domingo, 23 de fevereiro de 2014

IRMÃO QUE VEIO DO MAR

O que terá passado pela cabeça dos índios em seus primeiros encontros com os europeus, nos séculos XV e XVI? O que terão pensado ao se depararem com aqueles estranhos seres recém-chegados ao seu mundo?

Estas são questões intrigantes para qualquer pessoa que tente reconstituir aqueles episódios marcantes para a história mundial. Mas nem sempre houve tal curiosidade. Pelo contrário: até pouco tempo atrás, ninguém estava preocupado com o que pensaram os indígenas sobre a conquista ou sobre qualquer outro assunto. Vem daí a dificuldade de historiadores e antropólogos acessarem este tipo de informação, afinal, a maior parte dos povos americanos da época de Colombo e Cabral não possuía a escrita (eram ágrafos), e os colonizadores fizeram o que puderam para eliminar seus modos de vida. Restaram raros materiais para tentar fazer essa interpretação.

Havia os maias, os incas e os astecas. Eles, sim, tinham escrita, e quando houve interesse em saber o que os índios pensavam, foram essas sociedades que pautaram o que se acreditava ser “o” pensamento dos povos americanos. Mas será que diante da enorme quantidade de povos do continente, com línguas, costumes e práticas diferentes, existiam apenas essas formas de pensar?

Além de limitado e sujeito a generalizações, o conhecimento sobre aqueles povos ainda por cima é estereotipado. Todos os materiais produzidos – por nativos americanos ou europeus – foram lidos segundo um padrão que estipulava a superioridade da Europa em relação a outros modos de viver. Seja por acreditarem no cristianismo como única verdade religiosa, seja por valorizarem o progresso tecnológico e a ideia de evolução social, os colonizadores construíram uma hierarquia entre sociedades, na qual o mais avançado modelo era a Europa. O resto do mundo era entendido por este parâmetro: mais perto ou mais longe do ideal europeu. Vem daí a desqualificação radical de qualquer informação advinda dos índios, vistos como bárbaros por viverem de acordo com outros parâmetros de “fé, lei e rei”.

Apesar dessas limitações e distorções, é possível levantar hipóteses bem próximas do pensar dos índios daquela época. Os grupos indígenas que estavam na costa do que hoje é o Brasil eram, em absoluta maioria, da família linguística tupi-guarani. Pertencer à mesma família linguística não quer dizer fazer parte do mesmo grupo indígena. Assim como o português é da mesma família linguística que o espanhol e o francês, eles eram temiminós, tamoios, potiguares, tupinambás, entre outros, com muitas diferenças entre si, inimizades e guerras. E as culturas desses grupos se aproximavam em outras coisas, como as referências sobre a origem do mundo e de certas crenças. Uma delas é a Terra sem Males, mito que conduzia os tupis-guaranis para leste – indo ao encontro do mar, teriam uma terra de fartura e todos seriam preservados de infortúnios.

A Terra sem Males se inscreve numa prática usual dos tupis-guaranis: deslocar-se para superar uma situação desfavorável, como a morte de um chefe ou a carência de alimentos. Deste modo, os grupos que contataram os portugueses vinham de uma longa caminhada em busca desse lugar especial e, ao se depararem com seres repletos de novidades, julgaram que poderiam incorporá-los ao seu mundo, tornando-os mais fortes e melhores diante de seus inimigos.

É difícil supor que os índios da América portuguesa acreditassem que os europeus fossem deuses – da forma como os entendemos, habitantes de uma intransponível distância. Para os tupis-guaranis, homens e deuses são estágios de uma mesma experiência, fazem parte um do outro. Caminhar para a Terra sem Mal – e encontrá-la – poderia ser um mecanismo de transformação de índios em deuses sem passarem pela morte. Não há evidências que o comprovem, mas podemos supor que, por chegarem do leste e serem portadores de novidades, os portugueses fossem vistos como homens já transformados em deuses. Mas é bom lembrar que para aqueles índios essa situação não significa uma cega submissão: mais provável seria a atitude de garantir um contato que os fizessem descobrir como os portugueses conseguiram fazer essa passagem de homens a deuses sem a morte.

Mas há pistas de que a percepção dos índios sobre os conquistadores estava mais próxima da humanidade europeia. Durante muito tempo os nativos se utilizaram de uma estratégia mal compreendida pelos portugueses. Além de considerarem os índios preguiçosos, os registros lusos dizem que as índias eram dadas à sensualidade e se ofereciam aos europeus. Como ninguém estava interessado em saber o que pensavam esses índios, não se considerou que a ideia de preguiça disseminada pelo colonizador era uma recusa fundada na divisão de papéis masculinos e femininos: a agricultura era uma atividade feminina e os índios não queriam assumi-la nas roças portuguesas. Do mesmo modo, o “oferecimento” das mulheres refletia um dos principais mecanismos de fortalecimento de alianças entre grupos nativos, por meio do casamento. Um chefe era poderoso pelo número de filhas que possuía, pois elas seriam uma importante moeda na consolidação de alianças guerreiras. Como os registros indicam a estratégia de aproximação das mulheres índias, o mais correto é imaginarmos que, na percepção dos nativos, os portugueses não eram divindades, mas talvez homens poderosos com os quais valia a pena fazer aliança.

Outro estereótipo recorrente é o do “índio puro” maculado pelo contato com o europeu. Esta ideia pressupõe que os índios eram todos iguais e que não entravam em contato com outros grupos. Na verdade, o que havia era uma enorme diversidade de povos em contato, transformando-se historicamente por meio de trocas e atritos. Não eram sociedades estáticas, mas povos preparados para um contato.

Ailton Krenak, atual liderança indígena, reforça esta perspectiva ao comentar as narrativas nativas acerca da chegada europeia: “Em cada uma dessas narrativas antigas já havia profecias sobre a vinda, a chegada dos brancos. Assim, algumas dessas narrativas, que datam de 2, 3, 4 mil anos atrás, já falavam da vinda desse outro nosso irmão, sempre identificando ele como alguém que saiu do nosso convívio e nós não sabíamos mais onde estava. Ele foi para muito longe e ficou vivendo por muitas e muitas gerações longe da gente. Ele aprendeu outra tecnologia, desenvolveu outras linguagens e aprendeu a se organizar de maneira diferente de nós. E nas narrativas antigas ele aparecia de novo como um sujeito que estava voltando para casa, mas não se sabia mais o que ele pensava, nem o que ele estava buscando”.

Um outro irmão, e não um deus. Deixemos de lado histórias famosas como a do capitão inglês James Cook sendo recebido como um deus pelos polinésios no século XVIII. O que houve foi o contato inédito de sociedades e culturas diferentes.

Texto de Eunícia Fernandes

SANGUE NATIVO

Em 1663, a paulista Maria do Prado ditou em seu testamento: “Declaro que não possuo escravo algum cativo mas somente possuo como é uso noventa almas do gentio da terra as quais tratei sempre como filhos e na mesma formalidade as deixo a meus herdeiros”.

Ao procurar resolver o destino dos 90 índios que ficaram sob sua responsabilidade depois da morte do marido, a viúva de 80 anos tocou de forma explícita em um problema delicado: a liberdade dos índios. Ponto crucial da legislação colonial, este direito convivia de maneira precária com os “usos e costumes” dos paulistas. Em meados de 1650, Maria do Prado e seu marido, Miguel de Almeida de Miranda, chegaram a ter mais de 200 índios, capturados, em sua maioria, em expedições bandeirantes nos sertões. A forte presença da escravidão indígena é bastante reveladora da formação da economia e da sociedade da época. E as bandeiras ajudam a explicar esse fenômeno.

As expedições para o sertão começam no século XVI e só perdem força e sentido na segunda metade do século XVIII. A palavra sertão já aparece discretamente na carta de Pero Vaz de Caminha, como referência a um vasto e desconhecido interior. Com o tempo, o termo passou a representar mais do que uma simples referência geográfica, também demarcando um espaço simbólico. A distinção entre o povoado e o sertão marcava o contraste entre dois universos, um ordenado pela religião católica e pelas leis do Reino, o outro pautado pela ausência da ordem: “sem fé, nem lei, nem rei”, como rezava o ditado da época. Nesse mesmo período, começaram a ser conhecidas as suas riquezas: madeiras, minérios e, sobretudo, populações indígenas. Graças às alianças com esses grupos, os europeus puderam ocupar efetivamente diferentes pontos do litoral e, no caso excepcional de Piratininga (São Paulo), no interior do continente.

A semente do sertanismo estava inscrita nestas alianças em dois sentidos importantes. Primeiro, as lideranças indígenas buscavam aliados portugueses para aumentar seu prestígio e seu poder de fogo em guerras contra outros grupos, que envolviam expedições para capturar inimigos e perpetuar a vingança. Em segundo lugar, as uniões entre portugueses e índias produziram filhos mestiços, os chamados mamelucos. Muitos destes se valeram de suas raízes nativas e de suas habilidades lingüísticas para se tornarem sertanistas especializados, alimentando a crescente demanda de seus parentes brancos por escravos. Já as filhas mestiças se casaram com portugueses, dando início a genealogias que instalavam uma “nobreza da terra” ao mesmo tempo em que apagavam o passado indígena. Na Capitania de São Vicente, a principal aliança deste tipo se deu por meio da relação entre o náufrago português João Ramalho e Mbcy (ou Bartira), filha do chefe tupi Tibiriçá.

Com a fundação da Vila de São Vicente em 1532 e a introdução da produção açucareira pouco depois, as guerras entre grupos indígenas passaram a produzir um número crescente de braços para a nascente economia colonial. No final da década de 1540, segundo um relato da época, existiam três mil escravos índios no litoral vicentino, ocupados nos seis engenhos e nas outras propriedades dos europeus.

No entanto, havia um entrave que impedia o florescimento pleno de um sistema escravista baseado na mão-de-obra indígena. Os missionários jesuítas, que chegaram ao Brasil em 1549 e a São Vicente em 1553, entraram em competição direta com os sertanistas ao direcionar os índios “descidos” do sertão para aldeias missionárias. Eles pressionaram a Coroa para proibir o cativeiro injusto dos índios. A “Lei sobre a Liberdade dos Gentios”, de 1570, estabeleceu um dos fundamentos da política indigenista portuguesa, declarando livres todos os índios, salvo aqueles sujeitos à “Guerra Justa” – grupos inimigos que apresentavam alguma resistência armada.

Outros fatores dificultavam a escravidão dos índios. O contato com os europeus trazia doenças contagiosas que encontravam neles um “solo virgem”, devido à falta de resistência imunológica. Uma gripe podia causar a morte de muitos, e doenças graves, como a varíola, tiveram um impacto ainda mais fulminante. Em algumas partes da América portuguesa, estas dificuldades favoreceram o crescimento do tráfico transatlântico de escravos africanos. Mas também estimularam a intensificação das expedições para o sertão, em busca de novos cativos para substituir as vítimas das epidemias.

Na Capitania de São Vicente, com o apoio das autoridades locais, os colonos começaram a organizar expedições de maior porte para adquirir cativos. Os primeiros grandes empreendimentos, nas décadas de 1580 e 1590, tomaram a forma de “Guerras Justas”. Outras expedições, que partiam para o sertão com o pretexto de buscar metais preciosos, regressavam a São Paulo com números cada vez maiores de índios capturados.

No início do século XVII, as expedições tornaram-se mais freqüentes e assumiram explicitamente o projeto de abastecer as propriedades rurais com a força do trabalho indígena. Entre 1600 e 1641, as populações carijós (guarani) localizadas no sul e no sudoeste de São Paulo foram as mais visadas. De língua e cultura muito semelhantes às dos índios tupis do planalto, os carijós passaram a constituir a maioria da população colonial na região de São Paulo nesse período. As expedições ganharam feições paramilitares, ao arrepio da lei e a despeito da voz de protesto entoada pelos jesuítas. Este movimento chegou ao seu auge nas décadas de 1620 e 1630, com as grandes bandeiras sob o comando de Manuel Preto, Antônio Raposo Tavares, André Fernandes e Fernão Dias Paes, para citar apenas os maiores. Estas expedições destruíram as reduções jesuíticas de Guairá (no atual Paraná), causaram grandes estragos nas missões do Tape (no atual Rio Grande do Sul) e criaram um novo momento de tensões envolvendo paulistas, jesuítas e a Coroa.

Armados pelos jesuítas, os índios das missões do Tape derrotaram duas grandes expedições de apresamento em batalhas decisivas, primeiro em Caaçapaguaçu (1638) e depois em Mbororé (1641). Enquanto isso, em São Paulo, os colonos venciam outra batalha: a luta pelo controle dos índios espalhados entre as propriedades particulares. Expulsaram os jesuítas em 1640 e negociaram com a Coroa o direito de explorar a mão-de-obra indígena que lhes custou tanto sangue e suor para obter. Esta postura foi resumida por um jesuíta português que visitou São Paulo em 1700: “Estavam tão firmes os moradores daquela Vila em que os índios eram cativos que ainda que o Padre Eterno viesse do céu com um Cristo crucificado nas mãos a pregar-lhes que eram livres os índios, o não haviam de crer”. É nos testamentos dos próprios moradores que se vê com mais clareza a posição assumida. Em 1684, o casal Antônio Domingues e Isabel Fernandes declarava que os índios que possuíam “são livres pelas leis do Reino e só pelo uso e costume da terra são de serviços obrigatórios”.

A derrota para os índios no sul não significou o fim das expedições de apresamento. Pelo contrário; apesar de diminuírem em tamanho médio, aumentaram em número, freqüência e distância percorrida. A maioria operava em escala pequena, seja na forma de empreendimentos familiares, seja por meio de contratos entre “armadores” e sertanistas. Os armadores forneciam correntes, pólvora e índios sertanistas com a expectativa de receber metade do “lucro” da expedição, isto é, metade dos índios trazidos do sertão.

Um dos resultados destas mudanças foi o aumento na diversidade étnica e lingüística da população subordinada. Essa diversidade também denunciava as dificuldades que os sertanistas enfrentavam. Agora eles percorriam sertões mais distantes e menos conhecidos, trazendo quantidades cada vez menores de cativos. Outro resultado evidente foi a diminuição da população indígena nas propriedades paulistas. Os inventários do século XVII mostram que a posse média atingia quase quarenta índios por proprietário em meados do século, um número que despencou para menos de dez no início do século XVIII.

Ainda assim, os índios eram uma presença constante em todas as propriedades que deixaram algum vestígio documental do século XVII. Vários inventários arrolam posses superiores a cem índios, o que levou o historiador Sérgio Buarque de Holanda a observar a situação paradoxal da “grande propriedade, pequena lavoura”.

Como explicar a necessidade de tantos índios numa área colonial periférica, à margem da economia do Atlântico? Para muitos autores, os paulistas aprisionavam índios para vender aos setores mais dinâmicos da Colônia, como as zonas açucareiras do Rio de Janeiro, da Bahia e de Pernambuco. A documentação, no entanto, aponta para outra versão. A mão-de-obra indígena certamente mostrava-se indispensável na lavoura paulista que abastecia uma parte da América portuguesa. Mas os índios também colaboraram em todas as etapas da ocupação de terras por europeus. Limpavam os caminhos, abriam as roças, construíam as casas e as igrejas, transportavam bens e pessoas, participavam das expedições para o sertão. Proporcionavam uma força de trabalho e uma força militar. Este segundo aspecto tinha um sentido prático nas disputas entre facções que tanto marcaram a história colonial, mas também se revestia de sentido simbólico, pois os paulistas comandavam a atenção das autoridades nos dois lados do Atlântico. Sua imagem era contraditória. Rebeldes e insubordinados para uns, leais vassalos para outros.

Na segunda metade do século XVII, a Coroa procurou explorar estes laços de vassalagem ao convocar alguns paulistas “potentados em arcos” para combater indígenas e africanos rebeldes, sobretudo nas capitanias da Bahia, de Pernambuco e Rio Grande. Animados com a perspectiva de aumentar o número de escravos, vários paulistas concordaram em participar destas campanhas. Mas as guerras no Recôncavo, no Rio São Francisco e no Açu remeteram poucos cativos a São Paulo. E até mesmo os sertanistas deixaram de voltar para suas terras de origem, buscando aproveitar as grandes dotações de terras que receberam pelos serviços prestados. Na análise pioneira do historiador Capistrano de Abreu, passaram de despovoadores a povoadores.

O sertanismo de apresamento já estava com seus dias contados. O golpe mais forte veio com as grandes descobertas do ouro, entre 1693 e 1722, justamente em lugares freqüentados havia décadas pelas expedições de bandeirantes. Os paulistas em Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás ainda tiveram um papel importante na relação com as populações indígenas dessas regiões e até ensaiaram reproduzir o sistema de administração dos índios que tanto lhes rendeu no século anterior. Mas as bandeiras do século XVIII adquiriram características muito diferentes, menos preocupadas com a transferência dos índios para as zonas de povoamento colonial e mais voltadas para a destruição dessas populações.

A história de São Paulo no século XVII se confunde com a história dos povos indígenas. Por isso, convém reconhecer que os índios não se limitaram ao papel de tábula rasa dos missionários ou vítimas passivas dos colonizadores. Foram participantes ativos e conscientes de uma história que foi pouco generosa com eles.

Texto de John Monteiro

BANDEIRANTES

Altivos, imponentes, longas botas, chapéu e armas vistosas. Esqueça a imagem típica dos bandeirantes difundida pelos livros didáticos. A realidade era bem outra: as tropas caminhavam descalças por extensos territórios, sujeitas a todo tipo de desconforto, à mercê dos ataques de índios e de animais, fustigadas pela fome.

Antes de virar herói – invenção da elite no início da República, para enaltecer a capacidade de liderança dos paulistas –, o bandeirante foi o protagonista de uma colonização árdua e violenta, que durante mais de dois séculos desenvolveu uma cultura própria, bem distante dos padrões europeus.

Desde o século XVI até as primeiras décadas do XVIII, expedições partiram em busca de metais preciosos e de índios para serem vendidos como escravos nas plantações que abasteciam a Colônia. Essas incursões ganharam o nome de “BANDEIRAS” – possivelmente por causa do costume tupiniquim de levantar uma bandeira em sinal de guerra.

O sucesso das empreitadas dependia do “cabo da tropa”, ou “capitão do arraial”, sertanista experiente que tinha poder absoluto sobre seus subordinados. O cabo reunia na tropa seus filhos (mesmo ainda adolescentes), parentes e agregados para auxiliá-lo no comando, fazendo das bandeiras um negócio eminentemente familiar.

O capelão era outra figura obrigatória, encarregado de dar assistência espiritual à tropa. Grupos maiores contavam também com o alferes-mor, responsável pela partilha dos índios capturados, e o escrivão. Mulheres índias ou mestiças (temericó) acompanhavam os bandeirantes pelo sertão na condição de escravas.

No entanto, a maioria dos integrantes eram escravos indígenas, geralmente guaranis ou carijós, que formavam tropas auxiliares encarregadas de combater e capturar índios no sertão. Vale dizer que, em meados do século XVII, 83% da população da vila de São Paulo era formada por índios. Os mamelucos, descendentes de pai branco e mãe índia, muitas vezes atuavam como guias e intérpretes, pois falavam a “língua geral” (tupi) e transitavam entre o mundo indígena e o português. Serviam também de “isca” para as capturas: vestidos com batinas pretas e cabelos cortados em tonsuras, passavam-se por jesuítas e assim escravizavam os índios sem maiores resistências.

Conhecimentos herdados pelos mamelucos eram cruciais para a sobrevivência no sertão: orientação e observação dos movimentos do Sol, dos astros e dos rastros, técnicas de caça e pesca, construção de embarcações e mareagem pelos rios, sistemas de comunicação por meio do fogo e da sinalização com gravetos, além da classificação da flora e da fauna, fundamental para a seleção de alimentos, bebidas e medicamentos.

Os bandeirantes utilizavam vários tipos de armas: espadas, adagas, lanças, facas, terçados e alfanjes, além das de fogo (espingardas, bacamartes, mosquetes, arcabuzes, pistolas e escopetas). Na hora do combate, contudo, preferiam recorrer aos arcos e flechas indígenas, pois as armas de fogo geralmente enferrujavam e eram de difícil manejo no calor das batalhas. Para se defender das flechas inimigas, usavam gibão de couro de anta recheado de algodão.

Um meio eficiente de seduzir os índios era oferecer-lhes suprimentos como anzóis, contas, facas, espelhos, tesouras e aguardentes de cana. O escambo, prática tradicional das sociedades indígenas, foi empregado na primeira etapa das bandeiras com o intuito de transformar, por meio “amigável”, os nativos em escravos.

Já no final do século XVI, a crescente demanda de mão-de-obra das grandes fazendas agrícolas do planalto motiva expedições para sertões mais distantes. A primeira bandeira de grande porte saiu de São Paulo em 1628, sob o comando do famoso Antônio Raposo Tavares (1598-1658), com cerca de 900 paulistas e dois mil guerreiros tupis. Raposo se estabeleceu num arraial na entrada do território de Guairá, e dali comandou violentos ataques às aldeias e missões espanholas daquela região, e também em Tape (atual Rio Grande do Sul) e Itatim (atual Mato Grosso do Sul), nas proximidades da bacia do Rio da Prata. Conta o jesuíta Ruiz de Montoya que os paulistas destruíram onze missões com populações de três mil a cinco mil índios – o que resulta num total de 33 mil a 55 mil índios capturados. Para Luiz Felipe de Alencastro, na zona de Guairá e Tape as bandeiras capturaram aproximadamente 100 mil indígenas, em uma das “operações escravistas mais predatórias da história moderna”.

Em 1641, a Batalha no Rio Mbororé, afluente do Uruguai, marcou o fim das expedições paulistas às missões espanholas. A bandeira de Jerônimo Pedroso de Barros, com 350 bandeirantes e 600 índios tupis em 130 canoas, foi surpreendida e derrotada, numa batalha de seis dias, por 300 índios guaranis em 70 canoas, armados com arcabuzes e arcos da Missão de São Francisco Xavier (atual Argentina). Depois dessa derrota, os bandeirantes mudaram de rumo e passaram a capturar índios na região Centro-Oeste.

Suas condições de vida eram precárias. Os mantimentos eram apenas cabaças de sal e pães de “farinha de guerra”, feitos de mandioca ou de milho. Completavam seu sustento por meio da caça e da pesca, e incorporavam ao cardápio alimentos improvisados: frutas silvestres, pinhão, raízes, tubérculos, palmitos, mel-de-pau, ovos de jabuti e os “paus de digestão”, ou seja, grelos de samambaia e suas variações. Outra fonte de alimento eram as roças indígenas de milho, feijão e mandioca, geralmente saqueadas e destruídas como prova da supremacia dos bandeirantes.

Apesar disso, a fome era quase sempre uma companheira de viagem. Da tropa do capitão Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhangüera, perdida numa grande chapada, morreram vítimas da fome mais de 40 pessoas. Luís Barbalho Bezerra, comandante da bandeira formada para combater os holandeses na Bahia, relatou em seu regresso que a fome foi tanta que os paulistas comeram os poucos cavalos que havia, além de couros, raízes de bananeiras e muitas imundícies. Depois de oito meses de cativeiro entre os índios paiaguás do Rio Paraguai, João Martins Claro, paulista, e Manuel Furtado, do Rio de Janeiro, fugiram nus, sem nada de ferro, e sobreviveram durante alguns meses do ano de 1731 comendo somente frutas, cocos, raízes e gafanhotos.

Aliás, o governador da capitania de São Paulo, D. Luís Antônio de Sousa Botelho Mourão, impressionou-se com o rotineiro costume entre a gente paulista de comer “bichos imundos e coisas asquerosas”, como o içá torrado (formiga saúva fêmea). Também o bicho-de-taquara, apreciado pelos índios como um manjar, foi largamente consumido pela população colonial. Uns comparavam-no aos miolos de boi, outros, à manteiga fresca. Para matar a sede, apelava-se para as raízes vegetais, como a de umbuzeiro, mandacarus, cipós, taquaruçus e gravatás.

Animais selvagens e peçonhentos causavam sérios estragos nas tropas. Jararacas, cascavéis, corais e sucuris infundiam verdadeiro horror aos sertanistas. A onça pintada (jaguar) e a onça parda (suçuarana) atacavam viajantes inexperientes, que se descuidavam pelos caminhos do sertão. O maior martírio, entretanto, era resistir às investidas dos mosquitos, responsáveis por incontáveis noites de insônia. Bichos-de-pé, formigas e carrapatos infestavam o cotidiano dos bandeirantes. A rotina tornava-se ainda mais miserável pelo constante temor de um súbito ataque indígena. A ponto de os integrantes da bandeira do alferes José Peixoto da Silva Braga se virem obrigados a dormir em ilhas, enterrados na areia.

As bandeiras foram a principal atividade da economia de São Paulo até a década de 1690, quando foi descoberto o ouro na atual região de Minas Gerais. Usurparam os territórios indígenas, capturaram milhares de índios, arrasaram aldeias, destruíram etnias e favoreceram a difusão de epidemias. Muitos bandeirantes não voltaram ao planalto – como os primeiros povoadores de Minas Gerais, os que seguiram para o vale do São Francisco e os que foram combater os tapuias (índios não-tupis) e quilombolas no Nordeste.

Na história da São Paulo colonial, índios de várias etnias, na condição de escravos, contribuíram para a formação de uma sociedade baseada em saberes, técnicas e práticas nativas. A língua geral, por exemplo, foi falada pela maioria da população de São Paulo até 1759, quando acabou proibida pelas autoridades portuguesas. Mas a consolidação de uma elite paulista, enriquecida pela agricultura e pelo comércio a partir do século XVIII, marginalizou as populações indígenas e rompeu com os padrões culturais dos ameríndios. Nesse processo de conquista, os paulistas tornaram-se grandes proprietários de terras, e estas ficaram sujeitas, em definitivo, à soberania da Coroa portuguesa. A verdadeira história dos bandeirantes ia ficando para trás, assim como seu rastro de destruição.

Texto de Glória Kok

INVASÕES BÁRBARAS... nas terras dos Botocudos

As entradas para os sertões de Minas foram movidas por um tripé de interesses: o ouro e as pedras preciosas e, por extensão, a terra (para o plantio de roças e controle sobre passagens e rotas comerciais), e os índios (que se prestavam como mão-de-obra para a lavra mineral, agrícola ou como trabalhadores domésticos). Com esse objetivo, inúmeras expedições militares foram organizadas para avançarem pelo interior, cunhando várias designações: bandeiras, entradas, conquistas, descobrimentos, jornadas, partidas, companhias ou campanhas – todos termos que, tomados uns pelos outros e combinando vários objetivos, tiveram por propósito principal estender o domínio da Coroa Portuguesa sobre o território e conquistar a população nativa.

As bandeiras se tornaram particularmente intensas durante a segunda metade do século XVIII nas florestas do leste da capitania, um encrave entre Minas Gerais, Espírito Santo e Bahia, quando pelo menos 79 expedições atravessaram a região, transformando a área em um verdadeiro cenário de operações militares.

A situação econômica de Minas, nessa época, apresentava-se como fonte de preocupação por causa da queda do ouro e dos quintos reais. E os territórios férteis ocupados pelas populações indígenas nômades, transformaram-se na esperança para a situação de penúria. Para alguns a região era fonte de novas riquezas minerais; para outros, terras para agricultura e pastoreio. Por isso, não sem razão, encontramos inúmeras referências aos índios como barreira natural ao desenvolvimento de Minas. Documentos da época carregaram tintas de horror sobre a índole dos indígenas, descritos como perigosos, traidores e canibais.

A partir dos anos de 1760, os governadores avançaram por “terras incógnitas ou proibidas”, como era referido nos mapas da época o vale do rio Doce, onde até então a Coroa havia proibido o acesso para tentar controlar os contrabandos do ouro. A região passou a ser a chave para salvar a capitania do declínio econômico e alvo de cobiça por causa de sua floresta frondosa, de suas terras férteis e da civilização dos índios. Para compensar o empreendimento, a Coroa concedia um lote de terras (sesmaria) como recompensa para aqueles que se arriscassem na aventura. Entre 1701 e 1836 foram concedidas 7.991 cartas de sesmaria, ou seja, um verdadeiro loteamento das terras nativas.

Essas terras fizeram a riqueza de muitos bandeirantes. Um bom exemplo foi Inácio Correia Pamplona que chegou a receber oito porções de terra totalizando 104 mil hectares. As batalhas que liderou para a conquista das terras caiapó foram das mais sangrentas já registradas.

Não demorou para que, distorcendo a realidade, os índios fossem tachados como “invasores”, o que justificou mais violência contra as populações indígenas. De fato, agiam em defesa própria, respondendo à ocupação de suas terras. É verdade que os povos nativos – Coroado, Puri, Botocudo, Kamakã, Pataxó, Panhame, Maxakali, entre outros – encontraram-se, ao final, em minoria de armas e homens, atacados por doenças e reduzidos a uma pequena área geográfica.

Os colonos queixavam-se das “invasões dos índios bárbaros”. Apelavam por medidas rigorosas. Em 1806, o governador Pedro Maria Xavier de Ataíde e Melo, em discurso inflamado em Vila Rica, institucionalizou de uma vez por todas a solução militar contra as populações indígenas. Na virada do século, a decisão acenava para um desfecho pungente e cruel. O príncipe regente D. João, recém-chegado ao Brasil, expedia a Carta Régia de 13 de maio de 1808. Nela, declarava oficialmente a Guerra contra os Botocudos.

Texto de Maria Leônia Chaves de Resende

LÍNGUA INDÍGENA NO PORTUGUES

A prova está no dicionário: dos 228 mil verbetes que o Houaiss apresenta em uma de suas edições, cerca de 45 mil são palavras oriundas de línguas indígenas. Alguma dúvida de que o conhecimento dessa herança linguística, mesmo que superficial, é necessário para entender o português que falamos, e até mesmo para consolidar a nossa identidade?

“Há várias línguas faladas em português”, afirma José Saramago no documentário Língua: vidas em português, e basta olhar as variedades regionais para dar razão ao escritor. Como explicar essas diferenças? Parte delas reside no fato de que os índios que aqui moravam falavam centenas de línguas autóctones de diversos troncos linguísticos. Quando começaram a usar um idioma que veio de fora – o português – nele deixaram impressas suas marcas, fruto de uma relação que a sociolinguística denomina de “línguas em contato”. Como as línguas indígenas eram diversas, as marcas que deixaram não foram as mesmas em cada região.

No início do século XVI, o poeta Sá de Miranda lançou aos mares do futuro a nau da língua portuguesa, vinculando seu destino à expansão do comércio marítimo. Durante um par de séculos, caravelas singraram “mares nunca dantes navegados”, carregando, entre outros, um bem imaterial: o português, que passou a ser falado na Índia, na Malásia, na Pérsia, na Turquia, na África, no Japão e até na China e na Cochinchina. Em muitos lugares tornou-se “língua franca”, isto é, um idioma usado para comunicação entre grupos de pessoas cujas línguas maternas são diferentes – como ocorre hoje com o inglês.

A língua portuguesa já veio para cá marcada por outras línguas com as quais havia convivido. Aqui, no território que é hoje o Brasil, encontrou mais de 1.300 línguas, faladas por cerca de 10 milhões de habitantes, segundo estimativas de pesquisadores da Escola de Berkeley que estudaram a demografia histórica do período e consideram que no continente americano ocorreu "a maior catástrofe demográfica" da história da humanidade.

As duas línguas gerais indígenas faladas no Grão-Pará e no Brasil – a Língua Geral Amazônica (LGA) e a Língua Geral Paulista (LGP) – nomearam conceitos, funções e utensílios novos trazidos pelos europeus com adaptações fonéticas e fonológicas: cavalo (cauarú), cruz (curusá), soldado (surára), calça ou ceroula (cerura), livro (libru ou ribru), papel (papéra), amigo ou camarada (camarára).

Os portugueses começaram a falar essas línguas e também tomaram delas muitos empréstimos, a maioria sendo do tronco tupi, que mantinha grande número de falantes espalhados por extenso território da costa atlântica. Desde o século XVI, portugueses que tinham interesse econômico em comunicar-se com os índios começaram a usar uma língua de base tupi que se tornou a Língua Geral. Os missionários fizeram então uma gramática explicando como funcionava essa língua e passaram a usá-la na catequese. Traduziram para ela orações, hinos e até peças de teatro.

Apesar de extintas, algumas dessas línguas indígenas continuam sendo usadas por brasileiros, que nem desconfiam desses empréstimos, em nomes de lugares, animais, vegetais, ervas, flores, plantas, enfim, da flora e da fauna. Numa amostra coletada pelo linguista Aryon Rodrigues, 46% dos nomes populares de peixes e 35% dos nomes de aves são oriundos só de línguas tupi.

De origem tupi é a palavra carioca, nome de um rio que, segundo alguns especialistas, significa “morada (oca) do acari”, um peixe que cava buracos na lama e ali mora como se fosse um anfíbio. Para outros, é o nome de uma aldeia, a “morada dos índios carijó”. Da mesma origem são os nomes de muitos lugares, como locais atuais do Rio de Janeiro que conservaram as denominações de antigas aldeias: Guanabara (baía semelhante a um rio), Niterói (baía sinuosa), Iguaçu (rio grande), Pavuna (lugar atoladiço), Irajá (cuia de mel), Icaraí (água clara) e tantos outros, como Ipanema, Sepetiba, Mangaratiba, Acari, Itaguaí.

Muitos topônimos indígenas perderam seu sentido original. Os Tupinambá denominaram de Itaorna uma praia em Angra dos Reis. Nessa área, na década de 1970, foi construída a Central Nuclear Almirante Álvaro Alberto, mas os engenheiros responsáveis desconheciam que o nome dado pelos índios continha informação sobre a estrutura do solo – minado por águas pluviais, que provocavam deslizamentos de terra das encostas da Serra do Mar. Somente em fevereiro de 1985, quando fortes chuvas destruíram o Laboratório de Radioecologia que mede a contaminação do ar na região, eles descobriram o que significa itaorna: “pedra podre”.

A influência das línguas indígenas nas variedades usadas no Brasil não se resume em uma listagem de palavras exóticas ou "folclóricas". Existem outras influências entranhadas nas camadas profundas da língua, que penetraram em seus alicerces, mexendo com seu sistema nos campos sintático, fonológico e morfológico. É o que os linguistas chamam de "substrato".

No caso da fala individual, o substrato é o conjunto de transferências adquiridas pela primeira língua, ou língua materna, depois do contato com uma segunda língua. Do ponto de vista coletivo, o substrato é o conjunto de vestígios que uma língua, quase sempre extinta, deixa sobre outra língua, em geral a de um povo invasor. É a influência da língua perdida sobre a língua imposta, que só se estabiliza após diversas gerações. Exemplos disto são alguns processos de modalização do nome, característicos do tupi, que deixaram suas marcas no português não pela via do empréstimo cristalizado, mas pelo próprio mecanismo. Tanto na palavra netarana, usada no Pará, quanto em outras do português regional, como sagarana, canarana, cajarana, tatarana, há o uso do sufixo tupi rana (“como se fosse”).

Esses resíduos ainda não foram completamente inventariados, mas alguns deles foram identificados. O indigenista Telêmaco Borba recolheu, em 1878, dados sobre a língua oti, que era então falada no sertão de Botucatu, em São Paulo, e que foi extinta. Descobriu que aquela língua, do tronco Jê, possuía sons que os grupos de língua tupi não tinham, como o r retroflexo. E seus falantes levaram esse traço para o português quando adquiriram a nova língua. Ele ali permanece até hoje no r paulista, conhecido como r caipira.

No interior do Amazonas, no rio Madeira, há o processo de “alçamento” e “abaixamento” de vogais. “Alçamento” é o fechamento vocálico, como no caso de “popa da canoa”, que se pronuncia pupa da canua, o que também é atribuído ao substrato da língua indígena.

Nem sempre tais mudanças foram aceitas pelos puristas da língua. Da mesma forma que o Império Romano considerou como “línguas estropiadas” as variedades do latim faladas na Península Ibérica (que mais tarde deram origem ao português, ao espanhol, ao catalão, ao galego, ao mirandês), assim também os portugueses consideraram a variedade aqui falada como “língua mutilada”. No Sermão do Ano Bom, em 1642, o jesuíta Antonio Vieira, que viveu no Grão Pará, afirmou que “A língua portuguesa (...) tem avesso e direito; o direito é como nós a falamos, e o avesso como a falam os naturais”. Classificou as variedades locais do português de "meias línguas, porque eram meio políticas [civilizadas] e meio bárbaras: meias línguas, porque eram meio portuguesas e meio de todas as outras nações que as pronunciavam, ou mastigavam a seu modo”.

Uma resposta a Vieira está na letra da canção “Língua”, de Caetano Veloso: “Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões / (…) E deixe os Portugais morrerem à míngua / 'Minha pátria é minha língua'/ Fala Mangueira! Fala! / Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó/ O que quer / O que pode esta língua?/ (…) Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas”.

As línguas indígenas permanecem no substrato do português e guardam informações e saberes, funcionando como uma espécie de arquivo. Conhecer a contribuição efetiva que legaram à língua portuguesa é entender como viviam os povos que as falavam e se apropriar dessa experiência milenar.

Texto de José R. Bessa Freire

XERIMBABO – o melhor parente do homem

Uma índia guajá do Maranhão nua, dando de mamar a um filhote de porco selvagem enquanto segura seu próprio filho com o outro braço. Esta fotografia, de Pisco Del Gaiso, foi publicada na Folha de S. Paulo em 1992 e representa um dos ícones exóticos que os fotógrafos gostam de captar entre os índios. Cenas como essa devem ter sido vistas muitas vezes por missionários, colonizadores ou viajantes estupefatos. Para muitos, trata-se de uma visão muito próxima do animalesco, que lembra as mulheres de Tebas matando animais selvagens com as próprias mãos enquanto amamentam seus rebentos na tragédia “As Bacantes”, do grego Eurípides (484-406 a.C.). Mas outros acreditam que seja a prova do amor que os índios sentem pelo mundo natural.

A palavra “XERIMBABO” dá pistas desse afeto entre os nativos e os animais. O termo cherimbane – que significa “coisa muito querida” – foi recolhido pelo pastor e missionário francês Jean de Léry (1534-1611) durante as pesquisas que fez para o livro “Viagem à Terra do Brasil” (1578). Ele percebeu a expressão observando uma índia com um papagaio. Somente sob o comando de sua dona, a ave dançava, cantava, assobiava e imitava os gritos de guerra dos Tupinambá. Alguns de seus conterrâneos tentaram comprá-lo, mas não conseguiram fechar negócio porque a nativa só aceitava trocá-lo por “um canhão grande”. A história fez com que Léry estabelecesse um elo entre o apreço pelos chamados xerimbabos e os corvos que os antigos romanos mantinham em suas casas e que, ao morrer, eram velados tal qual um ente querido.

Como a maioria das palavras indígenas que acabaram se incorporando ao português brasileiro, xerimbabo vem do tupi. A palavra não é encontrada nas outras línguas nativas do Brasil, que são muitas e não têm sequer um termo equivalente. Com a incorporação da palavra xerimbabo, o português é uma das poucas línguas do mundo que contam com um nome específico para designar um animal de estimação.

Quando Léry fez esse estudo, os europeus dependiam muito mais do que agora de uma série de animais domesticados, basicamente os mesmos que exploramos até hoje. Eles eram os responsáveis por boa parte dos bens alimentícios, do vestuário, das matérias-primas e da força mecânica para a indústria e o transporte. Mas os bichos de estimação eram relativamente raros: só havia os cães pequenos das madames mais abastadas e os pássaros engaiolados. Com o começo das expedições a outros continentes, os muito ricos passaram a colecionar papagaios, macacos e até leões ou leopardos, que eram exibidos como curiosidades, frequentemente acorrentadas.

Nem mesmo os bichos mais prezados, como os cães de caça ou os cavalos que participavam de desfiles, se dissociavam dessas utilidades. Os animais domésticos eram essencialmente coisas, e estavam muito longe do status atual de membros do núcleo familiar de que milhões de cachorros, gatos e outros animais gozam. Mesmo assim, por morarem em casas ou apartamentos com todo o conforto, eles ainda são vistos como mais uma excentricidade da sociedade.

Nas aldeias indígenas do Brasil, essa convivência era levada a extremos. Isso era surpreendente para os portugueses, porque os índios não domesticavam os animais para o trabalho ou o consumo, ao contrário dos europeus. O general Couto de Magalhães (1837-1898), uma referência na política indigenista no Império, chegou a escrever sobre o tema no livro “O Selvagem” (1876): “Quem visita uma aldeia selvagem visita quase que um museu vivo de zoologia da região onde está a aldeia: araras, papagaios de todos os tamanhos e cores, macacos de diversas espécies, porcos, quatis, mutuns, veados, avestruzes e até sucurijus, jibóias e jacarés. (...) O cherimbabo do índio (o animal que ele cria) é quase uma pessoa de sua família”.

Além de cultor do indianismo romântico, o general Magalhães argumentava que não era por incapacidade que os índios não exploravam economicamente os animais domésticos. De fato, criar xerimbabos era uma prática muito diferente da domesticação de animais que era feita no Velho Mundo, mesmo quando se tratava de animais de estimação. Os índios não criam animais, e mesmo que alguns grupos se dediquem à pecuária nos dias de hoje, o trabalho de selecionar, cuidar, acasalar e pastorear algumas espécies não se estendeu ao mundo dos bichos de estimação. Os xerimbabos são, normalmente, filhotes encontrados na floresta ou crias cujos pais foram abatidos durante as caçadas.

Nem todas as espécies fazem jus a esse mesmo tratamento. Para se apoderar das aves psitacídeas – como papagaios, araras e baitacas –, os índios, intencionalmente, tiram os filhotes dos ninhos e os criam em casa. Além de entreter a aldeia, essas aves fornecem suas plumas para enfeites. Existe até mesmo uma arte singular, a chamada “tapiragem”, por meio da qual dietas especiais provocam uma alteração na cor das penas. Os cães não gozam de um tratamento privilegiado, embora os índios apreciem suas habilidades para a caça próprias de um predador, coisa que não se pode dispensar na floresta. Visitantes chegam a questionar o amor dos nativos pelos xerimbabos quando notam em que condições esses animais são mantidos numa aldeia. Cunhou-se até a expressão “cachorro de índio”, que define um ser famélico, vítima de todo tipo de pragas. Mas os cães não são de todo desprezados, embora continuem sendo animais recém-chegados do mundo dos brancos.

Entretanto, a presença de xerimbabos depende de circunstâncias muito mais fortuitas: pode-se dizer que o seu status na aldeia oscila entre o de um hóspede e o de um cativo. Isso porque as sociedades indígenas são, na sua essência, sociedades de caçadores. Mesmo quando a caça não rende o suficiente para alimentar a tribo, ela encerra em si uma simbologia e uma maneira peculiar de ver o mundo. Para o caçador, o animal não é uma coisa, e sim alguém dotado de inteligência, astúcia e noção do ambiente que o cerca. Por isso tem sido difícil fazer com que os grupos indígenas adquiram destreza no trato do gado: como fazê-los entender que é necessário supervisionar a alimentação e o acasalamento de animais adultos?

Com os filhotes de animais selvagens, a relação é bem diferente. Acostumados ao convívio humano, eles em geral circulam soltos pela casa e pela aldeia, podem ser objeto de grande afeição e até mesmo amamentados pelas mulheres da tribo. À medida que crescem, uma questão ambígua vem à tona. Vários estudos ressaltam a semelhança entre a situação do xerimbabo e a do cativo dos antigos Tupinambá – que, por sua vez, mantinham seus prisioneiros junto a si, às vezes durante longos períodos, antes de sacrificá-los e comê-los. A guerra e a caça são consideradas ações muito parecidas, e sabe-se que um dos objetivos da batalha tradicional era a captura de crianças e mulheres de outras tribos, que eram integradas ao grupo e educadas nos seus costumes.

Os xerimbabos podem, no máximo, tornar-se uma espécie de parentes obtidos por captura, como também podem acabar sendo vendidos – como acontecia com escravos – ou simplesmente abatidos e comidos. Anos atrás, em uma visita a uma aldeia Yawanawa no Acre, fiquei sabendo que uma anta jovem visitava frequentemente um dos casarios; vagava pela aldeia, especialmente atraída pelos pés de jambo, embora ficasse longos períodos sem ser avistada. Havia planos fatais para o paquiderme: como ele já estava grande, logo seria abatido e devorado. Por isso, os xerimbabos ocupam uma posição intermediária entre caça e gado, servindo eventualmente como uma espécie de reserva alimentar para alguns grupos, sobretudo quando são caçados com frequência.

A paixão das sociedades urbanas de hoje em dia por seus pets coincide com um momento em que descobrimos que os animais têm uma inteligência e uma sensibilidade não tão distantes das humanas. Eles não são, definitivamente, aqueles seres quase mecânicos, movidos apenas por instintos cegos, dos quais os humanos deviam apenas se servir. Por conta disso, as sociedades indígenas não colocam o homem no centro do universo. Eles sempre entenderam os animais como humanos de um outro tipo, com os quais podem ser mantidas relações tão complexas quanto as que mantemos com os nossos semelhantes.

Texto de Oscar Calavia Saez

A OCUPAÇÃO DO PANTANAL


Localizada na Bacia do Alto Paraguai, a planície do Pantanal é a maior área úmida contínua do planeta. Foi neste lugar que há 10 ou 11 mil anos – logo após o término do último período glacial, conhecido como Pleistoceno, e o início do período atual, o Holoceno – grupos humanos resolveram se isntalar. Se considerarmos as áreas serranas que circundam a região, a presença humana é ainda mais antiga. Esses homens e mulheres são exemplos de como se vivia no território que veio a se chamar, milênios depois, Brasil.

A partir do holoceno, o clima pantaneiro passou a ser mais quente e úmido em comparação com o clima mais seco e frio que predominara anteriormente. Pouco a pouco foi aparecendo uma expressiva biodiversidade, com várias espécies de plantas e animais, a grande maioria proveniente de biomas vizinhos, como o Cerrado e a Amazônia. A região passou ainda a contar com uma sazonalidade marcante, caracterizada por episódios anais de cheia e seca, chamada de pulso de inundação.

Os primeiros humanos que ali chegaram eram populações indígenas ou ameríndias. Seus antepassados mais longínquos vieram da Ásia para o continente americano, atravessando o Estreito de Bering. Na época, o nível do mar era cerca de 60 metros mais baixo em relação ao atual. Havia uma ponte de terra e gelo ligando a Sibéria, na Ásia, ao Alasca, na América do Norte. Depois passaram pela América Central e atingiram o centro da América do Sul. Esse processo de migração levou um tempo correspondente a dezenas de gerações de ameríndios.

A essas antigas populações não é possível atribuir o nome de qualquer povo indígena conhecido historicamente, embora seja possível fazer certas distinções, como a de seus padrões tecnológicos. Os primeiros habitantes encontraram na região condições ecológicas favoráveis à sua reprodução biológica e sociocultural. Estabeleceram moradias em assentamentos localizados às margens de grandes rios, como o Paraguai. Davam preferência a locais de topografia elevada e protegida das enchentes anuais. Viviam em famílias extensas, em pequenas comunidades estruturadas em redes de parentesco formadas por pais, filhos, tios, avós e bisavós. Sua economia de subsistência dependia especialmente da pesca, da caça e da coleta. Daí o nome com que são conhecidos na arqueologia: pescadores-caçadores-coletores.

Para uma economia assim, as comunidades desenvolveram uma tecnologia voltada à produção de artefatos de madeira, osso, concha de molusco e pedra (rochas e minerais). Também possuíam conhecimentos apurados sobre os ecossistemas regionais, incluindo o comportamento dos animais, os locais de obtenção de matéria-prima para a produção de acultura material, as variações climáticas e as áreas onde coletavam plantas de valor alimentício e medicinal.

Entre 8,4 e 8,1 mil anos atrás, um grupo de pescadores-caçadores-coletores estava estabelecido à margem direita do rio Paraguai, precisamente na escarpa calcária sobre a qual foi fundada, na segunda metade do século XVIII, a cidade sul-mato-grossense de Ladário. As pesquisas arqueológicas realizadas no local comprovam que a pesca de pequenos peixes, a coleta de caramujos aquáticos e a caça de jacarés e capivaras compunham parte do total de proteína animal consumida por eles. Esta população se caracterizava pela fabricação e pelo uso de artefatos lascados e polidos feitos principalmente de quartzo e calcário.

Os três milênios seguintes – entre 8,1 e 5 mil anos atrás – ainda são puco conhecidos pelos arqueólogos. Essa lacuna, a grosso modo, corresponde a um fenômeno conhecido como “ótimo climático”, quando as temperaturas quentes e a umidade regional atingiram seu ponto máximo após o fim da última glaciação.

A partir de 5 ou 4,5 mil anos atrás houve a intensificação da ocupação indígena na região. Trata-se da presença de grupos que construíram muitas estruturas monticulares conhecidas na arqueologia como aterros, montículos, cerritos ou mounds. Paulatinamente, passaram a se organizar em comunidades maiores e mais complexas do ponto de vista socioeconômico e político, as tribos, contando com dezenas ou centenas de indivíduos. Nelas, a diferenciação social tendia a aumentar, bem como a concentração de poderes nas mãos de pessoas capazes de liderá-las.

Os aterros são verdadeiras obras de engenharia. Constituem elevações elípticas do terreno, totais ou parcialmente construídas pelos indígenas, em geral em forma subcircular. Em suas camadas arqueológicas aparecem restos de alimentação humana (conchas de caramujos, ossos de peixes, etc) e artefatos diversos (lâminas líticas de machado, pontas de flechas feitas de osso, fragmentos de vasilhas cerâmicas, etc.). em alguns casos foram encontrados esqueletos humanos nesses locais, cujos sepultamentos atestam uma diversidade em termos de práticas mortuárias. Nos campos de savana, os aterros apresentam-se como ilhas de vegetação. Sua construção requereu o uso de conhecimentos arquitetônicos complexos e a organização do trabalho social, além de fatores ideológicos, relações de poder e estratégias de territorialidade. Os últimos índios que construíram aterros no Pantanal foram os canoeiros guatós. Alguns de seus anciãos chegaram mesmo a morar em montículos desse tipo entre a primeira metade do século XX e a década de 1970.

Do limiar do milênio anterior ao início da Era Cristã teve início a formação de um rico mosaico sociocultural nesta porção central da América do Sul. Foi constituído por povos canoeiros pescadores-caçadores-coletores que lá estavam estabelecidos, além dos povos agricultores de origem amazônica que migraram para a região. Entre os primeiros ocupantes houve a incorporação, anterior a 3 mil anos atrás, de elementos cerâmicos relacionados a distintos estilos tecnológicos e a diferentes etnias. Seu padrão tecnológico ceramista está caracterizado pela fabricação de panelas, tigelas e moringas pequenas, feitas pela técnica da sobreposição de roletes de argila seguida da queima do vasilhame. Geralmente possuem capacidade volumétrica inferior a 4 litros. Eram utilizadas para produzir, armazenar e servir alimentos sólidos e líquidos por pequenas famílias pertencentes a uma comunidade maior, constituída por redes de relações sociais. Em alguns sítios foram encontrados cachimbos e rodelas de fuso e artefato usado para fiar fibras vegetais, o que denota o cultivo ou o uso de plantas domesticadas, como o algodão e o fumo, entre grupos indígenas.

Os povos oriundos da Amazônia, conhecidos no período colonial, seriam os antigos índios XARAY ou XARAYES e ITATINS. Eram agricultores que produziam grandes vasilhas cerâmicas, às vezes com capacidade volumétrica superior a 100 litros, tinham uma indústria lítica mais apurada, assentamentos em locais de solos férteis e uma complexidade social que sugere a existência de chefes ou caciques.

Associados aos antigos grupos que construíram ou ocuparam aterros, também há sítios com grande quantidade de grafismos rupestres (inscrições e pinturas). Neles se encontram figuras geométricas, como círculos concêntricos, figuras antropomorfas, a exemplo de pegadas humanas, e figuras zoomorfas de mamíferos e serpentes, além de pegadas de aves e felinos.

Na porção meridional da região, onde o Pantanal se funde e se confunde como Chaco (porção pantaneira do Paraguai), foi encontrada outra tradição tecnológica ceramista, que deve ter sido produzida a partir do segundo milênio da Era Cristã. Suas características tecnológicas lembram a cerâmica dos atuais índios KADIWEUS que vivem em Mato Grosso do Sul.

Em tempos coloniais, muitos povos indígenas se estabeleceram na região. Nas terras altas (serras, morros isolados, terraços fluviais, etc.), havia aldeias de povos linguisticamente aruák e guarani. Nas terras baixas (áreas inundáveis), era marcante a presença de povos canoeiros , como os GUATÓS, os GUASARAPOS e os PAYAGUAS, dentre outros. Nessa época, o Pantanal já era uma área de grande diversidade étnica e cultural, com dezenas de povos cultural e linguisticamente distintos, falantes de línguas vinculadas às famílias lingüísticas aruák, guaikuru, guató, jê e zamuco.

Com o advento da conquista ibérica, a partir do século XVI, vários povos sofreram abruptos processos de desterritorialização e depopulação promovidos por espanhóis, portugueses e seus aliados. Guerras e epidemais foram decisivas para isso. Mas muitos povos, como os atuais BORORO, GUATÓ, KADIWEU e TERENA, resistiram e conseguiram sobreviver. Eles representam tradições antiqüíssimas e modos de viver diversos dos praticados hoje em dia, tendo também contribuído para constituir o atual Brasil.


Texto de Jorge Eremites de Oliveira