sexta-feira, 11 de setembro de 2009

O POVO TAPIRAPÉ




Não sei exatamente como vai terminar este drama.
Só sei que nós estamos animados de uma grande esperança
e estamos resolvidos a mudar os caminhos da nossa história.

Lourenço Tixabae Eworôros, da nação Borôro



No final da época colonial, os TAPIRAPÉ, como os outros povos originários, haviam se refugiado nas cabeceiras dos grandes rios, onde poderiam estar mais protegidos dos ataques dos portugueses que buscavam ouro e escravos. Entretanto, a inimizade com outros grupos indígenas os obrigaram a buscara a região do Araguaia, nas nascentes do rio Tapirapé, não longe da ilha do Bananal. Ali cresceram e puderam constituir cinco aldeias, com uma população de aproximadamente 1.500 pessoas.

Embora fossem perturbados esporadicamente por ataques dos Kayapó, que em incursões guerreiras aprisionavam mulheres, a maior ameaça veio com a chegada de cearenses que percorriam a região em busca de seringueiras, já que a Amazônia vivia, na virada do século XIX para o XX, a Febre da Borracha. Com eles chegaram a gripe e a malária.

Os contatos continuavam intermitentes, não só com sertanejos (com os quais comercializavam instrumentos de ferro, como machado e facão), mas também com missionários católicos e evangélicos, que viajavam pelo Araguaia em busca de grupos arredios para batizar.

As doenças se alastravam e faziam muitas vítimas, já que os Tapirapé não apresentavam resistência a elas. No final dos anos 30, das cinco aldeias iniciais, só restavam duas: Tapi’itãwa (a aldeia da anta), com 147 pessoas, e Xsexotãwa (a aldeia do peixe), com apenas 40 pessoas.

O tempo e as doenças continuavam espalhando a morte. Em 1947, o grupo estava reduzido a 80 pessoas.

O golpe fatal ocorreu no final desse mesmo a no, quando os Kayapó Mentuksktire atacaram Tapi’itãwa, num dia em que os homens estavam na mata, repartidos entre a roça e a caça. Os velhos que se encontravam na aldeia foram mortos, e várias mulheres e meninas, seqüestradas, segundo a tradição do povo Kayapó, que procura mulheres de outros grupos para se casar. Apavorados, os sobreviventes fugiram, e durante a fuga um grupo se embrenhou pela mata, desgarrando-se dos demais. Outro grupo, mais numeroso, procurou o recém-criado posto do SPI, na desembocadura do rio Tapirapé.

Por três anos os Tapirapé deixaram de existir como sociedade, ficando dispersos entre famílias de sertanejos e nas fazendas da região. Graças aos padres dominicanos e a um funcionário do SPI, 51 remanescentes foram reagrupados próximo ao posto indígena, na foz do rio Tapirapé.

Construíram a Aldeia Nova, com cinco casas de adobe, do tipo sertanejo, dispostas em círculo, ao redor da takãra, a casa dos solteiros, construída na forma tradicional tupi, toda de palha.

Algum tempo depois, em 1952, chegaram as “Irmãzinhas de Jesus”, da Congregação de Charles de Foucauld, que buscavam um pequeno grupo, “um punhado de homens pelos quais ninguém se interessa”, como dizia a fundadora dessa ordem religiosa. Não chegavam, como os demais missionários, com a perspectiva desestruturadora de catequizar, batizar e “civilizar”. Vinham de outra experiência religiosa, em que o importante era a convivência discreta e silenciosa, a solidariedade com os mais pobres e a encarnação na cultura do outro. E esse apoio discreto e a convivência respeitosa fizeram com que um grupinho de pessoas, condenadas à extinção, voltasse a constituir um povo.

Em 1977, os Tapirapé já contavam com 137 pessoas, quase o triplo dos 25 antes. O controle médico-sanitário desenvolvido pelas Irmãs evitou novas epidemias. A autoconfiança voltou a reinar, e os Tapirapé não pararam de crescer. Por falta de mulheres na comunidade, alguns se casaram com moças Karajá, apesar das desconfianças deixadas pelo passado de vizinhança conflitiva.

Com o aumento populacional, as festas retornaram, como a dos jovens e a dos adolescentes. Nessa última, os meninos de 8 a 12 anos, num ritual de iniciação à vida adulta, raspam a cabeça e furam os lábios, depois de passar algum tempo morando na casa dos homens, aprendendo as atividades dos adultos.

As caçadas e pescarias voltaram a ser feitas pelos wyrá (sociedade de pássaros), que são agrupamentos masculinos, subdivididos em grupos por idade: o dos homens mais velhos,s o dos adultos e o dos jovens. Antes havia verdadeiras disputas entre eles, que foram substituídas pela competição. Todos os grupos possuem um ou mais Espíritos Animais protetores ou, como de diz também, “animais de poder”. Sempre de aves, como a garça e o papagaio, e por isso o nome “wyrá”. Para essas aves devem ser feitas algumas obrigações, como acolhê-las no takana e representá-las nos rituais, com danças e cantos.

Pra reaprender rituais de cura, alguns Tapirapé foram ao Parque do Xingu, receber a iniciação dos pajés Kamayurá.

A escola também teve importante papel na recuperação da autoconfiança e da auto-estima. Além de poderem aprender a ler e a escrever em seu idioma, os Tapirapé puderam ilustrar dois livros de história indígena, escritos por seus professores, que tiveram sucesso editorial (“História dos Povos Indígenas” e “Confederação dos Tamoios”). Vários alunos, como Rafael Oparãxowí, elaboraram textos que mostram como vêem o futuro de seu povo.

Hoje alguns jovens Tapirapé se formaram professores, num projeto alternativo assessorado por professores da UNICAMP e com o apoio de entidades da região de São Félix do Araguaia – MT. Ao contrário dos outros professores, a formatura ocorreu na aldeia, e fizeram questão de se apresentar pintados e com cocar de penas, de acordo com a tradição.

As crianças, que nasciam em grande número, passaram a ser sinal de vida. Em 1985, os Tapirapé já constavam com 202 pessoas, e em 1995, compunham 350.

Três fatos importantes ocorreram nos últimos anos do século XX: a demarcação da área onde vivem, em 1983; a criação da Associação dos Povos Tupi do Mato Grosso, Amapá, Pará e Maranhão – AMTAPAMA, surgida em 1985; e a retomada, em 1993, da área do Urubu Branco, onde existia a aldeia Tapi’itãwa, ocupada ainda pela fazenda Tapsiraguaia.

A luta pela terra tem uma longa história. Os Tapirapé, que o início tiveram o importante apoio das Irmãzinhas e dos agentes da pastoral da Prelazia de São Felix, aos poucos foram assumindo a luta e criando lideranças capazes de enfrentar o jogo duro dos fazendeiros e exploradores que invadiram a área indígena. Depois de muitos pedidos sem resposta feitos a Brasília, os Tapirapé, incentivados pela IX Assembléia de Chefes Indígenas, realizada sem sua aldeia, resolveram partir para a autodemarcação. Lideranças Xavante, Borôro, Paresi, Kaingang e Nambikuara, que participaram da reunião, se ofereceram para uma eventual ajuda. Mas sem conseguir impor suas condições aos fazendeiros, os Tapirapé começaram a matar os bois que encontravam em suas terras. Aproveitando esse incidente, o presidente da FUNAI, Coronel Nobre da Veiga, exigiu que seus funcionários deixassem a reserva, alegando falta de segurança, e solicitou reforço da polícia militar de São Felix, para “proteger” as fazendas.

Nesse momento, a sociedade civil e religiosa passou a se mobilizar, principalmente em Brasília e Goiânia. Em solidariedade aos Tapirapé, algumas entidades divulgaram nota de apoio à luta desse povo, denunciando a ineficiência da Funai. Tudo isso fez com que o então ministro do Interior, Máriio Andreazza, desautorizasse o procedimento do coronel Nobre da Veiga.

Outro encontro indígena, com a presença de lideranças Iranxe, RIkbaktsa, Pareci e Karajá, deu novo ânimo à luta. O novo presidente da FUNAI concordou em demarcar a área reivindicada, além de retirar os posseiros que nela viviam. Finalmente em março de 1983, o então Presidente João Figueiredo homologou a área de 66.166 hectares, ponto fim a esses anos de luta.

Mas os Tapirapé nunca se esqueceram de sua antiga aldeia, que ficou fora dessa demarcação. Sempre voltavam à região do Urubu Branco, de onde traziam a taquara para suas flechas. Na X Assembléia da Amtapama, realizada em outubro de 1995, voltam a pedir essa área tradicional. E lembrando-se da velha prática de autodemarcação, no final de 1993 um grupo de Tapirapé se transferiu para a antiga aldeia. Esse retorno não era apenas a ocupação de mais um pedaço de terra, mas a reconquista de uma área de onde saíram no final dos anos 40, acossados pelas doenças e pela morte. Ali bebem na fonte das antigas tradições, para enfrentar os novos problemas criados pela convivência com a sociedade ocidental.


Esse desafio entre o novo e o tradicional pode abalar a estrutura do povo Tapirapé. Mas eles esperam superá-lo com muita sabedoria. Xãwãrãxowí, um de seus líderes, aidna na década de 1980, procurou tranqüilizar uma pesquisadora, que se inquietava com as transformações ocorridas na aldeia: “Não se preocupe não. Tudo isso é coisa de pele. O que vale é o que corre aqui dentro da minha veia. E isso é Tapirapé. Isso não muda!”

Baseado no texto de Egon Heck e Benedito Prezia

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