontrou uma grande quantidade de crânios estranhamente achatados. Junto dos esqueletos, encontrou utensílios do dia-a-dia desse povo – flautas, punhais de osso, agulhas, balas redondas de madeira polida, dados retangulares de quartzo e representações de animais de palha e junco. Segundo a datação por carbono 14, a cerâmica e a cultura do milho aparecem entre os anos 2.000 e 1.500 a.C.

As tumbas desse período eram escavadas no solo, com a forma de um grande frasco: “A tafera é dura debaixo do sol abrasador. Uma vez retirada a capa de areia, aparece outra de salitre; depois dessa, surge a boca de um poço vertical, escuro e profundo, quase circular, cujas paredes são revestidas de pedras, algumas salientes formando um tipo de escada. O poço tem a profundidade de 2 metros, por 1.50 m de largura, terminando na entrada de uma caverna propriamente dita com cerca de 3 a 4 metros de diâmetro por 2 a 5 metros de altura.Trata-se de uma gruta artificial, escavada na rocha, contendo fardos funerários revestidos com uma terra pegajosa. Em seu conjunto, a sepultura, incluindo o poço de aceso, é semelhante a uma taça invertida ou um frasco. O interior é escuro, mas os poucos raios de sol que se infiltram pela entrada permite ver o solo dividido em vários compartimentos, nos quais estão colocados os fardos funerários”.

A cerâmica encontr
ada junto é policrônica com uma pintura resinosa nas cores amarelo, verde, vermelho e preto, com motivos geométricos e, em alguns casos, a estilização de figuras felinas ou de pássaros (que recortam o estilo Chavin).

A mumificação seguia uma técnica muito elaborada. Primeiro, o morto era embalsamado; através de cortes verticais se tirava a massa muscular e adiposa das pantorilhas e coxas; outros cortes permitiam tirar o coração, os pulmões e a traquéia, todo o aparelho digestivo e, por fim, os olhos e cérebro. Supõe-se que em certos casos o cérebro
era extraído pelas fossas nasais. Depois de estar esvaziado, era colocado sobre areia quente ou próximo a brasas incandescentes para fundir a gordura restante, diluindo os tecidos graxos. Depois de toda essa operação, a pele descolada e flácida, e com uma coloração especial, torna-se pergaminosa, enrolando-se firmemente ao redor dos ossos, fazendo o morto parecer muito mais velho do que realmente era.

Depois disso, o corpo era amarrado com força para impor-lhe a posição fetal, fazendo-o parecer sentado, abraçando as pernas e as mãos sustentando a cabeça. A imagem resulta impressionante: é a morte liberada da putrefação cadavérica!

Muitas das múmias encontradas mostravam ma
rcas TREPANAÇÃO em suas cabeças deformadas. Acredita-se que estejam ligadas à ferimentos de combate. Com efeito, os grossos turbantes de algodão não conseguiam minimizar, sempre, os golpes de maça d
e pedra estrelada. A ineficiência do turbante provocava afundamentos e rachaduras no crânio, provocando a paralisia parcial ou total da pessoa, além de perder a consciência por um tempo indeterminado. A trepanação surge como tratamento para esses males. O cirurgião abria o couro cabeludo e cortava a carne ao redor do ferimento, usando uma faca de obsidiana, até chegar ao osso quebrado. A anestesia devia existir, pois essa é uma operação delicada e o paciente precisava ficar totalmente imóvel; provavelmente, usava-se a coca. Quando chegava no osso, fazia-se um corte nele; depois, mais um paralelo e dois perpendiculares, formando um quadrado ou retângulo ao redor do tecido ósseo deteriorado. Então, esse pedaço era cuidadosamente retirado. Feito isso, recolocava-se a carne e o couro cabeludo no lugar, e fechava-se com um curativo de ervas que agilizavam a cicatrização. Caso o pedaço ósseo retirado fosse muito grande, podia-se usar um tampão metálico em seu lugar, debaixo do couro cabeludo. Essa operação aliviava a pressão sobre o cérebro, trenando o hematoma que se formara com a pancada e que deixava a pessoa com paralisia.

A prática da trepanação em Paracas parece não ter sido mais desenvolvida que em qualquer outro lugar do mundo. A contar pelo calo ósseo encontrado nas bordas da abertura de 90% dos crânios trepanados, o índice de morte durante a operação (ou logo depois dela) é muito pequeno. A criação do calo demonstra que o paciente sobreviveu tempo suficiente para o osso cicatrizar; em alguns casos, os calos demonstram anos. Nos casos em que usaram a placa metálica em substituição do tecido ósseo retirado, os pacientes viveram o suficiente para o osso se soldar ao metal, tornando-a firmemente ajustada e imobilizada.

domingo, 21 de novembro de 2010

III ENCONTRO CONTINENTAL DO POVO GUARANI

Nós, representantes de diferentes organizações indígenas da Nação Guarani na Argentina, Bolívia, Brasil e Paraguai nos reunimos na cidade de Assunção, Paraguai, durante o III Encontro Continental do Povo Guarani dando continuidade ao I Encontro Continental realizado em São Gabriel/RS Brasil, em 2006 e do II Encontro Continental que aconteceu na cidade de Porto Alegre/RS Brasil em 2007. Hoje, sob o tema Terra-Território, Autonomia e Governabilidade, animando permanentemente nossos corações pelas palavras sábias de nossos anciões e anciãs, buscando compreender a partir das coincidências em longos debates e profundas reflexões realizadas sempre de acordo com os princípios de respeito e consensos, tradicionais em nossas culturas, queremos fazer chegar ao mais profundo do espírito das autoridades, nacionais e internacionais e a todos os cidadãos dos lugares que habitam nosso pensamento nestas palavras.

CONSIDERANDO
- Que a Nação Guarani sempre teve um espaço territorial próprio o "Yvy maraê’y" ou Terra Sem Mal que extrapola fronteiras.
- Que desde a cosmovisão da Nação Guarani,
parte de nossas milenárias culturas: o fogo, o ar, a terra e a água, constituem uma unidade e são elementos vitais para a vida; a terra sagrada é a vida para nossos povos.
- Que a Nação Guarani a partir da sua cosmovisão sempre buscou evitar confrontações com os que se apropriaram de seu território, de forma violenta na maioria das vezes.
- Que desde a demarcação das fronteiras nacionais a Nação Guarani ficou fragmentada e dividida geopoliticamente em etnias, comunidades, aldeias, famílias, condição esta que enfraqueceu significativamente seu projeto espiritual, cultural e linguístico como Nação.
- As
transnacionais e/ou multinacionais, com o apoio dos diferentes governos no poder não respeitam os direitos consuetudinários e coletivos da Nação Guarani, destruindo territórios, expulsando comunidades.
- Os diversos governos não atendem as demandas d
a Nação Guarani apesar da existência de normas nacionais e internacionais que protegem e promovem os direitos dos povos indígenas; como o Convenção 169 da OIT, a Declaração das Nações Unidas e as leis nacionais, Constituições e Leis dos Estados.
- São exemplos do afirmado acima que o Poder Judiciários brasileiro autoriza despejos de comunidades da Nação Guarani de seus territórios, contra as leis e os protegem.
- O não cumprimento, pelo governo brasileiro, do art. 231 da sua Constituição Federal, sobre a demarcação das terras; da mesma forma o governo argentino não cumpre a lei 26.160 "de Emergencia de la tierra comunitaria indígena" para a demarcação territorial.
-
Na Argentina se pretende vender o Lote 08 da reserva da Biosfera Yaboti, declarada pela UNESCO em 1992, a uma Fundação com fundos europeus, quando ali vivem ancestralmente duas comunidades da Nação Guarani
- A Nação Guarani no Paraguai sofre uma perda constante de seu território ancestral fruto de uma carência de políticas efetivas orientadas em defesa do mesmo
- Existem inúmeras comunidades que vivem em condição subumanas, sem as mínimas condições de segurança física, de saúde e alimentação.
- Na Bolívia a demanda de Território pela Nação Guarani ainda não resultou em total titulação das terras que ocupam.
- Que a destruição massiva e constante dos recursos naturais, por parte das empresas transnacionais, está deteriorando os bens florestais indiscriminadamente no território Guarani na
Argentina, Bolívia, Brasil e Paraguai, gerando danos irreparáveis, fazendo-os sofrer os efeitos das mudanças climáticas, das quais não são os responsáveis.
- Que a construção das Hidrelétricas Binacionais (Itaipu e Yaceretá) no território G
uarani, sem consulta a nossa Nação, produziu não apenas irreparáveis danos ambientais, como também violação dos direitos territoriais, culturais e religiosos da Nação Guarani.

EXIGIMOS:
- Dos governos da Argentina, Bolívia, Brasil e Paraguai o reconhecimento como Nação Guarani e sua condição de Transterritoriais e Transfronteiriços e que por esta razão devem ter os mesmos direitos de saúde, educação e trabalho nos quatro países.
- Dos governos da Argentina, Bolívia, Brasil e Paraguai dêem reconhecimento constitucional a Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas e a Convenção 169 da OIT.
- Que deixem de entregar às empresas transnacionais, multin
acionais e nacionais territórios da Nação Guarani para sua exploração e devastação, transgredindo os direitos coletivos que os protegem.
- Do governo da província de Misiones - Argentina - a não autorização da venda do Lote 08 - território Guarani - na reserva da biosfera Yaboti.
- A demarcação imediata de todas as terras e territórios Guarani. Cumprimeto da lei 26.160 da Argentina e que no Brasil o Supremo Tribunal Federal julgue imediatemente todos os processos de demarcação no estado do Mato Grosso do Sul, respeitando o artigo 231 da Constituição Federal de 1988.
- A não instalação de novos mega-represas comprometendo territórios Guarani e que tanto as Binacionais Itaipu e Yaceretá reconheçam o dano ca
usado as comunidades, restituindo seus territórios.
- Do governo Boliviano o cumprimento das exigências de maiores extensões de terra à Nação Guarani.
- Que os espaços políticos internacional impeçam a criminalização das exigências da Nação Guarani.
- Punição aos que cometeram crimes que afetaram indígenas na luta pelos seus direitos.
- Que sejam respeitados aos avanços conquistados pela Nação Guarani nos espaços políticos nacionais e internacionais.
- Que as empresas transnacionais respeitem as normas ambientais, que evitem a destruição massiva e constante dos recursos naturais por parte das mesmas.
- Que todos os países sobre os quais incide o território da Nação Guarani compreendam e tomem consciência que os direitos sobre a Terra e o Território são inalienáveis e imprescritíveis.

RESOLVEMOS:
PRIMEIRO - A terra e o território são direitos inalienáveis da Nação Guarani, são a vida de nossas cosmovisões; condição que nos permite ser livres e autônomos "IYAMBAE".

SEGUNDO
- Consolidar nossa organização em cada um dos países com presença Guarani a fim de efetivar nossas demandas como Nação Guarani.

TERCEIRO
- Constituiu-se um Conselho Continental da Nação Guarani para a articulação com Argentina, Bolívia, Brasil e Paraguai em suas demandas reivindicatórias, e com ele fortalecer nosso desenvolvimento econômico, social e político.

QUARTO
- Participar em todas as instancias democráticas do Argentina, Brasil e Paraguai segundo nossos usos e costumes como Nação Guarani conseguindo desta maneira fazer chegar as nossas demandas as máximas instâncias de decisão política.

QUINTO
- Exortamos a todos a somarem-se a essa luta, aqueles que fazem parte do pensamento e sentimento da Nação Guarani - organizamos nacionais e internacionais, ONGs, Movimentos Sociais e outros - para apoiar com propostas e projetos orientados a partir da reivindicação dos direitos consuetudinários e etno-culturais dos Guarani.

SEXTO
- Nos declaramos em permanente resistência ante as viol
ações e subjugações ocorridas em toda a extensão de nosso território como Nação Guarani.

SETIMO
- Nos unimos na defesa de nossa mãe terra ante a contaminação progressiva do ambiente provocado pelas atividades de exploração do subsolo e hidrelétricas que vulneram os direitos a culta e participação da Nação Guarani.
É o que pensamos, sentimos e dizemos sobre nossos direitos coletivos e as obrigação que tem com a Nação Guarani os países que hoje ocupam nosso território, na esperança de poder conviver na harmonia e liberdade como foi o pensamento d
e nossos herois ancestrais.

Território Guarani - Assunção, 19 de Novembro de 2010.


sábado, 13 de novembro de 2010

ARTESANATO DE ÑANDERU


“O corpo é o 'artesanato' de Nhanderu. Assim como nós fazemos o artesanato do nosso jeito, Nhanderu faz cada Guarani”.
Cristino, um Mbya-Guarani

Ao aprofundar o sentido da nominação, pude entender que o nome, recebido na cerimônia do “batismo do milho” - NIMONGARAI -, torna o Mbya uma pessoa com todas as condições de mostrar no seu corpo aquilo que seu artesanato mostra, suas tradições. Assim como criam em seu artesanato desenhos ou miniaturas de animais que lhe são caros, também os mostram pela sua dança, que imitam os animais.

O nome expressa a pessoa e por isso é tão importante para os Mbyas mantê-lo. O corpo do Mbya-Guarani é o artesanato de Nhanderu, porque “ele pensa como vai fazer um novo corpo, imagina como a pessoa completa vai ser e faz o pai ou a mãe sonhar com ela para ela existir”. Ou seja: esse corpo, que é o artesanato de Nhanderu, é a pessoa Mbya Guarani, concebido e cuidado no cotidianamente para continuar sendo.

A concepção da pessoa Mbya Guarani é resultado de um sonho. A criança normalmente é sonhada pelo pai que, ao contar para sua esposa, a engravida, mas também pode acontecer de a própria mãe sonhar. No entanto, quem faz a pessoa social do filho é Nhanderu. A partir daí, começam a ter repetidas relações sexuais para construir a criança no corpo da mãe; acreditam que cada ato sexual constrói uma parte do corpo. A seguir, começam a reclusão pubertária e a relação entre um morto e seus pais na cerimônia dos mortos. Não basta copular muito para garantir que o novo ser humano nasça com saúde, mas marido e mulher devem formar uma unidade devotada ao bem-estar da criança. Dizem que o corpo da criança é constituído por mistura de sêmen e sangue menstrual; e vai sendo fabricado através da alimentação e da troca de fluidos corporais. Daí, por exemplo, evitar comer carne de tatu porque provocaria inflamação no corpo do filho.

Aqueles que vivem juntos, que comem juntos e que partilham da mesma dieta alimentar, tornam-se consubstanciais. A identidade é explicitamente concebida como situada no corpo e relacionada ao parentesco. Embora, essa consubstancialidade (a natureza compartilhada de dois corpos ou mais), que se desdobra em comensalidade não depende de morarem juntos. Se um parente (pais, filhos, irmãos) come alimento proibido em um lugar, sem saber que o outro está doente, contribui para agravar seu estado.

Após o nascimento, entre os Mbya-Guaranis, a menstruação para as meninas, e o furo labial para os meninos, constituem momentos que requerem restrições alimentares, como de açúcar, mel ou carne. Alguns alimentos, como o milho, a mandioca e a batata doce, fortalecem seu nhandereko (suas tradições, seu jeito de ser) e “guaraniza” seus corpos e toda comunidade. Mas, para que isso tenha real sentido, seu consumo ocorre preferencialmente entre parentes e na prática da língua materna. Em nenhum momento os Mbya-Guaranis estão mais alegres do que quando reunidos para degustarem espigas verdes de milho, tomarem seu chimarrão e fumarem seu cachimbo e, é claro, falando na sua língua.

Entre os Mbya-Guaranis, o cuidado concedido aos seus corpos é visível em diversos momentos do cotidiano, quer pelos banhos de rio ou de chuveiro, a troca de roupas, o penteado - principalmente por parte das mulheres, moças e meninas -, quer com sua alimentação, quer com os corpos das outras pessoas, ao se interessarem sobre como estão e se precisam de alguma coisa. Os mais velhos ensinam que para o corpo não exalar cheiro, é necessário não consumir sal, tomar banho com água fria e realizar a última refeição até as 16 horas, praticas que, dentro do possível, procuram manter. Toda noção de corpo é ampla, ou seja, não há separação entre corpo e alma. A noção de alma Mbya não está dissociada da noção de corpo, e é através deste corpo que se alegra o ‘deus’ Guarani Mbya e a si próprio.

Baseado em texto de ZÉLIA MARIA BONAMIGO

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

ÑE'E - a palavra-alma


O que podemos chamar de “religião” para os Guarani está fundamentado na palavra. Os termos ñe’ẽ, ayvu e ã – traduzidos geralmente por “palavra” – significam também "voz, fala, linguagem, idioma, alma, nome, vida, personalidade, origem" e possuem, sobretudo, uma essência espiritual. A palavra é a unidade mais densa que explica como se trama a vida para os povos chamados guarani e como eles imaginam o transcendente. As experiências da vida são experiências de palavra. Deus é palavra. Dentre todas as faculdades humanas, são as diversas formas do “dizer” as vias, por excelência, de comunicação com as divindades, pois estas são essencialmente seres da fala.

A gravidez é entendida como resultado de um sonho; e o nascimento, como o momento em que a palavra se senta ou provê para si um lugar no corpo da criança, oñemboapyka. A palavra circula pelo esqueleto humano. Ela é justamente a que o mantém em pé, que o humaniza.

A ligação entre palavra, ser animado e verticalidade também pode notar-se em várias expressões em que o radical “e”, “dizer” em língua mbyá, desempenha um papel decisivo. Assim, os eepya (aqueles que restauram a palavra) são invocados para salvar um moribundo da morte; já para a nomeação de uma criança são invocados os ery mo’a’ã (aqueles que mantêm ereto o fluxo do dizer). A chegada à “terra sem males” sem passar pela prova da morte é expressada em língua mbyá por oñemokandire, que significa literalmente “fazer com que os ossos permaneçam frescos”, sem perder sua natureza, sua forma humana, ereta, sua postura vertical. É a verticalidade dada pela palavra que diferencia o ser humano vivo dos outros seres e dos seres humanos mortos, doentes ou sem nome divinizador.

Na cerimônia de nominação, o xamã revelará o nome da criança marcando com isso a recepção oficial da nova palavra na comunidade e tentará exorcizar o primeiro sentimento mau que acomete o ser humano: a cólera. Os grupos kaiová e os mbyá acreditam que, à semelhança do herói mítico Ñanderyke’y - “Nosso Irmão Maior” -, a criança no período de lactância irrita-se facilmente contra o seio de sua mãe e que esse gesto inaugura a primeira forma de saber que é má. Por isso, desde tenra idade as crianças são orientadas a vencer esse sentimento, escutando sua verdadeira palavra (seu nome divinizador) e ouvindo os conselhos que pessoas experimentadas na palavra divina lhes derem. Os meninos terão ainda a oportunidade de firmar essa palavra divina no rito de introdução do enfeite labial.

As crises da vida – doenças, tristezas, inimizades, etc., – são explicadas como um afastamento da pessoa de sua palavra divinizadora. Por isso, os rezadores e as rezadoras se esforçam para “trazer de volta”, “voltar a sentar” a palavra na pessoa, devolvendo-lhe a saúde. O insucesso da terapia, assim como à apatia de alguns frente às crises, chama-se ñemyrõ, que quer dizer “enfezar-se”, “ficar triste”, “só”. Assim ficam, por exemplo, as crianças que não passaram pelo ritual de iniciação na onomástica tradicional do grupo. Carecendo de um dos enfeites essenciais para viver, elas crescem sem escutar a ninguém e acabam, facilmente, cometendo suicídio.

Finalmente, quando a palavra não tem mais lugar ou assento, a pessoa morre e torna-se um devir (-kue, -ngue), um não-ser, uma palavra-que-não-é-mais (ñe’ẽngue, ãngue), um ex-lugar, que muitas vezes prefere-se esquecer, fazendo de conta que ele nunca existiu. Evita-se falar na pessoa falecida, seus pertences são exterminados, a casa onde morou abandonada, seu nome esquecido. É como se evocar sua ausência fosse um gesto perigoso para os vivos.

Uma das associações mais freqüentes com a qual se costuma traduzir os lexemas básicos (ñe’ẽ e ayvu) é palavra-alma, que é a palavra divina e divinizadora. Na teologia cristã, “alma” é algo diferente de “corpo”; é parte constitutiva do ser humano, mas não corpórea, dizendo-se que ela se separa do corpo por ocasião da morte. Esse dualismo deriva mais ao pensamento helênico do que ao hebraico. Os termos guarani traduzidos por “alma” se assemelham ao termo hebraico nephesh, que designa o indivíduo integralmente. Alma é, nesse caso, o próprio “eu”. A palavra ã e ãnga são os termos do guarani clássico com os quais se traduziu o conceito incorpóreo “alma”, trazido pelos missionários. Mas os termos em questão na associação palavra-alma são ñe’ẽ e ayvu, que podem ser traduzidos tanto como “palavra” como por “alma”, com o mesmo significado de “minha palavra sou eu” ou “minha alma sou eu”.

Esse significado também se encontra em nephesh de Jz 16.16b: “apoderou-se da alma dele (ele) uma impaciência de matar” ou de Ez 4.14b: “Senhor Deus! Eis que a minha alma (eu) não foi contaminada”.

A semelhança persiste se levarmos em conta que pneuma e ruah (vento, espírito) algumas vezes denotam o princípio da vida. Assim, alma e palavra podem adjetivar-se mutuamente, podendo-se falar em palavra-alma ou alma-palavra, sendo a alma não uma parte, mas a vida como todo.

A criação da palavra original e dos que seriam pais e mães da humanidade antecedeu à criação da primeira terra. No mito dos Mbyá, “criou nosso Pai o fundamento da linguagem humana e a tornou parte de sua própria divindade, antes de existir a terra (...) tendo refletido, profundamente, da sabedoria contida na sua própria divindade, e, em virtude da sua sabedoria criadora, criou aqueles que seriam companheiros e companheiras de sua divindade”. Desse modo, a humanidade que habitava a primeira terra é constituída “por” e “na” palavra, “por” e “na” substância divina. Esse estatuto ontológico implicava a obrigação essencial de permanecer conforme as normas enunciadas pelos Pais, isto é, existir de acordo com sua própria natureza de humanos-divinos.

Hoje, distante dessa terra e dessa humanidade que se consubstanciava com a divindade, a reminiscência da estada entre os divinos pode conferir à palavra o poder de instaurar uma comunicação privilegiada e, aos humanos, a coragem para pedir a restituição da sua verdadeira natureza de seres destinados à totalidade acabada do bem viver, no coração eterno da morada divina. A atitude dos indígenas, nesse sentido, é oposta à dos personagens na saga bíblica das origens. Estes sentem a culpa por terem aspirado a ciência de Deus; os indígenas, não; eles exigem que os Deuses lhes dêem o saber. No pensamento guarani, a diferença entre mortais e imortais não é incomensurável; a palavra é precisamente sua medida comum, é a que leva os primeiros a desejarem a imortalidade.

Essa palavra exemplar se manifesta no mito, considerado a experiência mais direta, autêntica, imediata e originária da realidade. Para os Guarani, o mito aparece em rezas, hinos e relatos aprendidos de líderes religiosos que, no passado, podem ter participado mística e excepcionalmente da palavra, de um ato de contemplação. De modo que o “dizer” como elo entre o divino e o humano não exclui faculdades como o “ver” e o “sonhar” do âmbito das experiências espirituais. Ouvir, hendu, e ver, hecha, originam, para os indígenas, duas formas qualitativamente distintas de perceber a palavra.

Ohendúva são aquelas pessoas que escutaram a palavra da boca de outras pessoas que elas reconhecem ser suas mestras. Ohecháva são aquelas que viram a palavra, que não a aprenderam de alguém mas a receberam por inspiração, às vezes em sonhos. A primeira experiência de palavra é mediada, condicionada; a segunda é direta, incondicionada. Essas formas de apreensão fundam dois tipos de experiências e de lideranças espirituais.

Para os indígenas, na verdade, todas as pessoas são portadoras em maior ou menor grau das qualidades necessárias para se tornarem líderes espirituais. A grande maioria as desenvolve no âmbito do ouvir; eles são os ohendúva. Outros poucos se submetem a exercícios espirituais que lhes proporcionam a oportunidade de desenvolver-se na palavra a ponto de poder contemplá-la; são os ohecháva.

A experiência humana de poder ouvir e ver a palavra divina é possível pelo fato de o fundamento da linguagem humana ser a própria substância da divindade, porção da sabedoria criadora. A palavra é a justa medida para os mortais e os imortais. Ayvu é substância simultânea do divino e do humano. E por poderem apenas viver conforme sua própria substância, os seres humanos não têm outra alternativa senão a de conformarem-se incessantemente à relação original que os sujeita à divindade, numa sujeição hipostática semelhante à que Paulo anuncia em 1Co 15.28, “(...) então o próprio Filho se sujeitará àquele que todas as cousas lhe sujeitou, para que Deus seja tudo em todos”.

Na avaliação de Pierre Clastres, o íntimo parentesco entre o ser humano e sua linguagem parece subsistir, apenas, na humanidade primitiva. Para o autor, isso quer dizer que “o discurso ingênuo dos selvagens” nos obriga a considerar o que somente poetas e pensadores ainda não esqueceram, que a linguagem não é um simples instrumento, que os humanos podem caminhar com ela, e que “o Ocidente moderno perde o sentido de seu valor pelo excesso de uso a que a submete”. Entre os civilizados a linguagem se tornou exterior; mas as culturas primitivas, “mais preocupadas em celebrar a linguagem do que em servir-se dela, souberam manter com ela essa relação interior que já é, em si mesma, um poema natural em que repousa o valor das palavras”. Não é uma agressão à linguagem; é, antes, o abrigo que a protege. Nesse sentido, o canto de alguns “selvagens” é, na verdade, um canto geral, “nele é despertado o sonho universal de não mais sermos o que somos”. Por esse sonho ser realizável apenas no espaço da linguagem, é o triunfo da palavra.

“Só ela pode realizar a dupla missão de reunir as pessoas e de quebrar os laços que as unem”; ela se torna o mais-além, palavras ditas pelo que valem, a terra natal dos deuses.

Texto de Graciela Chamorro