sábado, 22 de dezembro de 2012

WIRA'I, "gavião pequeno" - mito tenetehara


Um rapaz, de nome Wira'i, esgava passarinhando perto de casa. De repente, seguiu uma coruja que o desviou de seu caminho conhecido. Ele se perdeu. A coruja Bacurau, então, o engoliu com sua boca muito grande, e o levou para o outro lado de um rio enomrme que era por ele desconhecido.
 
O rapaz se encontrou sozinho e procurou achar um meio para atravessar o rio, mas em vão. Estava anoitecendo e o rapaz subiu num pau e começou a pensar no que fazer. De repente ouviu o canto de um pássaro: era uma coruja.

Pensou: “Se essa coruja fosse gente, ela poderia me levar do outro lado do rio”.

A coruja perguntou o que ele havia dito e respondeu-lhe que era muito pesado e não conseguiria. Outros pássaros vieram durante a noite, mas todos eles responderam a mesma coisa.

Pela manhã, ouviu o canto do pica-pau e outra vez pensou: “se o pica-pau fosse gente me carregaria para o outro lado do rio”.

O pica-pau se aproximou e lhe perguntou o que ele havia dito. Este falou, mas ouviu a mesma resposta de sempre. Mais tarde ouviu o canto do paturi. O paturi, desta vez, tentou levantar vôo com o rapaz, mas não conseguiu. Então disse que ele conhecia alguém que conseguiria atravessá-lo. No entanto, o rapaz deveria procurar não responder às perguntas que esse bicho ia lhe fazer, do contrário o bicho o comeria.

Pouco depois, o paturi voltou com um jacaré enorme, o qual carregava uma imbaúba nas costas, e se ofereceu para levá-lo. O rapaz saltou e se segurou no pé de imbaúba. De vez em quanto o jacaré perguntava alguma coisa para o rapaz, mas este não lhe respondia.

Ao chegar na outra margem, o jacaré disse que ele podia saltar para a terra, mas o rapaz pediu que ele o levasse mais perto da beira. Assim ele fez, e o rapaz aproveitou o momento melhor e pulou longe do rio, correndo, em seguida, para não ser alcançado pelo jacaré.

Logo adiante encontrou um socó, que o engoliu. Chegou o jacaré e perguntou-lhe se havia visto um rapaz fugindo. Esse disse que não e então o jacaré o acusou de tê-lo engolido. O socó disse que não e como prova disso, regurgitou alguns peixes que havia engolido vivos. Conformado, o jacaré voltou. O socó, então regurgitou o rapaz e disse-lhe que, se quisesse chegar à casa do pai, teria que sempre seguir o caminho.

À noite ele procura um abrigo debaixo de uma grande pedra. Pela manhã descobriu que não se tratava de pedra mas de um grande sapo cururu e foge. Para se alimentar comia toda fruta do mato: sapucaia, inajá e outras.

Mais adiante ele ouviu algo como alguém que estava pisando num pilão: era uma cutia que estava batendo o pé na porta de uma laje de pedra. Já era de tardezinha, e falou para a cutia lhe dar um fogo. Ela disse que não podia, porque quem mandava ali era uma grande jibóia, que morava junto com a cutia. Esta ficaria brava e iria comê-lo.

Ele entrou no buraco da cobra para pegar um tição e fazer fogo, para se esquentar de noite. A jibóia (moizuhu) tampou a porta, colocando-se à sua frente. O rapaz tentou sair, mas não podia. A cobra ameaçou engoli-lo. Naquele instante, Wira’i ouviu o canto do gavião: coan, coan, aí ele disse para a cobra que o gavião iria matá-la. Assim, a cobra saiu da porta e ele fugiu.

Adiante enxergou uma casa onde havia uma mulher sozinha. Esta lhe perguntou: o que você faz por aqui?

Estou há muito tempo procurando por meus pais, e não sei onde eles estão. A mulher, que era uma coelha (morotói), disse que ele deveria ficar com ela e trabalhar para ela. O rapaz aceitou. Mais tarde chegaram os caititus, que lhe ofereceram batata, inhame, macaxeira, milho assado, especialmente para engordar o rapaz que estava muito magro por causa da fome, e convidaram a coelha para ir com eles, pela manhã, até à roça.

Na manhã seguinte, às cinco horas, chamaram a coelha, mas ela não quis ir, porque estava com sono. Os dias se seguiram até que os caititus convidaram o rapaz a ir com eles até à roça: “rapaz, o que você faz com essa mulher aí? Ela vai te matar de fome! Nós vamos te indicar o caminho que leva até à casa de teu pai”.

Pela manhã, chamaram-no e ele se levantou depressa e os acompanhou. Estes foram até à roça, que era do pai do rapaz, e lhe indicaram o caminho para chegar até a casa dele.

Este, chegando, entrou no quarto e começou a mexer nas coisas. A mãe ouviu o barulho e foi até lá. Ela viu, reconheceu o filho e queria abraçá-lo. Mas ele disse que não podia. Em seguida chegou seu pai, que também reconheceu o filho, se aproximou dele e o abraçou. O filho entrou no corpo do pai, que ficou com duas cabeças conversando entre si.

O filho convidou o pai para ir embora daquele lugar. Aí, ele cantou três noites e dois dias e foram embora com as casas. Viraram passarinhos andando em bando como a andorinha, o recongo, o xexéu e foram embora para longe.

 
Há uma relação estreita entre o simbolismo mítico e o simbolismo ritual. Enquanto um se manifesta numa linguagem literária/oral o outro se manifesta numa linguagem plástica – através dos adornos, musicas, dança e gestos. Os dois, porém, se complementam: o mito dá suporte ao ritual e o ritual, cada vez que é celebrado, renova o mito.
 
Lévi-Strauss assim relaciona os mitos com os rituais: Os mitos e os ritos podem ser tratados como modos de comunicação: deuses com os homens (mitos), ou homens com os deuses (ritos) com esta diferença, contudo, que os interlocutores divinos não são parceiros como os outros, no seio de um mesmo sistema de comunicação.
 
O mito de Wira‘i, “gavião pequeno”, do povo Tenetehara permite estabelecer essa relação entre mito e rito e confrontar seu simbolismo. Entre o mundo dos homens – a aldeia – e o dos animais - a floresta - estabelecem-se relações de interdependência. Lévéque afirma que “nas sociedades arcaicas vivas, os grandes poderes animais é que dominam a floresta”. Estas relações se manifestam através de um simbolismo presente, especialmente, nos mitos. Estes, de fato, tornam vivas, continuamente, atitudes indispensáveis à sobrevivência desses dois mundos.
 
Se o homem depende da caça e da coleta para sua sobrevivência, necessariamente precisa estabelecer uma ligação entre seu mundo e o mundo da floresta, entre o mundo humano e o dos espíritos dos animais e das plantas. Sua vida social, estabelecida através de rituais, também está intimamente ligada aos espíritos da floresta, seu meio natural, com os quais convive diariamente.
 
O simbólico é uma tentativa de “interpretar/transformar o real em que vive e do qual faz inelutavelmente parte...” (SANTOS & LUCAS, 1982). Assim, as imagens, os símbolos e os mitos revelam aspectos da realidade (ELIADE, 1982). Lévi-Strauss afirma que “como a linguagem, o social é uma realidade autônoma; os símbolos são mais reais do que aquilo que simbolizam, o significante precede e determina o significado” e continua: “a condição do pensamento simbólico é que o significante disponível e o significado referenciado permaneçam entre si numa relação de complementaridade”.
 
Mas qual é a relação entre mito, símbolo e sociedade? Os mitos geram determinadas práticas simbólicas e estas se traduzem em relações sociais. (GODELIER, 1985) Nesse sentido, há uma relação estreita entre estes campos, os quais se complementam, sendo que o mito vem confirmar uma prática social anterior, mas, ao mesmo tempo, a determina em sua relação com o cotidiano. Portanto, o símbolo, como produto cultural, de um determinado grupo ou sociedade, funciona como unidade de comunicação, “pois o símbolo ‘evolui’, modifica-se, apresenta-se sempre como uma espécie de linguagem nova para o seu manipulador (...). Quer dizer, desencadeia sempre emoções novas” (LIMA, 1983).
 
O simbolismo presente nos mitos tenetehara deve ser considerado um produto cultural, estabelecendo-se uma relação paradigmática entre os significados que são transmitidos para a sociedade e a práxis dessa sociedade que dá corpo aos mitos. Nesse sentido, eles operam, também, como um sistema pedagógico para essa cultura. Ao falarmos de alianças simbólicas com o mundo animal, não podemos esquecer que estas manifestam uma práxis de vida da comunidade.
 
Existe uma versão deste mito transcrita por Wagley & Galvão chamada “Aventuras de Wiraí”, recolhida na década de 1940 entre os Tenetehara/Guajajara, e outra de Nimuendaju, “O menino e o bacurau” recolhida entre os Tenetehara/Tembé em 1915. Essas duas versões, salvo algumas variantes, são praticamente iguais às contadas em 1999. E estão relacionadas a um mito shipaia: “Aventuras de um índio”, recolhido por Nimuendaju e um mito kayapó: “Aventuras de Sakawãpö”, recolhido por Métraux (1992).
 
Lévi-Strauss analisa o final do mito transmitido por Wagley & Galvão como uma relação de união e separação: “o herói perdido e achado se torna, assim, animal”. Segundo Lévi-Strauss, nos mitos por ele analisados, a oposição que se estabelece é entre os sexos: no caso a heroína encontra o pai, e o herói a mãe. Mas, no nosso caso, podemos ver que nosso informante vai na casa da mãe, mas não permite que esta se aproxime dele, enquanto aceita receber os abraços do pai, ao qual se une definitivamente.
 
Ao falar sobre o tema do personagem com duas cabeças, Carvalho diz que este tema está ligado aos mitos tipo “Viagem ao céu”:

Estamos pensando no tema dos personagens com duas cabeças, e isto porque, por um mito taulipáng, sabemos que uma delas é uma ”cabeça rolante”. O tema está ligado aos mitos tipo “Viagem ao céu”, em que um sogro ou uma sogra colocam à prova um jovem marido.
A explicação da ausência deste tipo de mito no Uapés é óbvia: ele só ocorre em sociedades matrilocais.
 
E a sociedade Tenetehara é matrilocal e, portanto, cabe a reflexão de Carvalho. Quanto às diferentes versões sobre o tema "Viagem ao Céu", a autora diz qaue resulta num "modelo mítico intimamente libado a técnicas xamânicas" (iniciação de xamãs e curas).
 
O narrador dessa versão do mito diz que, no momento em que o rapaz se encontra com o pai, ele vira pajé, se encanta e entra no corpo deste. De fato, após este episódio, ele convida os familiares a abandonarem esse lugar. Para isto ele canta e dança durante três noites e dois dias, até voarem como passarinhos. Isto é, o grupo realiza sua “viajem ao céu”.
 
Como se vê, o tema xamânico encerra essa narração. Isto nos leva a uma reflexão importante sobre o mito. Como dissemos no início da análise, há uma ligação importantíssima entre mito, rito e símbolo. Nesse caso, entre essa narrativa e o ritual de iniciação masculina no qual o rapaz é iniciado como guerreiro, cantor e pajé. O mito em questão, portanto, pode ser definido como mito de passagem. Afinal, o pequeno gavião – Wira’i – apresentado como o herói do mito, participa e constrói sua formação através das provações. Provações estas que duram alguns dias: o tempo de formação do neófito Tenetehara.
 
Turner, citando Van Geenep, explicita os ritos de passagem como uma sucessão de três fases distintas: a primeira (separação) significa afastamento do indivíduo do convívio social; a segunda (liminaridade ou trânsito) é ambígua sendo que não tem características nem passadas nem futuras, é, afinal, um período de provação e formação; a terceira (reagregação) é a consumação da passagem a partir da qual ele passa a ter direitos e obrigações.
 
No primeiro momento do mito, acontece o afastamento: o bacurau o introduz num lugar desconhecido no qual ele está sozinho. Lá, não conhece ninguém igual a ele. Ninguém pode ajudá-lo. É, portanto, privado de suas relações com o passado: com os familiares. Ele perde-se da mãe no caminho para a roça e é levado pela coruja bacurau para a outra margem de um rio intransponível, de onde ele jamais sairia sem a ajuda de alguém.
 
É interessante notar que, como bem define Lévi-Strauss em “A oleira ciumenta”, a coruja bacurau faz parte dos pássaros símbolos da morte, na América do Sul, que o autor chama de “engole-vento”. Os temas míticos principais desses são avidez, ciúme e explosão. Se a coruja está associada à morte, aqui representa a separação, o afastamento, isto é, também a morte simbólica do neófito para poder renascer como adulto. E é este o ponto principal dos ritos de passagem: sem a morte não haveria ressurreição.
 
A primeira atitude é a de encontrar os meios para poder sair da obscuridade: poder atravessar o grande rio. Pede ajuda aos pássaros. Isto é, apela em primeiro lugar para os habitantes do céu. Não poderia ser diferente, visto ser seu nome, também, o de um pequeno habitante dessa esfera. Alguns deles colocam-se à disposição mas não conseguem o intento, e assim o jovem permanece até o dia seguinte do outro lado do rio. O único que consegue fazer a travessia é o jacaré. Há aqui um outro simbolismo importante: a água. Esta associada com os mortos, indicando que o rapaz atravessou a barreira da morte.
 
A partir desse momento inicia-se o período do trânsito, isto é da liminaridade durante o qual Wira’i é posto à prova. Nessas provas ele se defronta com a natureza e aprende, com ela, a superar as dificuldades. A primeira é com o jacaré. O jovem consegue ser esperto e engana a fera que queria devorá-lo. Depois é ajudado pelo socó, que lhe indica o caminho para a casa do pai. Também este, como a coruja bacurau, o engole. No entanto, o socó representa não a morte, mas a vida.
 
Mais adiante o sapo cururu lhe dá abrigo durante a noite, embora Wira’i achasse tratar-se de uma pedra. O sapo, nesse caso, representaria o abrigo seguro, uma vez que são raros os animais que se atrevem a enfrentá-lo.
 
No outro dia encontra-se com a cutia e a grande cobra, a jibóia, que quer engoli-lo. Este foge novamente, depois de roubar um tição de fogo ajudado pelo canto do gavião. A força da cobra é vencida pela astúcia do “gaviãozinho” e pela força representada pelo gavião: o caçador temido pelas cobras.
 
Encontra-se com a coelha com a qual passa a conviver. Em se tratando de um noviço, ou iniciado no “ofício” de xamã, Wira’i não poderia coabitar com mulheres. A coelha aparece como um obstáculo, ao persistir em conter o jovem na sua “toca”. Se ele tivesse optado por permanecer na toca, não teria completado o processo de iniciação. Poderia, inclusive, ter sido “aliciado” e ficaria definitivamente na esfera natural.
 
Os caititus o libertam conduzindo-o até o roçado (do pai). Pela primeira vez, depois de muito vagar, Wira’i restabelece seus contatos com a cultura. O próximo passo é a aldeia, sua casa.
 
São os caititus que estabelecem a ponte que introduz o neófito à terceira parte, isto é, à reagregação. Um dado interessante a ser analisado é a alimentação do neófito. Durante o período de “trânsito”, ele se alimenta de “frutas do mato” (sapucaia, inajá e outras), e se abstém de carnes, pois o neófito, conforme mencionamos anteriormente, vive uma fase de transição, de ambigüidade. Por isso, seu corpo acha-se vulnerável aos poderes sobrenaturais que emanam da fauna. Afinal, ele está na esfera da natureza e deve aprender a se relacionar com esta, porque desse aprendizado depende a própria sobrevivência e a da sociedade. No momento em que ele está terminando esse período e entrando no do retorno à sociedade, só se alimenta de “produtos culturais”, isto é, não mais de frutos silvestres, mas cultivados.
 
É neste sentido, que os caititus fazem a ponte entre os dois estados do neófito. Estes se alimentam de “frutos do mato” mas, também, de produtos que são propositalmente deixados na roça para este fim. Assim, o jovem consegue encontrar o caminho de volta para casa, a re-inserção na sociedade de onde ficou afastado o período necessário para seu retorno, com suas obrigações.
 
Um outro aspecto, também interessante, é o fato de Wira’i ter mantido contato com a fauna ornitológica dos diferentes habitats: coruja, pica-pau, paturi, socó. Todos compreenderam sua situação, mas apenas o paturi e o socó – duas espécies de aves aquáticas – o ajudaram. Depois foi a vez do réptil crocodiliano – o jacaré –, que involuntariamente o ajudou, porém, poderia tê-lo devorado, se o paturi não o tivesse orientado. Mais uma vez ele foi ameaçado por um réptil, a jibóia, mas, recuperando sua identidade, a ameaçou mencionando o nome da acauã, predador de cobras. Seu ponto final é um batráquio, o sapo cururu. O espírito desse animal é um dos mais perigosos, porém, em caso de necessidade, ele pode ajudar, pois é também um dos mais poderosos.
 
Wira’i, enquanto iniciante ao xamanismo, completou um ciclo. Ao regressar, repele a figura da mulher representada por sua mãe. Não poderia ser de outra maneira, pois ele não é apenas um homem, é também símbolo capaz de manipular veículos de comunicação com os espíritos, como por exemplo, o maracá.
 
Estreitando seus laços com o pai, os dois voam juntos. Nesse vôo eles conduzem toda a família, pois o status de pajé é individual, mas afeta toda a família dele. Voar, levar embora, pode significar mudar de status.
 
Para terminar, nossa análise merece mais uma reflexão a partir do ritual de iniciação masculina. Neste, o neófito é preparado para ser guerreiro/caçador, cantor e pajé, todas estas tarefas exclusivamente masculinas na sociedade Tenetehara. Os enfeites usados para adornar o corpo do rapaz são de penas pequenas de arara para o cocar e penugem de gavião real para enfeitar a cabeça; braçadeira e tornozeleiras são feitas com casca de tucumã e/ou catolé; a pintura corporal é realizada com suco de jenipapo e com urucu, o primeiro de cor preto-azulado significaria o desprendimento, enquanto a cor vermelho do urucu está relacionada ao guerreiro.
 
O momento importante do ritual é quando estes neófitos tomam, um de cada vez, o maracá e entoam uma cantiga relacionada aos animais da floresta. Nestas cantigas, que puderam aprender durante o período de formação, eles evocam as proezas e as qualidades de cada animal. Cantar, portanto, significa manifestar seu relacionamento com a natureza e, ao mesmo tempo, saber compreendê-la. É esta, aliás, tarefa do caçador, que deve servir-se da natureza para providenciar a alimentação, ao mesmo tempo em que deve respeitá-la; e tarefa do pajé, o qual precisa dominar os espíritos da natureza em prol da sociedade a que pertence.
 
Na mitologia Tenetehara, a figura do gavião tem um destaque especial. Este pássaro predador faz parte da maioria dos temas tratados nos mitos. No mito “A caçada do moqueado e o dono das caças” (ZANNONI, 2002) ele está presente num sentido invertido, isto é, passa a representar um azang, um espírito mau que deve ser eliminado. No mito “O tenetehara que virou gavião” (ZANNONI, 2002) ele representa a figura do guerreiro, do caçador. Neste mito ajuda o herói Wira’i a se livrar da grande cobra que o queria engolir e está presente, especialmente, no nome: “gavião pequeno”. Um outro papel representado pelo gavião é o do “vingador” das más ações.
 
Mas o maior simbolismo apresentado nos mitos refere-se à analogia entre o gavião e o caçador. “Virar gavião” significa assumir seus poderes, isto é, identificar-se com suas qualidades. Haveria outro animal mais importante para um Tenetehara do que um gavião? Sabemos que as mitologias americanas, especialmente amazônicas, identificam a figura do caçador com dois animais: a onça e o gavião. Para o Tenetehara, a onça tem um papel muito mais secundário do que o gavião que aparece em muitos mitos. A onça não é um animal a ser caçado visto que sua carne não faz parte da dieta alimentar desse povo. Um caçador Tenetehara me dizia que a onça pode ser morta pelo caçador em legítima defesa, mas precisa ter respeito para com esta: “Não pode mangar dela em momento algum, senão seu espírito se revolta contra você”. O gavião, também, não é animal a ser caçado mas sim a ser “imitado”. Ele é o caçador por excelência: o predador da floresta. Num mito Tenetehara/Tembé, “A festa dos animais”, transcrito por Nimuendaju (1951), a figura principal da festa é o gavião: “Ouviu-se o grande gavião Wyrohueté que de longe tocava sua corneta: bu-bu-bu! Os animais se regozijaram e disseram: ‘O grande gavião também vem dançar conosco!’ O gavião estava ainda enfeitando-se e preparando-se para a dança”. No entanto, a onça (jaguar) toma a cena e começa a cantar, desprezando os outros animais, com palavras inconvenientes. Assim a festa acabou. “Se naquele tempo o jaguar não se tivesse comportado desse modo, os animais seriam ainda como homens e poderiam cantar”.
 
Durante os rituais tenetehara, o ponto alto da festa é marcado pela penugem de gavião real colocada nas cabeças não só dos iniciados mas de todos os participantes do ritual. Um exemplo típico são os rituais de iniciação masculina e feminina quando, pela manhã, antes do alvorecer, as cabeças dos iniciados e parte dos seus corpos são enfeitados com as penas de gavião, a significar a chegada do sol. Assim, pode-se relacionar sem sombra de dúvida o gavião ao astro solar. Com sua imponência de vôo, ele representa a presença viva do sol na abóbada celeste. Podemos dizer, portanto, que este, além de Maíra (ZANNONI, 2002), para o mundo humano, é o paradigma do homem Tenetehara no mundo animal.
 
 
No mito de Wira’i aparece ressaltada a relação entre o mundo dos homens e o mundo dos animais, entre o mundo da floresta e o mundo da aldeia, entre o mundo da natureza e o mundo da cultura. Estes se complementam através de ações recíprocas. Assim, o respeito ao mundo de cada um é a prerrogativa principal. Preservar a natureza significa preservar a vida humana, ao mesmo tempo em que a vida humana contribui para a continuação do ciclo da natureza, no que concerne tanto à fauna quanto à flora.
 
Todos os mitos tenetehara referem-se a uma época em que os animais, como os homens, falavam. Época essa que, como todos os narradores apontam, já acabou. No entanto, ela está presente ainda nos mitos. Neles, todos os personagens falam, dialogam entre si, se manifestam. Assim, representa para os Tenetehara o “tempo perdido”, um tempo em que havia harmonia e entendimento entre os mundos da natureza e da cultura. É, porém, o tempo a ser perseguido ainda. Se eles não falam mais com o homem, os seus espíritos se manifestam aos homens e, assim, o homem pode falar com eles através destes. Assim o pajé, ao mesmo tempo em que precisa dominar os espíritos dos animais, se comunica com eles em favor da sociedade.
 
Esta manifestação mítica, embora pareça saudosa, representa o desejo de todo Tenetehara de que dois mundos, que parecem tão diferentes, voltem a se “entender” na construção da harmonia vital. Por isso, os mitos são preservados.
 
Baseado em texto de Claudio Zannoni

domingo, 16 de dezembro de 2012

POVO XOKLENG

Quando Cabral chegou às águas da Bahia, na região sul de Pindorama, onde hoje é Santa Catarina viviam os Guarani, os Kaigang e os Xokleng, sendo que os primeiros vestígios de comunidades humanas nestas paragens datam de 5.500 anos.
 
Para os Xokleng, a terra conhecida chamava-se LA KLÃNÕ, que na sua língua quer dizer "território dos caminhantes do  sol" ou "da gente que vive sob o sol". Eles são do tronco lingüístico Jê e, segundo estudos feitos pelo antropólogo catarinense Silvio Coelho dos Santos, no passado viviam divididos em três grandes grupos. Um deles circulava pela região do Vale do Itajaí, outro na cabeceira do Rio Negro, na fronteira com o Paraná, e o terceiro, no sul, próximo a Tubarão. Eram nômades, caminhavam pelo território em busca de caça e pesca e não eram dados as artes agrícolas. Seu centro vivencial se dava em torno da mulher. Ela decidia onde parar, descansar suas tralhas domésticas e fazer o fogo. Ali o grupo então permanecia por alguns dias. Viviam no tempo e só construíam abrigos feitos com ramas de árvores nas épocas de chuva. Seu espaço de andanças na busca da caça cobria desde Curitiba, no Paraná, até a região de Porto Alegre. No litoral viviam os Guarani, e os Kaigang um pouco mais para dentro, no lado oeste. Com estes, os Xokleng vivam de escaramuças.
 
Por conta da proximidade com o mar, os Guarani foram os primeiros a serem encontrados pelos brancos invasores, quando estes começaram a descer a costa. Logo passaram a ser capturados para servir de mão de obra escrava. Mas, por causa da resistência que empreenderam e também das doenças, este povo foi praticamente eliminado do litoral. Poucos restaram, fugindo para dentro do continente, outros foram escravizados. Já os Kaigang e os Xokleng só foram vistos bem mais tarde quando os paulistas iniciaram as rotas de comércio com o Rio Grande do Sul tendo os tropeiros como os desbravadores, por volta de 1728, portanto, mais de 200 anos depois da conquista. Mas, eram encontros fortuitos. No geral, quando viam os brancos ocuparem seu território, os Xokleng resistiam bravamente, passando a ser reconhecidos pela sua valentia. A região ocupada por esta etnia era o espaço das araucárias, que, para eles tinha importância fundamental. Toda a base da sua alimentação era o pinhão, e é bem provável que tal qual os Mapuche, da Argentina e Chile, também moradores de terras de aruacária, estes espaços fossem considerados sagrados.
 
Foi com o surgimento da cidade de Lages, em 1771, que a saga de destruição dos originários tomou mais força. Colonos vindos de São Paulo ou de outras regiões do Brasil montavam fazendas para criação de gado e cercavam as terras. Depois, com a chegada dos imigrantes europeus, no início do século XIX, outros espaços de terra lhes foram tomados, a ponto de uma carta régia de Dom João VI estabelecer o início de uma guerra de extermínio. Os conflitos eram inevitáveis. Uma triste história, pois tanto os Xokleng defendiam suas terras, quanto os imigrantes buscavam o cumprimento de uma promessa de vida melhor. Mas, neste embate, os originários eram os que levavam a pior, uma vez que sequer eram considerados "humanos". Pejorativamente chamados de "bugres", os Xokleng passaram a ser caçados como bichos pelos "bugreiros" que os vendiam no mercado de escravos e defendiam as terras dos imigrantes. Naqueles dias, a vida dos Xokleng, que adentravam o mato e observavam, curiosos, a horda dos brancos, entraria num redemoinho sem volta.
 
Os Xokleng tinham uma longa tradição guerreira, uma vez que viviam de escaramuças com os Kaigang e a presença dos brancos ia, pouco a pouco, inviabilizando a coleta de alimentos. Sem a prática da agricultura, guerrear com os invasores passou a ser vital para os grupos originários. Uma coisa levou a outra, e o governo também decidiu proteger as terras com milícias armadas. Cada vez mais os indígenas ficavam encurralados, uma vez que não tinham para onde fugir. Assim, exército regular e tropas de bugreiros iniciavam a "civilização", como eles mesmos anunciavam nos jornais da época. E, esta, nada mais era do que o massacre sangrento de famílias inteiras dos Xokleng. Nem mulheres ou crianças eram poupadas. O índio era visto como um simples obstáculo que deveria ser transposto em nome do progresso e da vida feliz das famílias brancas. Ninguém levava em conta que aquela era uma terra que tinha dono.
 
No início do século XX, depois que grande parte do território dos Xokleng já estava loteado e um expressivo número de indígenas mortos, em 1914 dá-se o que ficou conhecido na história por "pacificação". Naqueles dias, a já então República tinha o índio como um "problema nacional" e no começo do século XX Cândido Rondon havia iniciado sua cruzada de integração do indígena à vida brasileira, sempre pela paz. Em 1910 o Estado criara o Serviço de Proteção ao Índio, tendo como lema o axioma de Rondon: morrer se for preciso, matar nunca! Chegava a hora do fim do massacre pelas armas e começava uma proposta de "integração" que, apesar da boa vontade, também confinava o índio e obrigava os povos a assumir uma nova cultura, assim, de chofre, num choque cultural do qual poucos se recuperaram.
 
Em Santa Catarina a história oficial conta de um jovem idealista, Eduardo Hoerhan, que havia assumido o SPI e buscava um encontro com os Xokleng para acabar de vez com as escaramuças entre indígenas e colonos imigrantes. A proposta era pacificar e aldear os Xokleng para que as comunidades criadas nas terras originárias pudessem produzir e viver em paz. Dos desejos dos índios ninguém quis saber. E assim, contam os livros que depois de algum tempo de "namoro", com conversas (Eduardo arranhava a língua dos Xokleng) e com a entrega de presentes, ele logrou atrair os indígenas e pelos menos uns 400 deles passaram a freqüentar o chamado "Posto de Atração". Mas, apesar disso, os "bugreiros" continuaram a atuar na região, afinal, muitos grupos de indígenas ainda vagavam pelas florestas e até os anos 40 ainda se avista um ou outro resistindo ao aldeamento.
 
Foi no ano de 1918 que Hoerhan chegou a Ibirama com um grupo de 200 Xokleng e foi ali que se demarcou um espaço para que a comunidade passasse a viver. Naqueles dias, conta Silvio Coelho, os chamados "botocudos" eram como bichos no zoológico e de todos os cantos do estado vinha gente para vê-los, acuados e tristes, finalmente pacificados. Assim, de caminhantes sob o sol, nômades e livres, os Xokleng passaram, num átimo, a sedentários e dependentes da boa vontade governamental. Uma mudança brusca demais na cultura e no modo de ser a gerar conseqüências que perduram até hoje. Uma foto, reproduzida no livro de Silvio Coelho "Índios e Brancos no Sul do Brasil – a dramática experiência dos Xokleng", dos primeiros anos de "pacificação", é a prova viva do horror vivido pelas gentes Xokleng. Nela, uma mulher abraça uma menina, mas o que toca a alma são os olhos. Os da mulher expressam um profundo sentimento de tristeza e derrota e a menina olha para câmera cheia de terror. Agarradas, as duas se protegem, mas sabem que a vida nunca mais será a mesma. É o fim do seu mundo.
 
Convidados pelo Grupo Livre de apoio aos Povos Indígenas de Santa Catarina e reunidos em Florianópolis, em dezembro de 2009, os 18 caciques da área Xokleng La Klãnõ, apresentaram outra versão da história, desde as suas memórias mais antigas. Conta o diretor da Escola Bugio, José Cuzung Ndilli, que a chamada "pacificação" não foi conseguida por Eduardo Hoerhan, como diz a versão oficial. "Foram nossos líderes que, em 1909, se juntaram e decidiram que não dava mais para ficar guerreando com aquela gente que chegava. Foram eles que decidiram fazer o contato com os brancos, indo na casa de Hoerhan. Foi nosso povo que decidiu pela paz. A gente confiou nos brancos e é tão rejeitado até hoje". Naqueles dias, diz ele, dos 400 que fizeram contato, sobraram apenas 120, por conta das doenças que apareceram. "Hoje, passados 70 anos, nós somos dois mil índios e continuamos crescendo. Já acabou a época de acabar. Nós somos um povo difícil de extinguir".
 
Ndilli diz que atualmente os Xokleng ainda sofrem com a perseguição e o preconceito. Isso sem falar na falta de respeito do governo para com eles, como ficou claro na construção da Barragem Norte, em José Boiteaux, nos anos 70, que alagou terra e desalojou várias famílias, diminuindo ainda mais o território. "A gente sabe que as lideranças da época aceitaram a barragem, mas como foi o processo? O branco sempre quis ser superior ai índio e não leva em conta as nossas necessidades. Ele sabe que a terra é nossa, mas tem essa ganância". Há pouco tempo, em 1991, os Xokleng chegaram a tomar o canteiro de obras da barragem exigindo o cumprimento das promessas, que não saíram do papel. "Tem muita gente sem casa, não há um estudo de impacto ambiental da barragem e nós queremos ver. Porque se o verde da bandeira ainda está aí, intacto, é porque nós protegemos. O que é história de progresso para o branco, pra nós é sofrimento".
 
O professor Ndilli insiste que os Xokleng vão seguir lutando pelos seus direitos, pelo cumprimento das leis, embora saiba que para o governo seria bom o índio não ter história nenhuma. "Eles gostariam de ter uma borracha gigante que apagasse tudo, mas não vai ser assim. Em 2014 serão os 100 anos do contato. Que vamos fazer, festa ou o quê?"
 
Livai Paté, que é representante dos Xokleng no Conselho de Saúde, diz que não gosta de lamentar o passado, mas que sempre é bom lembrar para que as coisas não aconteçam de novo. "Nós também queremos viver, ter nosso direito, nossas terras, educação, saúde. E há que respeitar nossa forma de viver, de praticar a medicina. Essas terras eram nossas, e agora temos de ficar confinados em lugares ruins. A terra onde estamos é uma pirambeira, as melhores foram tiradas de nós. A gente não pode aceitar".
 
Vomble Paté é representante da área de Palmeira e reclama da falta de interesse por parte das pessoas brancas, com relação aos problemas indígenas. "De cada 10, dois se interessam. A gente vem aqui na universidade e não aparece estudante. Mas nós queremos dizer a nossa versão da história. Esse Eduardo (Hoerhan, o pacificador) não significa nada pra nós. Ele matou um companheiro que foi buscar nosso direito. E essa matança continua. Antes eles matavam com arma de fogo, agora matam com a caneta".
 
Enoke Popó é cacique na aldeia Figueira. Ele conta que os Xokleng se dividiam em vários grupos e tinham como modo de vida a coleta e a caminhada pelo território. O pinhão era o alimento principal. Durante a época da colheita eles juntavam tudo o que dava, para poder durar até a próxima. Depois, coziam e armazenavam embaixo da terra, enrolado em folhas, o que garantia a sua perenidade. O local mais abundante era a Serra da Abelha, onde é hoje o município de Vítor Meireles. "Os mais velhos sempre sabiam onde era o melhor lugar pra acampar. A gente circulava por um território de mais de 34 mil hectares e agora estamos confinados num espaço de 14 mil. Hoje estamos aí na luta para ampliar esse território. O branco fala que a gente não precisa disso tudo. Mas essa terra é nossa. É um direito nosso e queremos manter".
 
Enoke lembra que não foi fácil para o Xokleng sair da vida nômade para a sedentária, como também foi difícil aprender a arte da agricultura. E quando eles conseguem, vem o governo e tira a terra, como foi na época da construção da barragem. As melhores foram alagadas e eles tiveram de ir para as regiões de rocha. Não é sem razão que eles procurem se manter mais com o artesanato do que com o plantio de alimentos. Sem a tradição ancestral e sem terras, fica quase impossível virar agricultor. Já a coleta do pinhão também é cada vez menor porque a região está tomada pelo pinus, sendo a araucária um ente em extinção. "A gente tem de viver dependendo do governo e este ano eles mandaram apenas uma cesta básica por família. Uma, de 26 kg de alimento. E o resto do ano? Como faz? É por isso que os jovens estão saindo, vão trabalhar de empregado nas fazendas, na cidade, e aí perdem o costume".
 
Sobre a religiosidade Enoke conta que quase todo o povo Xokleng é evangélico. E Silvio Coelho mostra, no seu livro sobre os Xokleng, como esta igreja acabou sendo responsável pela retirada de muitos dos indígenas do vício do álcool que havia sido contrabandeado para as aldeias para que o branco melhor dominasse. Por outro lado, as velhas tradições, uma vez que não são mais vividas, acabam se perdendo da memória. "A gente conta para as crianças dos deuses antigos, da chuva, do trovão, do relâmpago. O povo antigo se amparava nas forças da natureza. Mas é só uma lembrança que a gente passa no dia do índio. Sobrevivem alguns rituais que a gente faz nos casamento e batismos. Alguma coisa fica. Agora, a língua não. A língua a gente preserva".
 
Os Xokleng vivem na região de Ibirama, em Santa Catarina, numa terra de 14 mil quilômetros quadrados. São 18 aldeias que perfazem o território La Klãnõ, com 88 famílias e duas mil pessoas. Cada área tem um cacique que é eleito pelos membros da aldeia e cumpre um mandato de três anos. "É bom, porque a gente fica perto. Se o cacique não cumpre o que prometeu, o povo cobra na hora".
 
Sobre os movimentos de povos originários na América Latina os Xokleng sabem muito pouco. Os brancos que convivem com eles não levam estas informações. "Só no Brasil são 250 povos, com línguas diferentes. A gente tinha de ter uma língua índia pra se comunicar, talvez aí a gente pudesse entender as outras lutas. Nós, aqui, planejamos nossa idéia na nossa língua, mas depois temos de falar em português. Isso é ruim".
 
E assim segue este povo que ainda não consegue se sentir em casa, apesar de estar no seu território. Sem terra boa, sem araucária, sem pinhão, sem os direitos básicos respeitados eles fazem o que sempre fizeram: lutam. Pode ser devagar, pode ser isolado, pode ser difícil. Mas é como eles sabem fazer. O povo caminhante do sol conseguiu vencer os bugreiros, a invasão, o medo, a dor. Saíram de 120 pessoas em 1920 para os dois mil que são hoje. Parece pouco, mas não é. Não para uma gente que já sofreu tanto e que vive abandonada na "Europa do sul". Mas, naquele silencioso jeito de ser, eles vão gestando o amanhã esperado. Que ninguém se engane, o valente povo Xokleng, que dominou as florestas de Santa Catarina, segue em pé, e avança!...

Texto de ELAINE TAVARES

sábado, 15 de dezembro de 2012

AS CARACTERÍSTICAS DO SER GUARANI

Ser Guarani é fundamentalmente one’e guarani (falar guarani), oguata (caminhar, migrar, ter a ética do oguata), ko’ygua (ser camponês, um cultivador), tavaygua (um agricultor que vive em uma aldeia), naicaciquéi (sem cacique, uma sociedade sem estado), jopói (praticar uma economia de reciprocidade) e ñembu’e (pertencer a um povo de oração, em oração – palavra divina). Estas são as sete características fundamentais na composição do ñande reko, ou seja, do modo de ser guarani.
 
ÑEMBU’E – PERTENCER A UM POVO DE ORAÇÃO
Ñembu’e faz parte da concepção Guarani de que “a palavra é tudo e tudo é palavra”. Um conceito-existência que está na base da experiência antropológica, cosmológica e teológica.
 
O termo “palavra” (ayvu, ñe’ë, ä) também significa voz, fala, linguagem, idioma, alma, nome, vida, origem, personalidade. Constitui uma categoria das mais densas para explicar a maneira como se “trama o modo de ser guarani”. A indissociável relação entre palavra e alma leva Graciela Chamorro a concluir que o Guarani “é capaz de compreender-se e de compreender toda a sua vida, como experiências de palavra e atos de dizer-se”.
 
Na tradição indígena, a alma e o nome não são posses pessoais – a pessoa não tem o nome, não possui a alma –, e, sim, tanto a alma quanto o nome indicam o que ela é, a “alma é o próprio ‘eu’ ”. As expressões traduzidas por ‘alma’ em guarani designam o indivíduo em sua integridade e nisso assemelham-se aos equivalentes hebraico e grego nephesh e psyquê. Para “palavra-alma”, os termos que definem a relação são ñe’ë e ayvu, podendo significar, igualmente, palavra e alma, e também no sentido de “minha palavra sou eu” ou “minha alma sou e’’.
 
Graciela Chamorro recorre a Montoya e aos registros etnográficos para demonstrar a “capacidade expressiva singular” do termo “palavra” entre os Guarani: “Ñe’ë é expressar-se, é palavra, é linguagem. Tentar a palavra é jogá-la para frente, ñeëäa. Refletir antes de falar é jogar a palavra diante de si. Falar com ternura ou pôr querer no que se diz é vestir as palavras, ñeë monde. A palavra dita com ternura é palavra ainda não madura, ñeë aky. A palavra alegre é de olhos pequenos, ñeësai. Ñeë syry é a palavra que sai rapidamente da boca, que escorrega. A palavra entrecortada é ñeëndóy, razão solta. Ser mudo ou silenciar é comer as palavras, ñeëngu. O segredo é palavra escondida, ñeë ñemï. Palavra dura é a que se trava na garganta, ñeë pyatä. Ñeë pyvoi é falar desordenadamente. Palavra magra é o chamar alguém com psius, ñeë piru. O aturdir com palavras é deixar o outro perdido, ñeë poromonkañy. Falar timidamente é ter medo, ñeë kyhyje. Palavra gorda, ñeë kyra, é mentira. Resposta é a palavra que encara, ñeë rovaicha. O falar ordinário é uma plantação de palavras, ñeëtyva. A palestra, o sermão, a conversa é tornar-se palavra, ñemoñeë. Rogar é articulado pela expressão “alquímica” ñeë marangatu, capaz de transformar o mal (marä) em algo bom (katu) “.
 
A imagética presente na Língua Guarani lembra as reflexões sobre os nomes e as palavras de Walter Benjamin, presentes na teoria sobre o Drama Barroco Alemão, que indicam a linguagem como o lugar das idéias, ou, ainda, como a “dimensão nomeadora da linguagem em contraste com sua dimensão significativa e comunicativa”.
 
Comentando a teoria Benjaminiana, Sérgio Paulo Rouanet fala da linguagem adamítica, que, para Benjamin, desperta as coisas, chamando-as pelos seus nomes  verdadeiros. Segundo Benjamin, “o nome transforma-se na palavra, mero fragmento semântico, coisa entre coisas”, perdendo, por essa razão, a capacidade de nomeá-las. “A idéia está inscrita na ordem do Nome”.
 
Pesquisando os Ache, Pierre Clastres diz que o canto dos caçadores designa “Um certo parentesco entre o homem e sua linguagem: mais precisamente um parentesco tal que parece subsistir apenas no homem primitivo. Isso equivale a dizer que, bem distante de todo exotismo, o discurso ingênuo dos selvagens nos obriga a considerar o que os poetas e pensadores são os únicos a não esquecer: que a linguagem não é um simples instrumento, que o homem pode caminhar com ela, e que o Ocidente moderno perde o sentido de seu valor pelo excesso de uso a que a submete. A linguagem do homem civilizado tornou-se completamente exterior a ele, pois é para ele apenas um puro meio de comunicação de informação. A qualidade do sentido e a quantidade dos signos variam em sentido inverso. As culturas primitivas, ao contrário, mais preocupadas em celebrar a linguagem do que em servir-se dela, souberam manter com ela essa relação interior que é já em si mesma aliança com o sagrado. Não há, para o homem primitivo, linguagem poética, pois sua linguagem já é, em si mesma, um poema natural em que repousa o valor das palavras”.
 
Existem, ainda, outras tentativas de explicar a palavra guarani, como, por exemplo, referir-se a ela como corpo, encorpar-se e encarnar-se. Para Melià, os Guarani acreditavam que a alma não era algo recebido de forma acabada, e sim, construída ao longo da vida. Essa construção se exterioriza através da palavra. A “história da alma guarani é a história da sua palavra, a série de palavras que formam o hino de sua vida”.
 
OGUATA - A ÉTICA DO CAMINHAR
A busca pela "terra sem mal" tem sido apontada como motivo e razão da migração dos Guarani e como elemento constitutivo da construção do seu modo-de-ser. Nesta busca, inserem-se, também, as particularidades da economia do grupo, como a prática da horticultura e a reciprocidade, entre outras.
 
Assim, a terra se apresenta como espaço que deve ser caminhado. Oguata é caminhar. Esse verbo sintetiza o etos guarani até os dias atuais. Uma terra caminhada é um espaço cultivado, ocupado, humanizado. O pensamento mítico e religioso dos Guarani integra na idéia criacional uma terra que se alarga e se estende continuamente, o que supõe caminhar por ela, criar novos horizontes, tomando posse desses espaços de modo humano e pleno.
 
Os Guarani estabeleceram-se nas florestas tropicais e subtropicais dos vales dos grandes rios, ocupando as matas tropicais situadas ao longo dos rios Paraguai, Paraná e Uruguai – incluindo os atuais estados brasileiros do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Mato Grosso do Sul, além do oriente paraguaio e boliviano, do nordeste argentino e do Uruguai –, provavelmente motivados pelo crescimento demográfico e por prolongada seca que teria alterado as condições de sobrevivência. Os que migraram para essas regiões teriam sido os ascendentes dos tupi-guarani.

Dado o processo contínuo de diferenciação cultural, os Tupi e os Guarani separaram-se, originando duas tradições distintas. Os Tupi aclimataram-se no litoral quente do Atlântico, desenvolvendo uma tradição baseada na cultura da mandioca amarga. Os Guarani adaptaram-se ao clima temperado das matas subtropicais dos rios Paraná, Paraguai e Uruguai, desenvolvendo uma tradição baseada na cultura do milho, compondo, na bacia do Rio da Prata, sociedades denominadas “horticultores de floresta tropical”.
 
Na região Platina, a área ocupada pelos Guarani era na maior parte limitada a oeste pelo rio Paraguai, pelo menos pela parte de seu curso situada entre o paralelo 22, a montante, e o paralelo 28, a jusante. A fronteira meridional encontrava-se um pouco ao sul da confluência do Paraguai e do Paraná. As margens do Atlântico constituíam o limite oriental, mais ou menos do porto de Paranaguá ao norte (paralelo 26) até a fronteira do Uruguai atual, outrora pátria dos índios Charrua (paralelo 33). Temos assim duas linhas paralelas (o curso do Paraguai, o litoral marinho), das quais basta ligar as extremidades para conhecer os limites setentrional e meridional do território guarani. Esse quadrilátero de aproximadamente 500.000 km não era integralmente ocupado pelos guaranis, uma vez que outras tribos residiam nessa região principalmente os caingangue. Pode-se avaliar em 350.000 km a superfície do território guarani.
 
De acordo com Arno Kern, a Bacia Platina “se caracteriza, do ponto de vista natural, por vários habitats com seus respectivos biomas” sendo este complexo geográfico ocupado por diferentes etnias cada uma delas detentora de espaços ecológicos específicos. Os grupos vindos da Amazônia buscaram espaços semelhantes ao de suas origens, estabelecendo suas aldeias nos vales quentes e úmidos, nas várzeas irrigadas das florestas tropicais e subtropicais dos vales dos rios Paraguai, Paraná, Uruguai e Jacuí, viabilizando a prática agrícola. Nas florestas de pinheiros do planalto estabeleceram-se os Guaianás, inimigos dos Guarani. Nos campos do Pampa, viviam Charruas e Minuanos.
 
A expansão dos Guarani na Bacia Platina limitou-se às terras adequadas ao cultivo e à forma de aproveitamento do espaço praticada por eles. Os campos abertos e florestas de araucárias, como já foi mencionado, ficaram sob o domínio de grupos caçadores, coletores e agricultores.
 
Os séculos XVI e XVII, tempo da ocupação e colonização da América pelos europeus e, conseqüentemente, da Região Platina, ofereciam dificuldades para novas expansões: a terra das matas subtropicais estava esgotada e a população alcançava a cifra aproximada de 2 milhões de habitantes. Juntamente com o estrangulamento das terras cultiváveis, empecilho para novas migrações, encontrava-se a ação depredadora dos colonos europeus, que se converteu no que Melià aponta ser “o mal maior e mais terrível que sobreveio à terra guarani”.
 
O’ÑEE – FALAR GUARANI
Os Guarani pertencem ao tronco lingüístico tupi-guarani, desenvolvido a partir do tronco tupi mais antigo, e à tradição denominada na arqueologia de tupi-guarani. São também genericamente identificados como “povos amazônicos”, em razão do local de origem dos seus ancestrais, a Amazônia, onde entre os rios Jiparaná e Aripuanã (afluentes do Rio Madeira) teriam se originado em torno de cinco mil anos atrás. Este ambiente caracteriza-se por florestas entremeadas de cerrados, aptos por isso mesmo, à caça e à coleta. Questões demográficas ao longo dos dois mil anos seguintes teriam ocasionado a expansão do grupo, a diversificação da protolíngua tupi e a modificação da cultura em geral, chegando à incorporação da agricultura – plantação de tubérculos – e de cerâmica. Ter-se-iam neolitizado.
 
Em levas sucessivas os povos amazônicos percorreram o litoral atlântico, descendo até o Rio da Prata e, no sentido do oriente atingiram os Andes, propiciando a difusão da língua e da cultura material, ainda que não de modo uniforme.
 
A migração paulatina ocorrida ao longo de 2500 anos fez com que os Guarani difundissem sua língua por um grande território, sendo a figura do Karai (espécie de liderança religiosa) fundamental na compreensão desse movimento migratório. São necessárias as palavras do Karai e a força de sua oratória para levantar o grupo de uma terra esgotada pelo cultivo. Através da busca de uma nova terra “a palavra caminhava com o povo, pois o povo era levado por ela ao mesmo tempo em que a levava consigo. Estar a caminho se tornou, assim, o núcleo dinamizador da economia profética e da vivência religiosa do grupo.”
 
O caminhar almeja uma terra e a terra guarani se compara a um corpo murmurante que se estende e se alarga continuamente. Há um canto que diz: Yvy (o)ñemongo’i vaekue, “num passado-começo a terra balbuciava sua palavra”. Nesse mesmo tempo (vaekue), balbuciava (brotava) sua palavra também o milho (Itimby oñemongo’i vaekue). Seu brotar é também um murmúrio, um ensaio do falar, do dizer-se, da palavra. Brotar é mostrar-se, aparecer, chegar à existência, nascer. Itymby foi registrado por Montoya como “rebentar”, “brotar”, “furar”. Seus exemplos falam do milho que brota e de sementes que ficam carunchadas. Nos relatos Kaiová, o milho – como outras plantas e animais – assume um papel ativo na cosmogonia indígena.
 
O centro da terra para os Guarani atuais significa o umbigo do mundo, o lugar onde tudo começou, sendo, ainda, uma importante referência espacial. Estes termos (centro da terra ou universo), nos registros jesuíticos, foram traduzidos como “inferno” e “cemitério”. Assim, nos catecismos está escrito que o inferno fica no meio interior da terra (yvy ypytépe, ou igbi apiteripe), lugar habitado pelo diabo (aña retä). Bolaños e outros autores dos catecismos usavam essa expressão para traduzir a descida de Jesus ao mundo dos mortos.
 
Tyapu, “trovão”, vincula-se a Tupã, mas também representa o avô ou pai criador dos Guarani – Ñane Ramöi, Ñande Ru, Ñamandu, Hayapúva –, àquele que “troveja ou que se mostra em ruído”. O instrumento musical mbaraka amplia o significado de tyapu para ‘fala’, ‘palavra’ ou ‘mensagem’, que devem ser interpretadas pelos xamãs. Assim se diz: ”como fala essa maracá” (oñe’ë pe mbaraka) como sinônimo de ‘soa maracá’.
 
Quando portugueses e espanhóis chegaram à bacia Platina para dar início à colonização, encontraram nestas terras o resultado de um processo milenar de produção e reprodução cultural, ou seja, as populações falantes do guarani em diferentes dialetos e possuidoras de uma certa homogeneidade cultural.
 
NAICACIQUÉI – INEXISTÊNCIA DE CHEFIA
Pesquisando as culturas primevas ou arcaicas da América, Pierre Clastres defende a tese de que estas eram sociedades que se opunham a uma chefia efetiva, a um poder que se colocasse acima dos desejos e necessidades coletivas.
 
Excetuando as altas culturas do México, da América Central e dos Andes, diz Clastres, distribuídas ao longo do território americano encontrava-se um grande conjunto de sociedades nas quais a detenção do poder, como a entendemos, inexistia, onde se vê o político como um “campo fora de toda coerção e de toda violência, fora de toda subordinação hierárquica, onde, em uma palavra, não se dá uma relação comando-obediência”.
 
Segundo Clastres, as características imprescindíveis das lideranças indígenas são visíveis tanto no norte quanto no sul do continente. A liderança indígena se faz:
1.    quando o chefe assume a função de “fazedor de paz”, de instância moderadora do grupo, tal como é atestado pela divisão freqüente do poder em civil e militar;
2.    quando o chefe é generoso com seus bens, não repelindo os incessantes pedidos da comunidade. Caso isso acontecesse, cairia em descrédito;
3.    quando o chefe é bom orador. Somente um bom orador ascende à chefia e granjeia a simpatia do grupo.
 
Parece a Clastres que os grupos indígenas intuitivamente compreenderam que o poder é essencialmente coerção e, por isso mesmo, colocaram-se em oposição a ele. Tal atitude não pode, contudo, ser lida como uma inabilidade na resolução de questões políticas e de poder, na medida em que pressentiram muito cedo que a transcendência do poder encerra para o grupo um risco mortal, que o princípio de uma autoridade exterior e criadora de sua própria legalidade é uma contestação da própria cultura; foi a intuição dessa ameaça que determinou a profundidade de sua filosofia política.
 
Se nas sociedades de estado a palavra é o “direito” do poder, nas sociedades sem estado ela é “dever” do poder. A chefia como cargo não confere ao chefe o direito à palavra, ao contrário, as sociedades indígenas exigem de sua liderança o domínio sobre as palavras, sendo a fala um imperativo ao chefe. O silêncio incompatibiliza-se com a liderança.
 
Nas sociedades sem Estado, regras e leis se inscrevem na ordem do corpo. São marcas indeléveis a autorizar o pertencimento deste corpo ao grupo. Assim entende-se os ritos de iniciação e essa “escritura” que marca o corpo. As sociedades arcaicas são, sociedades de marca, são sociedades sem Estado, sociedades contra o Estado. A marca sobre o corpo, igual sobre todos os corpos, enuncia: Tu não terás o desejo do poder, nem desejarás ser submisso. E essa lei não-separada só pode ser inscrita num espaço não-separado: o próprio corpo. Admirável profundidade dos selvagens, que de antemão sabiam tudo isso, e procuravam, ao preço de uma terrível crueldade, impedir o surgimento de uma crueldade ainda mais terrível: a lei escrita sobre o corpo é uma lembrança inesquecível.
 
São sociedades que possuem um chefe, que, por sua vez, não possui autoridade, não ordena, não desenvolve instrumentos de coerção e não exige obediência. “Estranha à sua essência”, diz Clastres, o chefe não possui autoridade, mas, como dito anteriormente, desenvolvendo as habilidades, mantém-se como chefe enquanto o grupo assim o desejar. O chefe, enquanto visto como tal resolve os conflitos que podem surgir entre indivíduos, famílias, linhagens etc., ele só dispõe, para restabelecer a ordem e a concórdia, do prestígio que lhe reconhece a sociedade. Mas evidentemente prestígio não significa poder, e os meios que o chefe detém para realizar sua tarefa de pacificador limitam-se ao uso exclusivo da palavra: não para arbitrar entre as partes opostas, pois o chefe não é um juiz e não pode se permitir tomar partido por um ou por outro; mas, para, armado apenas de sua eloqüência, tentar persuadir as pessoas da necessidade de se apaziguar, de renunciar às injúrias, de imitar os ancestrais que sempre viveram no bom entendimento.
 
Momentos como esses são cruciais para a chefia. Alcançado o entendimento entre os disputantes, o chefe mantém e confirma sua posição. O contrário demonstra sua incapacidade persuasiva, abrindo espaço para resoluções violentas, sinônimo de incapacidade em responder o que dele se espera, o que coloca em risco seu prestígio.
 
Prestígio este que, segundo Clastres, advém tão-somente de sua competência técnica, dons oratórios, habilidades como caçador, capacidade de coordenar as atividades guerreiras, ofensivas ou defensivas. E, de forma alguma, a sociedade deixa o chefe ir além desse limite técnico, ela jamais deixa uma superioridade técnica se transformar em autoridade política. Finalmente o chefe está a serviço da sociedade, é a sociedade em si mesma o verdadeiro lugar do poder – que exerce como tal sua autoridade sobre o chefe.
 
A guerra surge como exceção. Tendo em vista a habilidade “técnica” de guerrear, durante a expedição guerreira o chefe pode exercer o mínimo de autoridade. Entretanto, terminada a guerra, o chefe volta a ser o chefe sem poder, independentemente do resultado da batalha, pois a sociedade separa poder e prestígio, a glória de um guerreiro vencedor e o comando que lhe é proibido exercer. O grupo tem clareza de que a fonte mais apta para saciar a sede de prestígio de um guerreiro é a guerra. Ao mesmo tempo, um chefe cujo prestígio está ligado à guerra não pode conservá-lo e reforçá-lo senão na guerra: é uma espécie de fuga impulsiva para frente que o faz querer organizar sem cessar expedições guerreiras das quais ele conta retirar benefícios (simbólicos) aferentes à vitória. Enquanto seu desejo de guerra corresponder à vontade geral da tribo, em particular dos jovens para os quais a guerra é também o principal meio de adquirir prestígio, enquanto a vontade do chefe não ultrapassar a da sociedade, as relações habituais entre a segunda e a primeira manter-se-ão inalteradas.
 
No centro da organização social dos Guarani, em especial, encontram-se, no mínimo, dois tipos ou conceitos de liderança. O líder civil, pa’i, era pai de linhagem ou da família extensa, teýru, e passou para a história sendo designado com o nome de “arawak”, “cacique”. O líder religioso, karai – referido nas crônicas como feiticeiro, mago e chupador (por dominar a técnica da cura por sucção), foi identificado pelos etnólogos como xamã.
 
JOPÓI – PRATICAR UMA ECONOMIA DE RECIPROCIDADE
As características jopói – reciprocidade  –, ko’ygua – ser camponês, um cultivador – e tavaygua – um agricultor que vive em uma aldeia – são melhor entendidas em conjunto. Cabe lembrar que a reciprocidade – jopói – é um atributo essencial para o reconhecimento de uma liderança.
 
Em Montoya, uma aldeia guarani pode compreender centenas de pessoas, distribuídas em grandes habitações retangulares recobertas de folhas de palmeira. Cada uma delas abriga uma grande família, que compreende os núcleos familiares formados pelas filhas e netas; ela funciona como um grupo defensivo e ofensivo e é local onde ocorre a maior parte das atividades de produção. Em certos casos, sessenta núcleos familiares vivem sob o mesmo teto. Cada um ocupa um local determinado, onde se estendem as redes de algodão ou de fibras de palmeira entre dois pilares e se agrupam alguns móveis e utensílios, bancos ou escabelos, às vezes ricamente esculpidos, grandes jarras para as bebidas fermentadas e os ornamentos ou vários objetos, duas ou três cabaças entalhadas que comportam recipientes, armas de caça ou de guerra, ferramentas rudimentares para o artesanato, estacas e machados para os trabalhos nos campos.
 
Sociedades como a Guarani são classificadas quanto à sua manutenção como “sociedades de economia de subsistência”. Segundo Clastres, se levados em conta o domínio do meio natural e sua adaptação às necessidades, falar de inferioridade técnica se torna impossível. As sociedades primevas demonstram “uma capacidade de satisfazer suas necessidades pelo menos igual àquela da qual se orgulha a sociedade industrial e técnica. Isso equivale a dizer que todo grupo humano chega a exercer, pela força, o mínimo necessário de dominação sobre o meio que ocupa”.
 
O tempo dedicado ao trabalho corresponde ao tempo exato para a obtenção do necessário para a sobrevivência do grupo e, mesmo não estando preocupados em produzir excedentes, estes ocorrem. São sociedades de abundância, e os relatos de época confirmam esta realidade ao descreverem “a bela aparência dos adultos, a boa saúde das numerosas crianças, a abundância e variedade dos recursos alimentares”.
 
A vida econômica dos grupos tupi-guarani baseava-se sobretudo na agricultura, e, acessoriamente, na caça, na pesca e na coleta. Uma mesma área de cultivo era utilizada por um período ininterrupto de quatro a seis anos. Em seguida, era abandonada, por esgotar-se o solo ou, mais provavelmente, em virtude da invasão do espaço destacado por uma vegetação parasitária de difícil eliminação. O grosso do trabalho, efetuado pelos homens, consistia em arrotear, por meio de um machado de pedra e com auxílio do fogo, a superfície necessária. Essa tarefa, realizada no fim da estação das chuvas, mobilizava os homens durante um ou dois meses. Quase todo o resto do processo agrícola – plantar, mondar, colher –, em conformidade com a divisão sexual do trabalho, era executada pelas mulheres.
 
Ainda, o autor conclui que metade da população da aldeia (os homens) trabalhava em torno de dois meses a cada quatro anos, dedicando-se, no tempo restante, à caça, à pesca e à guerra.
 
Se tão pouco tempo de trabalho é capaz de prover a aldeia, produzindo, inclusive, um excedente, parece impróprio usar a expressão 'de subsistência' para falar deste modelo de economia. A expressão carrega em si ares de negatividade sinônima de carência, pobreza, ou, como diz Clastres, defeito, como se elas – as economias – sofressem de um mal congênito. O uso do conceito deve ser necessariamente positivado, ou seja, pensar em subsistência é pensar numa economia de abundância, que abastece plenamente a sociedade.
 
Por que essas economias não produzem mais, por que não dedicam mais tempo para as atividades produtivas? Segundo Clastres, somente por meio da força se obtém a produção de excedentes. Nas sociedades primevas, essa força coercitiva não encontra espaço – vale lembrar do poder político. Para este autor, não existe o desejo efetivo da acumulação de bens. Suas economias não são economias políticas.
 
Para ilustrar esse pensamento econômico, Clastres usa o machado de metal como exemplo de objeto que causou muito impacto nas sociedades arcaicas americanas por ocasião da colonização. A vantagem do machado de metal sobre o de pedra é evidente demais para que nela nos detenhamos: podemos, no mesmo tempo, realizar com o primeiro talvez dez vezes mais trabalho que com o segundo; ou então executar o mesmo trabalho num tempo dez vezes menor. E, ao descobrirem a superioridade produtiva dos machados dos homens brancos, os índios os desejaram, não para produzirem mais no mesmo tempo, mas para produzirem a mesma coisa num tempo dez vezes mais curto. Mas foi exatamente o contrário que se verificou, pois, com os machados metálicos, irromperam no mundo primitivo dos índios a violência, a força, o poder, impostos aos selvagens pelos civilizados recém-chegados.
 
Para Clastres, “a sociedade primitiva, primeira sociedade de abundância, não deixa nenhum espaço para o desejo de superabundância”.
 
A horticultura praticada pelos Guarani apresentava grande rendimento. Nas roças, o milho era o produto de maior destaque (nos escritos de Montoya há notícia de seis variedades de milho), bem como notícias de, entre as plantas cultivadas, duas espécies de moranga, vinte de batata, seis de mandioca, seis de amendoim e quatro de pimenta. A alimentação guarani era completada com a coleta de ervas, frutos, mel, caça e pesca.
 
A horticultura era praticada na mata. A subsistência/abundância do grupo alicerçava-se na agricultura de coivara (derrubada e queima da mata). Segundo Melià, a “terra humanizada” dos Guarani compreendia, além da selva e da roça, um espaço habitável, uma casa, um pátio, uma aldeia. A mata preservada para a prática da caça, da pesca e da coleta de mel e de frutas silvestres. Terra especialmente fértil para os cultivos e, por fim, um lugar para a grande casa comunal, com seu grande pátio aberto, ao redor do qual cultiva-se banana, mamona, algodão e urucu. Os três espaços que servem para avaliar a boa terra guarani são: o monte, a roça e a aldeia. Assim, “a selva é espaço da caça, da pesca e da coleta; a roça, o lugar do cultivo; a aldeia, o lugar das casas, das festas e das reuniões”.
 
A organização social dos Guarani tinha por base o te’ý – a família extensa –, constituída de uma linhagem patrilinear ou grupo macrofamiliar, unido pelo parentesco, que habitava a casa comunal. O te’ýiru, pai de cada família, constituía uma espécie de chefe da família extensa. O espaço vital em que os diversos te’ýi conviviam era o tekoha. Os tekoha podiam confederar-se, eventualmente, originando as guará. No tempo da conquista podem ser precisadas 14 guára, que levam o nome de rios ou caciques: Cario, Carijó, Tobatim, Guarambaré, Itatim, Paranayguá, Uruguayguá, Tape, Guayrá, Arechané, Caaró, Tarumá, Chiriguano e Chadul ou Guarani das ilhas.
 
Texto de Maria Denise Bortolini