sexta-feira, 12 de agosto de 2011

20 ANOS DE LUTA CONTRA BELO MONTE

De repente uma índia se levanta, começa a falar alto, em sua língua nativa, e interrompe o pronunciamento do diretor da Eletronorte. Toda a atenção dos presentes no ginásio se volta para ela. Dá alguns passos, ainda falando alto, e com um facão na mão direita se aproxima da mesa onde se encontravam lideranças indígenas, ambientalistas e representantes do governo. Estica o facão e pressiona-o, lateralmente, contra o rosto do homem branco que falava em nome do governo central de um país que queria inundar as terras onde moraram seus antepassados.

Continuava seu discurso, em um dialeto incompreensível para a maioria de nós, enquanto encostava o facão no outro lado do rosto de seu oponente. A impulsividade e a naturalidade de sua ação fez calar todo o ginásio. Ficamos todos paralisados, perplexos diante a mais ingênua e forte imagem que marcaria aquele encontro. Quando se afastou da mesa e abaixou o terçado, os presentes puderam finalmente raciocinar e entender o que havia se passado.

E a multidão que lotava o ginásio explodiu em êxtase, imitando o brado de guerra dos indígenas amazônicos. "Uh, uh, uh, uh, uh, uh, uh, uh, uh, uh". Do silêncio ao grito. Dois extremos que retratam os ânimos daqueles dias. Era fevereiro de 1989, em Altamira, Pará, à beira da Rodovia Transamazônica. A proposta de construção de barragens e hidrelétricas no rio Xingu começava a ser derrotada.

Os estudos para o aproveitamento hidrelétrico das águas dos rios Xingu e Iriri, começara em 1975, sob o regime militar, com a contratação da CNEC, uma empresa de consultoria ligada à empreiteira Camargo Corrêa. Quatro anos mais tarde chega-se à conclusão da viabilidade em se construir cinco hidrelétricas e uma barragem.

A primeira delas, cujo início das obras estava previsto para 1993, chamar-se-ia UHE Kararaô. Junto seria levantada a barragem de Juruá, cuja função seria represar o Xingu e desviar suas águas até a casa de força de Kararaô. A previsão era que 1.225 km2 de mata virgem fossem inundadas, somente com o lago da primeira usina, que afogaria cerca de 30% da área indígena Paquiçamba, onde morava a índia guerreira.

Como em todas as ações do governo brasileiro, naquele momento sob os fuzis da ditadura, os detalhes da obra eram desconhecidos pela população que seria atingida. "Até onde o rio vai subir? o que vai acontecer com a qualidade das águas e com os peixes? quantas pessoas vão ter que ser transferidas; para onde vão ser realocadas? como vão ser calculadas as indenizações e quando serão pagas?", perguntavam os moradores de Altamira.

Em 1986 é finalizado o Plano 2010 (Plano Nacional de Energia Elétrica 1987-2010) o qual previa a construção de 165 usinas hidrelétricas, sendo 40 na Amazônia Legal. Dois anos depois é divulgado e aprovado o relatório final dos Estudos de Inventário Hidrelétrico da Bacia Hidrográfica do Rio Xingu.

De posse dessas informações e aproveitando a conjuntura favorável, com o processo de enfrentamento e derrubada da ditadura militar, lideranças indígenas Kaiapó e ambientalistas denunciam na Universidade da Flórida, em Miami (EUA), que o Banco Mundial - BIRD financiaria o projeto, que deixaria sob as águas cerca de sete milhões de hectares de floresta. E também desalojaria 13 grupos indígenas, sem que estes tivessem sido consultados. A mesma denúncia é repetida em Washington.

Dois meses depois, em março/1988, como represália pelas declarações feitas nos Estados Unidos, a Justiça Federal enquadra os kaiapó Paulinho Paiakã e Kube-I, além do biólogo Darrel Posey, na Lei dos Estrangeiros. Por mais bizarro que possa parecer, a Polícia Federal abriu inquérito para processar, com ameaça de expulsão do país, dois índios e um pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi. Fruto das pressões nacionais e internacionais, a ação penal foi extinta em 16/02/1989.

A cada dia a luta contra as barragens ia ganhando forças. No final de agosto/1988 é realizado, em Belém, o 1º Ciclo de Debates sobre Hidrelétricas na Amazônia, organizado por ONGs ambientalistas; associações, sindicatos e federações de trabalhadores; órgãos públicos; organismos ligados à Igreja e aos Direitos Humanos, além de representações indígenas, estudantis e camponesas.

Ao final dos debates, é aprovada a Carta da Amazônia, que dentre outros pontos, exigia "do Estado o cumprimento das ações de assistência de educação, saúde, habitação, transporte, etc., nas áreas afetadas pelos grandes projetos". Também pedia a "prestação de contas à sociedade, pela Eletronorte, do dinheiro público aplicado nas suas obras", além de manifestar "apoio irrestrito a todas as lutas das comunidades ribeirinhas e indígenas ameaçadas pela construção de projetos hidrelétricos".

Em novembro, reunidos na aldeia Gorotire, lideranças Kaiapó decidem convidar o governo brasileiro para discutir com os índios o projeto das hidrelétricas. Estava lançada a proposta do encontro de Altamira.

Em Belém, estudantes, trabalhadores e ambientalistas começavam a organizar atos e caravanas para Altamira. Em apoio ao encontro indígena, são convocados, para o mesmo período e local, o I Encontro das Organizações Não Governamentais Conservacionistas e o I Encontro Regional dos Trabalhadores Atingidos pelo Projeto Hidrelétrico do Xingu. Enquanto isso, o evento ganhava repercussão internacional, principalmente após o assassinato do seringalista Chico Mendes, em dezembro/1988, no Acre.

Assim, há vinte anos, uma caravana de estudantes universitários saiu de Belém em direção ao Xingu, enfrentando, no período de chuvas da região, a lama da rodovia Transamazônica e as ameaças dos pecuaristas da União Democrática Ruralista - UDR, para participar e escrever a história. Estima-se que três mil pessoas, dentre as quais 650 integrantes de 39 nações indígenas de diversas partes do país e do exterior, tenham estado na cidade.

O clima era tenso. Nas noites que antecederam a abertura foram ouvidos disparos de revólveres nas proximidades dos locais onde ocorreria o encontro e onde ficariam alojadas as delegações de estudantes e sindicalistas. A imprensa divulgou que o governo federal tinha cogitado a proibição do evento, alegando "clima de violência em Altamira".

Entretanto, conforme programado, na manhã do dia 20 de fevereiro de 1989, na cidade de Altamira, Pará, estava aberto o I Encontro dos Povos Indígenas do Xingu. Chico Mendes foi lembrado na breve e emocionada fala inicial de Paiakã, recebendo demorados aplausos dos presentes no ginásio do Centro Comunitário da Prefeitura de Altamira. Os não-índios lotavam as arquibancadas e os índios ocupavam a quadra, sentados sobre folhas de açaizeiro, especialmente colocadas no local.

As atividades paralelas ocorreram à tarde e à noite. O primeiro dia encerrava com aparente tranqüilidade, quebrada somente com a denúncia de que, na madrugada, religiosos ligados à Prelazia do Xingu teriam sofrido ameaças de morte. Passamos a ter maior preocupação com a segurança. A orientação era evitar sair à noite e andar sempre em grupos, a qualquer hora do dia.

Com faixas e outdoors dizendo "Kararaô sim, estrangeiros não"; "Somos pela ecologia, com progresso e energia"; "A ecologia não pode impedir o progresso de nossa cidade" ou "Estrangeiro, o Brasil é nosso", o Movimento Pró-Kararaô - MOPROK, que reunia UDR, Associação Comercial de Altamira, Lions e Rotary Club, conseguia polarizar parte da população.

No segundo dia estava programada a exposição das propostas do governo Sarney. Estavam presentes o presidente do Instituto Nacional do Meio Ambiente e o diretor da Eletronorte, José Muniz Lopes, coordenador dos estudos para a implantação das hidrelétricas. Após ouvirem muitas vaias, quando foram apresentados, tentaram passar a imagem de um governo comprometido "com a preservação da Amazônia e com a situação do índio". Mas parece que não foram muito felizes: "Se o chefe branco, que se chama Sarney, continuar com plano de barragem, vou fazer guerra contra ele", avisou o cacique Raoni.

Como no primeiro dia, a entrada dos índios no ginásio foi saudada de forma calorosa e ruidosa. Tomaram seu lugar no centro da quadra, sentados sobre as folhas de açaizeiros. Como as pequenas arquibancadas estavam lotadas, muita gente ocupou parte do espaço destinado aos índios. Também havia muitos jornalistas, fotógrafos, cinegrafistas. A imprensa nacional e internacional estava em peso, cobrindo o evento.

Os estudantes foram chamados para ajudar na organização. Formamos um cordão de isolamento e garantimos um amplo círculo onde se acomodaram os indígenas. Alguns guerreiros ficaram em pé, fazendo um cerco em volta do grupo, empunhando lanças e flechas. Uma atmosfera de cumplicidade e respeito passou a existir entre índios e universitários. Em certo momento, quando um fotógrafo começou a levar o tripé de sua câmera para dentro da linha imaginária que estabelecia o limite dos espaços, um dos guerreiros olhou para nós e para o fotógrafo. Percebemos que eles nos tinham como co-responsáveis pela manutenção da ordem no local e tratamos de assumir nossa responsabilidade.

A presença dos representantes do governo e o nome proposto para uma das usinas produzia um sentimento de revolta. "Vocês acham o quê? Como vêem a gente? Não sei o que significa energia. Fui criado pela minha mãe, com caça, pesca, mel de abelha e palmito. Não admito construção de barragem nenhuma", protestou o índio Porekro, com sua borduna em punho. A bronca, traduzida por Paiakã, foi feita quando o diretor da Eletronorte pronunciou a palavra "Kararaô".

Após retomar a fala, José Muniz seria interrompido mais uma vez. A índia Tuíra, de 23 anos, mãe da pequena Iredjô, levantou-se e foi em direção à mesa. Sua foto, segurando e pressionando um facão contra o rosto do diretor da Eletronorte, rodou o mundo e se transformou na principal imagem daquele encontro.

Após longos minutos de tumulto, com os índios em pé, cantando e dançando, com lanças e bordunas levantadas e com a multidão gritando nas arquibancadas, os caciques explicaram que aquela era uma reação natural ao pronunciamento da palavra "Kararaô", que na sua língua significa grito de guerra. Muniz informou que já havia recebido autorização para trocar a denominação. Hoje é chamada UHE Belo Monte, nome de uma vila próxima ao local onde seria construída a usina.

Nos dias que se seguiram outro fato foi marcante. O MOPROK, tendo a UDR à frente, para tentar mostrar que a população de Altamira estava a favor das hidrelétricas, organizou uma carreata e um comício. Foi uma demonstração de força: dezenas de automóveis, picapes, tratores e caminhões, passearam pelas principais ruas da cidade e se concentram em uma praça, cercada de faixas a favor do "progresso e da energia".

Para o outro dia estava programada uma passeata, que contaria com a adesão dos moradores do bairro de Brasília, um dos mais pobres, localizado na parte da área urbana que mais seria afetada pela inundação causada pela construção das barragens. Entretanto, argumentando o impacto causado pela carreata da UDR, dirigentes do PCdoB e do PV tentaram convencer os organizadores a cancelar a passeata. Diziam que a mobilização seria um fracasso, que seria comparada com a atividade realizada pelo MOPROK, que teria um retorno negativo.

Toda a tarde e a noite daquele dia foram utilizadas para inúmeras reuniões e tentativas de convencimento. Consultamos a direção do PT e da CPT locais. Ambos nos diziam que era possível manter a passeata (ou "caminhada", como preferiam chamar). De fato, a organização do ato nos parecia frágil demais, mas estávamos dispostos a ajudar e fortalecê-la. Antes de ser tomada uma decisão final, fomos surpreendidos pela divulgação de que a passeata havia sido suspensa, feita por alguns ecologistas e dirigentes partidários.

Aquela atitude traiçoeira nos jogou em definitivo para manter o apoio à "caminhada". No final da noite foi batido o martelo: vai haver ato público. Pela manhã, nova surpresa: as rádios passaram a divulgar que a passeata havia sido cancelada. Mais indignação e bate-boca. Um operativo de emergência foi montado. De porta em porta, até onde nossas pernas suportaram, com megafone ou a plena voz, a população foi avisada que a "caminhada" estava mantida.

E ocorreu: centenas de moradores atenderam o chamado e saíram às ruas de Altamira. Um pequeno carro, com uma "boca de ferro" em cima, anunciava, pelas ruas de piçarra do bairro de Brasília que o povo estava contra a construção das usinas. E iria resistir, junto com os índios, estudantes, ambientalistas, religiosos, partidos de esquerda e todos que se somassem. "Nunca a pacata Altamira viu coisa igual", escreveu uma revista de circulação nacional, abaixo de uma fotografia onde se via uma multidão carregando faixas e cartazes.

No final do encontro Ailton Krenak, liderança indígena da região do Vale do Rio Doce / ES, leu a Declaração Indígena de Altamira, que iniciava dizendo: "As nações indígenas do Xingu, junto com parentes de muitas regiões do Brasil e do mundo, afirmam que é preciso respeitar a nossa Mãe Natureza. Aconselhamos não destruírem as florestas, os rios, que são nossos irmãos. Decidimos que não queremos a construção das barragens no rio Xingu e em outros rios da Amazônia, pois ameaçam as nações indígenas e os ribeirinhos". E finalizava lembrando os quinhentos anos de exploração do "branco civilizado", que não se contentara em colonizar a Amazônia: "Suas pretensões vão muito além. O ouro, a cassiterita, a bauxita, os grandes projetos mineradores e hidrelétricos são suas bandeiras para a ordem e o progresso. Nessa jornada civilizadora não hesitam em massacrar e aculturar as tribos indígenas existentes, os reais donos das terras".

No mesmo dia foi divulgada a Campanha Nacional em Defesa dos Povos e da Floresta Amazônica, fruto dos debates realizados pelos dois encontros paralelos, das ONGs conservacionistas e dos trabalhadores e movimentos sociais. Em sua carta de lançamento denunciava a "progressiva destruição da cultura e dos povos indígenas" e a "intensificação da destruição da floresta amazônica (...) patrocinada pelo governo federal, através de incentivos fiscais da SUDAM e de vultosos empréstimos no exterior, que beneficiam unicamente poderosos grupos econômicos".

E propunha, dentre outras ações, "lutar pela suspensão imediata dos projetos hidrelétricos para o Xingu e provocar a revisão do Plano 2010 e do modelo institucional de implementação e gestão da política energética nacional". Exigia do Estado "o enquadramento penal e a punição aos crimes contra pessoas e meio ambiente" e apoiava "as lutas dos povos indígenas pela imediata demarcação de suas terras". Manifestava "apoio às lutas dos trabalhadores rurais contra a violência do latifúndio" e repudiava "o projeto Calha Norte como de inspiração geopolítica imperialista, discriminatória e danosa às populações do norte da Amazônia"

A campanha previa atividades para "esclarecer que a sabedoria do país não está ameaçada pelas nações vizinha e muito menos pelas tribos indígenas da faixa de fronteira. A grande ameaça à soberania nacional reside na penetração do capital imperialista, através das multinacionais e grupos monopolistas nacionais que agem com uma política de saque aos recursos naturais e total desprezo pelos habitantes da região e meio ambiente".

Já se passaram 20 anos. Sarney não é mais presidente da República, mas do Senado. E a palavra de ordem "Fora Sarney" voltou às ruas. Lula e o PT, antes nossos aliados contra as hidrelétricas no Xingu, hoje são seus principais defensores. Stalinistas e pseudo-ecologistas seguem com seus discursos oportunistas.

Texto de Maurício S. Matos

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

SE DEUS FOSSE JAGUAR

A cosmologia guarani contemporânea caracteriza-se por uma disjunção de figuras estreitamente articuladas em outros sistemas tupi-guarani: sangue e tabaco, guerreiro e xamã passam a opor-se diametralmente. Aqui chegamos ao que chamei de “desjaguarificação”: uma negação do canibalismo como condição geral do cosmos e mecanismo de reprodução social.

Essa disjunção atravessa vários domínios do pensamento guarani, a começar pela concepção da pessoa, onde encontramos uma dicotomia entre dois princípios anímicos que, simplificando, podem ser caracterizados como uma alma “divina” e outra, “animal”. A primeira é normalmente chamada de Ayvu ou Ñe’e e traduzida por alma-palavra. Sua origem é divina e cabe ao xamã determinar sua fonte durante a cerimônia de nominação. Por meio do canto, ele indaga das várias divindades a procedência da alma e o seu nome.

A essa alma pré-constituída celeste vem se agregar outra, denominada normalmente acygua, vocábulo que, segundo Nimuendaju, é um particípio de acy, cujo significado é “dor” e “vivaz, violento, vigoroso”; o acyguá é, portanto, ao mesmo tempo, o que dói e o que tem vigor. Há certa ambigüidade na literatura quanto à caracterização dessa alma: por vezes, ela aparece como uma alma-animal, regressiva, que responde pelas pulsões sexuais, o impulso violento e o desejo de comer carne; outras, como uma alma de um animal cujas qualidades determinam o caráter da pessoa, de tal modo que um acyguá de borboleta não oferece o mesmo perigo que o de um jaguar. No entanto, este último parece corresponder ao tipo-ideal que domina a simbologia do acyguá, e é o destino de todo ser humano que não se pauta pelas condutas religiosas e generosas.

A dicotomia de princípios anímicos expressa-se em duas figuras extremas da pessoa masculina guarani: de um lado, a daqueles que se deixam dominar pela alma animal e pelo desejo de comer carne crua, cuja sina é transformar-se em jaguar; de outro, a do asceta que busca em vida o estado de maturação-perfeição (aguyje), cujo destino é tornar-se imortal. Como mostra H. Clastres, essa dicotomia possui uma correspondência ética e alimentar: o primeiro é o caçador egoísta que come os animais abatidos na floresta para não ter de dividi-los; o segundo é o caçador generoso que dá toda a caça para os parentes, pois se abstém de carne. O vegetarianismo é uma condição essencial — junto com a dança e os cantos regados a cauim — para se juntar aos deuses: “devido a essa forma de vida”, contaram os Apapocuva a Nimuendaju, “seus corpos [dos grandes xamãs] se fizeram leves: o acyguá [...] era subjugado, enquanto o ayvucué tomava o caminho de onde viera: durante as danças de pajelança, suas almas abandonavam a terra e retornavam a Ñandecy [Nossa Mãe], Ñanderyqueý [Nosso Irmão mais Velho] ou Tupã. Por vezes, encontrava-se seu corpo morto, por vezes, eles ascendiam em seu corpo vivo”.

A mansidão, a generosidade, a ética alimentar antivenatória, os cantos que provêm das divindades, a participação nos rituais, tudo isso deve orientar a conduta do Guarani para que sua alma-palavra se imponha sobre sua alma-animal. Na morte, enfim, ocorre a disjunção definitiva entre esses dois componentes da pessoa. A alma-palavra (ayvu-kwe) volta para o céu após vencer alguns obstáculos, enquanto o acyguá torna-se um temível espectro, o anguéry. Essa dualidade póstuma encontra paralelo em vários grupos tupi-guarani da Amazônia, mas possui aqui uma permutação importante; a saber, o apagamento da função-canibal associada à morte e ao xamanismo.

Tomemos para fins comparativos o caso araweté em que temos também uma cosmologia verticalizada e uma ênfase na relação xamânica com as divindades. Os Araweté postulam a existência de uma só alma chamada ï, que designa tanto o princípio vital como a sombra projetada pelo corpo. Na morte, ela se divide em dois componentes: uma projeção póstuma da sombra (o espectro, ta’o we) e um espírito (também chamado ï) que vai para o céu. Esse espírito é, então, devorado e imortalizado pelos deuses, que são ditos “comedores de cru”, isto é, jaguares. O xamanismo araweté faz justamente a mediação entre os humanos e esses deuses-jaguares. Figura semelhante encontra-se entre os Asurini do Tocantins, no entanto, com um deslocamento interessante. Eles postulam uma única alma em vida chamada iunga, que é depositada pela divindade Mahira nas mulheres. Com a morte, ela se separa em um aspecto celeste e outro terrestre. O primeiro junta-se a Mahira em Tupana, o segundo torna-se um espectro chamado asonga, cognato do anhanga tupinambá, espírito canibal associado aos mortos. O espírito que vai para Tupana deixa de ter significação para os vivos, enquanto o asonga fica na Terra e torna-se um auxiliar dos sonhadores, tendo papel relevante no encontro dos pajés com o jaguar celeste, fonte última do poder xamânico.

Em ambos os casos, apesar das permutações, a função-jaguar está associada positivamente ao xamanismo. E é assim na maioria dos grupos da Amazônia, onde os xamãs mais poderosos são aqueles que têm, como espíritos familiares, temíveis predadores. No caso dos Guarani contemporâneos, contudo, rompeu-se essa articulação: o xamã é um anticanibal e os espíritos que lhe fornecem os cantos são as almas-divinas que habitam o “país dos mortos”, ou são elas mesmas divindades sem características predatórias. Quando o antropólogo Miguel Alberto Bartolomé foi iniciado por seu informante, o pajé chiripá Avá Ñembiara, este lhe disse para pensar no animal que acabara de matar, sem lhe dizer se isso era bom ou ruim. Em seguida, falou-lhe da dieta vegetariana que deveria seguir e instou-o a deixar-se reger apenas pelo amor. O canibalismo como modelo de relação com outrem parece ter sido substituído por outra forma relacional, cuja categoria central é o amor (mborayhu).

A disjunção entre xamanismo e predação, bem como a associação exclusiva do primeiro a uma alma divina imorredoura abriram caminho para uma transformação na noção de pessoas guarani e o surgimento do conceito de acyguá, essa alma-dor, animal e vigorosa, que representa o outro dos deuses e do desejo humano de imortalidade. O acyguá é, pois, o que nos prende a essa existência de infortúnios (teko achy) e nos impede de atingir a terra sem mal (ywy marã’ey). Alteridade constitutiva, a alma-animal deve ser negada e limitada por uma dieta antivenatória, uma estética (veja-se a produtividade dos conceitos de belo e adornado). A pessoa ideal não é aqui a do guerreiro, que ao matar sua vítima captura uma alma-outra que é fonte de conhecimento e criatividade, mas a do xamã que se desfaz de sua alteridade para voltar a ser divino, à imagem de um deus que não é um jaguar.


Baseado em texto de Carlos Fausto