quinta-feira, 21 de maio de 2009

PERSPECTIVISMO AMERÍNDIO

Na tradição ocidental tem predominado a idéia de que no “interior” do corpo e por debaixo das diferenças sociais, há uma subjetividade que permite a auto-percepção da individualidade. E sobre a elaboração dessa noção vêm elaborando as teorias de valor da pessoa humana e os diversos humanismos, cristãos ou laicos, característicos da tradição filosófica e ética ocidentais. O descobrimento da América provocou um estímulo intelectual importante na reconsideração do humano – como demonstra os estudos de A. Pagden e outros.

Como assinala Viveiros de Castro, quando os espanhóis chegaram às Antilhas pela primeira vez, em 1492, se preocuparam em saber se os índios teriam uma alma racional, mas não duvidaram de que tinham corpo. Os índios, por seu lado, não se questionaram que os europeus tinham algo parecido com a alma (porque até os animais têm), mas duvidaram que aquelas formas corporais tão estranhas fossem verdadeiros corpos humanos.


Viveiros continua com a constatação de que o status do humano no pensamento ocidental é essencialmente ambíguo: em parte, o ser humano é uma espécie animal entre outras, e o reino animal é um domínio que inclui os humanos; por outro lado, a humanidade é uma condição moral que exclui os animais. Estes dois status coexistem na noção dijuntiva de “natureza humana”. Em outras palavras: a cosmologia ocidental postula uma continuidade física e uma descontinuidade metafísica entre humanos e animais. Já os ameríndios postulam uma continuidade metafísica e uma descontinuidade física entre os seres do cosmo. Todos os seres têm cultura e, ainda que tenham diferenças entre si, essas “culturas naturais” possuem uma base comum que permite a comunicação entre elas e a comparação. Seu multiculturalismo é, então, mais radical e global; é um “multiculturalismo” que se manifesta no exercício continuado do perspectivismo – uma maneira indígena e pré-moderna de ser realista.

Perspcetivismo é uma teoria indígena segundo a qual o modo como os seres humanos percebem os animais e as outras subjetividades que habitam o mundo – deuses, espíritos, mortos, fenômenos meteorológicos, plantas, animais e até artefatos – difere profundamente da maneira como esses seres percebem os humanos e se vêem a sim mesmos. Tomemos, a título de exemplo, o estudo etnográfico de Tânia Tolze-Lima sobre um pequeno povo de língua tupi – os JURUNA – que vivem no Alto Xingu.

Quando os Juruna estão com desejo de comer carne de porco-do-mato, pedem ao xamã que aja para atrair os porcos. Segundo eles, os porcos vivem em comunidades divididas em famílias e organizadas em torno de um chefe com poderes xamânicos. O porco-xamã se diferencia dos demais por não ter pelos no traseiro e ter pelos muito duros na cara. O xamã dos Juruna convida desse porco para encontrarem-se em sonho; quando o porco-xamã se transforma em humano, o xamã-humanno busca sua amizade lhe oferecendo um cigarro. Quando sente que a amizade está consolidada, o xamã lhe diz que os humanos de sua alteia pretendem fazer uma caçada e o porco-xamã combina com o humano-xamã o lugar e o dia em que vão cruzar o rio. No dia marcado, os caçadores Juruna se dirigem para o lugar acertado entre os dois xamãs – o humano e o animal.

Os porcos se vêem a si mesmos como parte da humanidade e consideram a caça como um confronto, como uma guerra local, onde cada grupo tem que capturar inimigos. No plano da realidade humana, os porcos atacam e matam algum caçador, mas isso, para os porcos, é considerado uma captura, pois o homem morto se transforma em membro de seu grupo suíno.

Uns e outros - humanos e porcos – têm uma perspectiva diferente sobre suas respectivas peculiaridades culturais. Durante as noites de Lua Nova, é quando os porcos (e todos os animais da floresta) educam suas crias. Os Juruna, por seu turno, educam seus filhos durante a Lua Crescente, para evitar que seus rituais sejam simultâneos aos dos animais. A força física (para vencer na caça e na guerra) é o objetivo principal desses exercícios, mas também se preocupam com o desenvolvimento de certas aptidões, como a expressividade verbal e a inteligência. Mas o processo educativo já começa muito antes, durante o desenvolvimento embrionário, e refere-se à implantação e desenvolvimento do instinto social (no sentido de inclinação à comunicação com os outros). A proibição ritual do consumo de carne pelas mulheres grávidas, procura impedir que seja transmitida ao feto, pela alimentação, uma conduta típica dos animais, a saber: agressividade e medo.

O temperamento social que os Juruna procuram imprimir em seus filhos significa, antes de tudo, AUSÊNCIA DE AGRESSIVIDADE E DE MEDO. Ser sociável é não estar amedrontado e não ser violento.

Para os Juruna, como para muitos outros povos ameríndios, a dicotomia natureza-cultura foi construída – e é constantemente reforçada – através de inumeráveis signos diacríticos, porque não há nada substancial que as separe e diferencie. Os seres humanos não são suficientemente distintos do restante dos seres do mundo para poder estabelecer, sobre diferenças, uma singularidade moral ou um sistema de valores autônomo que sustente ou dê razão a algum tipo de humanismo. Não há a menor possibilidade de humanismos quando os porcos são tão pessoas quanto os seres humanos.



Baseado em um artigo de Manuel Gutiérrez Estévez

terça-feira, 19 de maio de 2009

PINKUYLLU e WAK'RAPUKU

A terminação quéchua YLLU é uma onomatopéia. Yllu representa, numa de suas formas, a música que produzem as pequenas asas em vôo; música que surger do movimento dos objetos leves. Essa voz se assemelha a outra, mais vasta: ILLA. Illa designa certa espécie de luz e os monstros que nascem feridos pelos raios da lua. Illa é um menino de duas cabeças ou um bezerro que nasce decapitado; ou um penhasco gigante, todo preto e brilhante, cuja superfície aparecesse atravessada por um meio largo de rocha branca, de luz opaca; illa também é uma espiga cujas fileiras de milho se entrecruzam ou formam redemoinhos; são illas os touros místicos que habitam ao fundo dos lagos solitários, das altas lagoas rodeadas de sapé, povoadas de patos negros. Todos os illas provocam o bem e o mal, mas sempre em grau extremo. É possível tocar um illa e morrer ou alcançar a ressurreição. Essa forma de illa tem parentesco fonético e certa comunidade de sentido com a terminação yllu.

Chama-se tankayllu ao travão zumbidor e inofensivo que voa no campo libando flores. O tankayllu aparece em abril, mas nos campos regados pode-se ver em outros meses do ano. Agita suas asas com uma velocidade louca, para elevar seu pesado corpo, seu ventre excessivo. As crianças o perseguem, dão-lhe caça seu corpo alongado e escuro acaba numa espécie de aguilhão que não só é inofensivo como doce. As crianças lhe dão caça para beber o mel de que está untado esse falso aguilhão. O tankayllu não pode ser caçado facilmente, pois voa alto, procurando a flor dos arbustos. Sua cor é estranha, tabaco escuro; no ventre tem umas riscas brilhantes; e como o ruído de suas asas é intenso, forte demais para sua pequena figura, os índios pensam que o tankayllu traz no corpo algo mais que sua vida. Por que leva o mel na tampa do ventre? Por que suas pequenas e débeis asas movimentam o vento até agitá-lo e mudá-lo? Como sucede que o ar sopra sobre o rosto de quem olha para ele quando passa? Seu pequeno corpo não pode dar-lhe tanta força. Ele remexe o ar, zumbe como um ser grande; seu corpo felpudo desaparece na luz, elevando-se perpendicularmente. Não, não é um ser malvado; as crianças que bebem seu mel sentem no coração, durante toda a vida, como o roçar de um hálito morno que as protege contra o rancor e a melancolia. Mas os índios não consideram o tankayllu uma criatura de Deus como todos os insetos comuns; temem que seja um réprobo. De vez em quando, os missionários pregavam contra ele e outros seres privilegiados. Nas aldeias de Ayacucho houve um dançarino de tesouras que já se tornou legendário. Dançou nas praças das aldeias durante as grandes festas; fez proezas infernais nas vésperas dos dias santos; engolia pedaços de aço, atravessava o corpo com agulhas e ganchos; andava em volta dos átrios com três barretas entre os dentes; aquele danzak’ chamava-se “Tankayllu”. Sua roupa era de pele de condor enfeitada de espelhos.

Pinkuyllu é o nome da flauta gigante que os índios do sul tocam nas festas comunais. O pinkuyllu não se toca jamais nas festas particulares. É um instrumento épico. Não o fabricam de bambu comum nem de carriço, nem sequer de mámak, cana selvagem de uma espessura extraordinária e duas vezes mais comprida que a cana brava. O oco do mámak é escuro e profundo. Nas regiões onde não existe o huacaranhuay, os índios fabricam pinkuyllus menores de mámak, mas não se atrevem a dar ao instrumento o nome de pinkuyllu, chamam-no simplesmente de mámak, para diferenciá-lo da flauta familiar. Mámak quer dizer a mãe, a germinadora, aquela que dá origem; é um nome mágico. Mas não existe cana natural que possa servir de material para um pinkuyllu; o homem tem que fabricá-lo por si mesmo. Constrói um mámak mais profundo e grave, como não nasce nem mesmo na selva. Um grande bambu curvo. Extrai o coração dos galhos de huaranahuay, depois o curva ao sol e o ajusta com nervos de touro. Não é possível ver diretamente a que entra pelo buraco da extremidade inferior da madeira vazia, só se distingue uma penumbra que brota da curva, um resplendor tênue, como o do horizonte em que o sol se pôs.

O fabricante de pinkuyllu abre os buracos do instrumento deixando aparentemente distâncias excessivas entre um e outro. Os dois primeiros buracos devem ser cobertos pelo polegar e o indicador, ou o anular, abrindo-se a mão esquerda em toda sua extensão; os outros três, pelo indicador, o anular e o mínimo da mão direita, como os dedos muito abertos. Os índios de braços curtos não podem tocar pinkuyllu. O instrumento é tão comprido que o homem médio eu pretende usá-lo tem de esticar o pescoço e levantar a cabeça como para olhar o zênite. Tocam-no em tropa, com acompanhamento de tambores; nas praças, em campo aberto ou nos currais e pátios das casas não no interior dos cômodos.

Só a voz dos wak’rapuku é mais grave e poderosa que o dos pinkuyllu. Mas nas regiões onde aparece o wak’rapuku já não se conhece o pinkuyllu. Os dois servem ao homem em transes semelhantes. O wak’rapuku é uma corneta feita de chifres de touro, dos chifres mais grossos e torcidos. Põem-lhe uma boquilha de prata ou de bronze. Seu túnel sinuoso e úmido é mais impenetrável e escuro que o do pinkuyllu, e, como este, exige uma seleção entre os homens que podem tocá-lo.

No pinkuyllu e no wak’rapuku tocam-se somente canções e danças épicas. Os índios chegam a enfurecer-se cantando as danças guerreiras antigas; e enquanto outros cantam e tocam, alguns se batem cegamente, sangram e choram depois, junto da sombra das altas montanhas, perto dos abismos ou frente aos lagos frios e a planura.

Durante as festas religiosas não se ouve o pinkuyllu nem o wak’rapuku. Os missionários teriam proibido que os índios tocassem nos templos, nos átrios ou junto dos tronos das procissões católicas esses instrumentos de voz tão grave e estranha. Tocam o pinkuyllu e o wak’rapuku no ato de renovação das autoridades da comunidade; nas ferozes lutas dos jovens, durante os dias de carnaval; para a marca do gado; nas touradas. A voz do pinkuyllu e do wak’rapuku os ofusca, exalta-os, desata suas forças; desafiam a morte enquanto o ouvem. Lançam-se contra os touros selvagens, cantando e amaldiçoando; abrem caminhos extensos ou túneis nas pedras; dançam sem descanso, sem aperceber a mudança da luz nem do tempo. O pinkuyllu e o wak’rapuku marcam o ritmo; os comovem e os alimentam; nenhuma sonda, nenhuma música, nenhum elemento chega mais fundo no coração humano.

A terminação yllu significa a propagação dessa classe de música, e illa é a propagação da luz não solar. Killa é a lua, e illapa é o raio. Illaray designa o amanhecer, a luz que brota pelo fio do mundo, sem a presença do sol. Illa não designa a luz fixa, a esplendorosa e a sobre-humana luz solar. Nomeia a luz menor: a claridade, o relâmpago, o raio, toda luz vibrante. Essas espécies de luz não totalmente divinas com as quais o homem peruano antigo pensa ter ainda relações profundas, entre seu sangue e a matéria fulgurante.

José Maira Arguedas, in “Os Rios Profundos”

segunda-feira, 18 de maio de 2009

TEMPO... TEMPO.. TEMPO... TEMPO...

Na tradição ocidental, pode-se dizer que a indagação sobre o significado do ACONTECIMENTO está ligada à constituição de uma disciplina intelectual muito particular: a HISTÓRIA (que implica uma tarefa de descrição de causas com diferentes graus de eficiência, na hipótese genérica de que o sentido se encontra na causa). Já nas culturas ameríndias, por seu turno, o sentido procede da sincronia mais que da diacronia. Ou seja: o sentido de um acontecimento é dado mais por outros acontecimentos sincrônicos, ainda que de natureza diferente, que pelos acontecimentos precedentes da mesma classe.

Em forte contraste com a Civilização Ocidental, o sistema de pensamento maia, por exemplo, baseia-se na distinção entre duas categorias diferentes de temporalidade: o TEMPO CÓSMICO e o TEMPO HISTÓRICO. O primeiro está subordinado aos ritmos cíclicos ou seqüenciais que a profecia se encarrega de determinar; o tempo histórico a longo prazo também tinha, antes da chegada dos europeus, um caráter cíclico (marcado nas grandes estelas de pedra, comemorativas, chamadas de “conta longa”) e o tempo curto referia-se à duração da vida pessoal. Só esse último era entendido como linear, ainda que submetido aos ciclos bons e nefastos determinados pelo TZOLKIN, o calendário divinatório e ritual de 260 dias. O ato da criação teve lugar várias vezes sucessivas e os deuses, à diferença do Javé ausente, periodicamente têm de intervir para renovar e manter a ordem cósmica e social, ou seja, a ordem do tempo. A pedra de toque da ortodoxia estava na ordenação e no sentido to tempo cósmico. As datas fundamentais eram imutável, ainda que, para desespero da cronologia ocidental, essas datas não eram tão importantes e um mesmo acontecimento pode situar-se, com aparente despreocupação, em datas diferentes, desde que todas tenham o mesmo sentido e reportem ao acontecimento em questão, com suas características distintivas.

Se observamos os povos de língua nahuatl, encontramos idéias e categorizações análogas. Também aqui, no altiplano central do México, o mesmo nome de ano se repete a cada XIUHMOLPILLI ou “ligadura dos anos”, que podemos chamar de “ciclo dos mexicanos”: um período de 52 anos. Um mesmo ano, ou seja, um ano com o mesmo nome e significado para a vidas social se repete a cada 52 anos. Por exemplo: ACATL pode ser o ano ocidental de 1519, 1467, 1259 ou 999. A forma de nomear o ano impedia saber de qual de todas essas possíveis datas estavam falando. A concepção seqüencial ou cíclica do tempo produz uma percepção muito particular da História: uma classe de narrações que permanecem ordenados temporalmente em um ciclo único, não funciona a partir do princípio “causa e efeito”, mas constituem uma espécie de repertório ordenado tematicamente. Esta forma de representação do passado, dificulta – e até impossibilita – o uso do conceito de “causa histórica”; os acontecimentos não são explicados por seus antecedentes, mas pelo contexto cósmico que corresponde a sua posição calendárica e que está refletido em seu próprio nome.

O que parece ser mais relevante, é destacar o diferente valor e significado de “acontecimento” - de qualquer acontecimento - nas concepções do tempo cíclico e linear. Na concepção linear de tempo, um acontecimento é sempre único, irrepetitível e de uma singularidade tal que pode servir para marcar períodos temporais. Sua posição epistêmica é central e todo esforço intelectual da historiografia européia está direcionado à sua compreensão, tendo como resultado uma classe particular e variável de relato que se chama “História”. Para uma concepção cíclica do tempo, um acontecimento é algo previsto, repetido periodicamente e para cuja compreensão se utiliza uma mistura de arte verbal e jogo lógico, que chamamos de “Profecia”.

Para as culturas andinas, que não usavam escrita antes da chegada dos espanhóis, as fontes são mais difíceis de manejar. No entanto, alguns estudos – como o de Olívia Harris e Thérèse Bouysse-Cassagne – sobre o sentido de PACHA (confluência do tempo e do espaço) no pensamento aymará, nos permite fazer algumas inferências interessantes. Prece que podemos distinguir três etapas ou IDADES sucessivas no tempo da humanidades.

A primeira etapa é a IDADE DO TAYPI. Evoca a diversidade e a multiplicidade através de uma lógica que relaciona os humanos, seus deuses e seus lugares de origem (lagos, fontes, cavernas, etc) com um centro primordial ou TAYPI.

À Idade do Taypi, segue-se a IDADE DO PURUMA. Trata-se de um período de luz difusa, como o anoitecer, quando o céu se obscurece. PURUN ou PURUMA é o nome das terras desérticas. A essa noção associa-se, também, a virgindade e, por extensão, a vida selvagem e livre. Assim, a “mulher virgem”, “a vicunha sem casar”, “a planta selvagem” são conhecidos como “puruma”.

Qual é a relação conceitual entre essa Idade do Puruma, caracterizada por sua situação liminar, e a Idade do Taypi, o centro? O mundo em que vivemos é um espaço caracterizado por forças centrífugas, que vão passando de sua máxima concentração no taypi à sua máxima dispersão nas bordas, da vida à morte, do social ao selvagem. As forças do puruma, que operam nas bordas, dividem o que normalmente é único: partem, duplicam e separam formando pares simétricos.

A etapa seguinte é a IDADE AUCA PACHA. A palavra “auca”, segundo Bertonio, significa “inimigo”, mas não no sentido bélico. Tristan Platt desenvolveu amplamente o conceito de YANANTI ou YANANI, que se refere às coisas que sempre estão juntas, como os dois olhos, as duas mãos, os dois sapatos ou uma junta de bois. Os elementos auca também são pares, mas à diferença dos yananti, não podem coincidir, se repelem, se anulam e contrapõem mutuamente, como o dia e a noite, a água e o fogo... como os inimigos. No pensamento aymará estão previstos dois possíveis caminhos de reconciliação dos contrários: o ENCONTRO e a ALTERNÂNCIA – expressos pelos conceitos TINKU e KUTI.

TINKU é o nome das lutas rituais nas quais se encontram dois bandos opostos, freqüentemente chamados de ALASAYA (os de cima) e MASAYA (os de baixo). Na terra aymará, estes combates rituais se praticam desde uma época muito remota. Ao permitir que as forças de ambas as metades se meçam e que oponentes se sujeitem, o tinku pretende realizar o ideal Yananti: como duas metades perfeitas em torno de um taypi.

KUTI é outra tipo de relação para pensar e ajustar os contrários. Kuti remete a conceitos como “volta”, “mudança” ou “turno”. Diz-se que o sol cumpre uma revolução como KUTI durante o solstício. Todo um mundo, todo uma era, um PACHA, pode mudar de sentido e isto é o que se chama PACHAKUTI. Quando um inca morre, se produz um pachakuti. Quando os espanhóis chegaram aos Andes, aconteceu um pachakuti.


Se usarmos nossos termos mais correntes para sintetizar essa idéia, podermos dizer que a história está constituída de ACONTECIMENTOS TINKU e ACONTECIMENTOS KUTI; periodicamente o espaço-tempo muda de orientação por um pachakuti. Forçando um tanto o significado originário, poderíamos dizer que o sentido dos acontecimentos são dados por sua inclusão em uma dessas duas categorias: a que implica em intercâmbio ou igualação dos contrários em busca do equilíbrio, ou a que significa uma mudança de rumo, de orientação, uma renovação cíclica. Em todo caso, nenhum desses conceitos ajuda a produzir dos acontecimentos um relato causal que, em na tradição cultural ocidental, poderia ser algo semelhante ao que chamamos “história”.

De modo geral, creio que podemos dizer que o que os índios contam sobre seu passado e, sobretudo, a maneira como contam, a estrutura argumental de seus diversos gêneros literários, torna-se opaca para os europeus. Não é fácil perceber as relações causais entre os diferentes episódios de um mesmo “relato” e nem sequer se pode entender a continuidade narrativa de uns personagens que, ao longo da trama, mudam de nome, de características, o que escondem seus nomes, frases ou seqüências, acontecimentos de sentido obscuro, que parecem inarticulados entre si ou incoerentes.


Baseado no texto de Manuel Gutiérrez Estévez

sábado, 16 de maio de 2009

A URBANIZAÇÃO AMAZÔNICA

Após dez anos de pesquisas arqueológicas nos vastos chacos do Alto Xingu a Beni (Bolívia), cientistas constataram que, antes de Colombo, os povos dessa região moravam em conglomerados comparáveis a algumas cidades da Grécia ou da Idade Média. Há 2.000 anos, essas cidades de até 50 hectares tinham muros, praças e centros cerimoniais e estavam ligadas por uma densa rede de estradas. Seus habitantes desmatavam, construíam canais, tinham roças, pomares, tanques para criar peixes e tartarugas, pescavam em larga escala e faziam uso contínuo e sistemático da terra.

Na região amazônica de Beni, arqueólogos observaram, de avião, o traçado de canalizações e divisórias de roças muito bem definidas, além das intrigantes "terras negras" fruto da adubação.

O antropólogo Carlos Fausto e a lingüista Bruna Franchetto, ambos do Museu Nacional, foram dois dos principais pesquisadores no Alto Xingu. Em seu livro “Os Índios antes do Brasil”, explica que o planejamento urbano amazônico pré-colombiano era mais complicado que o da Europa medieval. Ele incluía “uma distribuição geométrica precisa.

Ficou provado que a Amazônia pré-colombiana viu florescer remarcáveis concentrações urbanas. Na plenitude de sua expansão, a civilização do Xingu por exemplo, foi povoada por 50 mil habitantes, dotados de autoridade política e religiosa que governava as cidades menores a partir das principais.

As estradas podiam ter entre 20 e 50 metros de largura e foram identificadas algumas com 5 quilômetros de extensão. Para atravessar alagamentos foram construídas pontes, elevações de terreno e canais para canoas. Também foram apontadas barragens e lagos artificiais.


Os pesquisadores detectaram perto de 15 grupos principais de aldeias, espalhados numa superfície de 2 milhões de hectares. As tradições orais dos índios kuikuro que habitam na região orientaram as pesquisas e foram confirmadas pelos achados: existiram civilizações política, religiosa, econômica e culturalmente definidas. “Os kuikuros têm um nome para cada uma das aldeias”, contou Fausto.

O arqueólogo Heckenberger, autor principal do estudo, sublinha que aquilo que até agora se achava ser “uma floresta tropical virgem”, de fato é uma região altamente influenciada pela ação humana.

Os trabalhos no Alto Xingu e no Beni visaram apenas a ciência. Porém, apurando a verdade deram um soberano desmentido ao mito ambientalista e comuno-tribalista, segundo o qual seria próprio à cultura dos índios da Amazônia viverem como selvagens, nus, vagueando pelo mato, sendo por natureza incapazes de constituir uma civilização. A partir de dados científicos pode se sustentar com tranqüilidade que a lamentável situação em que vivem certos índios não é nenhuma fatalidade cultural, mas sim o resultado da destruição de uma cultura mais alta.

sábado, 9 de maio de 2009

KAY PACHA

Contam os sábios andinos que Wiraccocha resolveu criar um casal de irmãos para civilizar o mundo e organizar os homens. Assim, Manco Capac e Mama Ocllo nasceram da espuma do Lago Titicaca, portando um cetro de ouro (um raio de luz do Sol). Eles deviam andar até o lugar em que esse cetro ficasse perfeitamente em pé sobre a terra e, depois, se fundisse com o terreno até desaparecer. Ali deveriam construir uma cidade, que seria o começo de um grande povo. E, então, Manco Capac e Mama Ocllo fundaram QOSQO – o Umbigo do Mundo.

Para começar a organização, Manco Capac determinou que seus acompanhantes deveriam ocupar a parte alta do vale, e chamou aquela área de HANAN QOSQO (Alto Cuzco). Mama Ocllo, por sua vez, mandou que os seus acompanhantes ocupassem a parte baixa do vale, e chamou de HURIN QOSQO (Baixo Cuzco). No ponto em que Hanan Qosqo e Hurin Qosqo se encontravam, eles ergueram HAUKAYPATA - a praça central de Cuzco, onde aconteciam todas as festas, festivais e rituais; o coração da nova cidade. Foi essa organização que originou o conceito de YANANTIN: a dualidade ontológica de todas as coisas e a complementaridade das duas partes, de forma que uma não existe sem a outra. A partir de então, tudo que existem passo a ter um hanan e um hurin.

Javier Lajo, sociólogo peruano, considera essa visão a principal diferença entre os povos andinos e a civilização ocidental. Enquanto, segundo ele, “o conceito primário da estrutura do pensamento ocidental – dos neoplatônicos a Marx – é a concepção de uma unidade criadora, do ‘unitarismo’ ou de um ‘criador’ de tudo a partir de uma origem única – seja ele a matéria, o espírito, a idéia, Deus, etc. – formando um sistema impar ou unitário, onde a unidade cria sua medida e mede com ela todas as suas emanações, com a finalidade de apropriar-se delas ou reincorporá-las, o sistema dual ou binário andino oferece duas medidas; nesse caso, a única solução de relação que temos é a proporcionalidade entre elas”. Entendendo como “proporcionalidade” os deveres sociais de reciprocidade. “Esta é a base, a viga mestra do sistema de pensamento e a sabedoria fundamental da cultura andina: a dualidade que se complementa e se proporciona em um DUOVERSO, paralelo e combinado”.

A dualidade de tudo está refletida também na noção dos três mundos: UKU PACHA, KAY PACHA e HANAN PACHA. Pacha é um termo quéchua que significa “totalidade espácio-temporal, cosmo, realidade”. UKU PACHA é, assim a totalidade de baixo, o cosmo interior, subterrâneo, a água, a terra; a ancestralidade, a herança e, nesse sentido, o passado, aquilo que nos sustenta, o chão. HANAN PACHA, por sua vez, é um outro universo: a totalidade de cima, o céu, a serra, o sol, o que nos dá a vida, os objetivos, os sonhos e projetos e, nesse sentido, aproxima-se daquilo que chamamos de futuro. No ponto de encontro entre esses dois universos, entre passado e futuro, entre ancestralidade e projetos, entre o antigo e o novo, está KAY PACHA – o mundo do aqui e agora, o presente. A realidade objetiva, visível e atual é, portanto, o resultado de encontro daquelas duas forças poderosas, dos DOIS UNIVERSOS (pacha).

Essas forças são representadas em todos os lugares pelos templos quadrados na parte alta das cidades (Hanan), ligados a Hanan Pacha e dedicados ao PACHATATA (Pai Cósmico), e nos templos circulares, na parte baixa, ligados a Uku Pacha e dedicados à PACHAMAMA (Mãe Cósmica). Juntos, eles representam ILLAWI – o par perfeito, o casal primordial, os irmãos divinos (Manco Capac e Mama Ocllo) que atuam juntos, em cooperação e reciprocidade, ajustando-se constantemente um ao outro, produzindo a realidade atual. Essa realidade é, então, a HAUKAYPATA CÓSMICA: uma ponte (chakana), uma porta (punku) e um ponto de encontro entre os dois universos; o trânsito cognoscível entre os mundos. É onde o Pachatata e a Pachamama se dão as mãos para caminharem juntos. Kay Pacha nos “recorda” o Uku Pacha de onde viemos, mas também “vê” o Hanan Pacha para onde vamos. E daí surge a noção de “tempo” para os andinos: WIÑAY – a realidade é eterna! É um pertétuo oscilar entre a concentração máxima (Uku Pacha) e a expansão máxima (Hanan Pacha).

A virtude de Uku Pacha é o MUNAY – o Amor – e a virtude de Hanan Pacha é o YACHAY – a Sabedoria. E isso faz de Kay Pacha – a realidade – um misto entre sentir e saber, emoção e razão e, portanto, o mundo de LLANKAY : o trabalho construtivo, realizado com amor e sabedoria.

Kay Pacha é o caminhar entre esses dois mundos. Por isso seu símbolo é o QUAPAQ NAN – o caminho dos sábios, aprendendo e praticando a proporcionalidade entre tudo que existe. A nossa realidade é, portanto, a esfera da reciprocidade, do cuidado mútuo, do respeito a todas as diferenças, do aprender e do ensinar, do diálogo e da partilha.


sábado, 2 de maio de 2009

UNASUL


Há um ano atrás, no dia 23 de Maio de 2008, em Brasília, durante a III Cúpula de Chefes de Estado dos doze países da América do Sul, foi assinado o Tratado Constitutivo da União das Nações Sul-Americanas – UNASUL.
A sede foi estabelecida na cidade de Quito, capital do Equador e a presidência será alternada entre os presidentes dos paises signatários, com um mandato de um ano. A primeira representante eleita foi Michelle Bachelet, Presidente do Chile.

Ao saudar a criação da União das Nações Sul-Americanas, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou que o novo organismo realiza um sonho maior que o de Simon Bolívar, o herói da independência latino-americana e defensor da integração entre os países da região: "Está acontecendo uma coisa extraordinária. Nós criamos mais do que Bolívar quando bradou a criação da Grande Colômbia; criamos a Grande Nação Sul-Americana. Uma América do Sul unida mexerá com o tabuleiro de poder no mundo. Nossa América do Sul não será mais um mero conceito geográfico. A partir de hoje é uma realidade política, econômica e social, com funcionalidade própria".
O tratado cria uma organização internacional dotada de personalidade jurídica e estabelece seus atributos institucionais, além de definir metas para ações futuras em diferentes áreas, a saber:
  • cooperação econômica e comercial;
  • integração energética e desenvolvimento da infra-estrutura;
  • integração industrial e produtiva;
  • integração financeira;
  • promoção da diversidade cultural;
  • intercâmbio de informação e de experiências em matéria de defesa; e
  • segurança pública.

HISTÓRICO
A idéia de uma união dos países sul-americanos surgiu em 2000, durante a I Cúpula de Presidentes das Nações Sul-Americanas, em Brasília, quando o então presidente Fernando Henrique Cardoso sugeriu a união do Mercosul com o Pacto Andino. Sua proposta apontava para a criação de uma “Comunidade Sul-Americana de Nações - CSN, como uma alternativa de mercado sul-americano a ser inserida no mundo ao mesmo tempo que ampliar e potencializar a produção da região.

Em 8 de dezembro de 2004, na cidade de Cuzco, no Peru, durante a 3ª Reunião de Presidentes da América do Sul, foi redigida a Declaração de Cuzco, que criou as bases para a UNASUL. O projeto criado nesta oportunidade ganhou o nome de Casa – Comunidade Sul-Americana de Nações. Naquela ocasião, foi decidida também a criação do Parlamento Sul-americano dando um caráter de articulação política.

Na reunião ocorrida em Cochabamba, na Bolívia, em 2006, foram estabelecidas as diretrizes para alcançar uma integração continental, a saber: a superação das assimetrias para se conseguir um processo eqüitativo; um novo contrato social sul-americano a partir de uma integração com foco humanitário, articulado como uma agenda produtiva; integração energética; infra-estrutura para a interconexão dos povos da região que atenda aos critérios de desenvolvimento social e econômico sustentáveis; cooperação econômica e comercial a fim de promover o crescimento, o desenvolvimento e o bem estar de todos; integração financeira sul-americana, bem como industrial e produtiva; uma cidadania sul-americana que progressivamente reconheça os direitos civis, políticos, trabalhista e sociais para o cidadão; reconhecimento, proteção e valorização ao patrimônio cultural nacional e comum sul-americano; cooperação em matéria de defesa, entre outros.

Em 2007, durante a 1ª Reunião Energética da América do Sul, na Venezuela, o nome foi modificado para UNASUL e foi criada uma Comissão de Altos Funcionários, com sede na cidade do Rio de Janeiro, para assegurar a execução do plano e a implementação das políticas tomadas por cada governo, atreladas às metas estabelecidas, tendente à construção da UNASUL. Este organismo foi apoiado por organizações regionais pertinentes e tornou-se responsável pelo estabelecimento de Grupos de Trabalho nas áreas de infra-estrutura, integração energética e políticas sociais, para dessa forma caminhar em direção do cumprimento das diretrizes e do sucesso da União.
Segundo o jornalista, Beto Almeida, da Rede Telesul, de Brasília, “o nascimento da UNASUL, permite passar a um novo patamar para a tomada de medidas estratégicas para uma integração que já se tentou fazer em vários momentos da história, como, por exemplo, nos governos de Vargas e Perón e de Ocampo, no Chile, iniciativa boicotada pelo imperialismo que derrubou tanto Vargas como Perón em 1954 e 1955 , respectivamente. Por isso é fundamental considerar que a UNASUL tem um componente antiimperialista muito forte, que necessitará uma unidade cada vez maior entre os governos progressistas membros, uma cada vez mais articulada relação orgânica com os movimentos sociais e os sindicatos”.

ORGANIZAÇÃO
A UNASUL terá três órgãos deliberativos:
  • Conselho de Chefes de Estado e de Governo, com encontro anual;
  • Conselho de Ministros de Relações Exteriores, com encontro semestral; e
  • Conselho de Delegados, com encontro bimestral
Além disso, o tratado criou uma secretaria permanente, a SECRETARIA-GERAL, com sede em Quito, Equador, e prevê a criação de um PARLAMENTO SUL-AMERICANO, com sede em Cochabamba, Bolívia.

Durante a 36ª Cúpula do Mercosul, o presidente equatoriano Rafael Correa propôs a criação de uma MOEDA ÚNICA REGIONAL para transações comerciais entre os países do UNASUL, e o Presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva propôs um BANCO DO SUL para integrar a América do Sul.
Há, ainda, a proposta da criação de um CONSELHO SUL-AMERICANO DE SEGURANÇA E SAÚDE, com o objetivo de elaborar programas conjuntos financiados pelos governos.

Em 16 de Dezembro de 2008, em Santiago do Chile, foi criado, também, o CONSELHO DE DEFESA SUL-AMERICANO – CDS, proposto pelo Presidente Lula, com o objetivo de incentivar a cooperação militar e integrar as bases industriais de defesa, além de resolver problemas entre os países membros para consolidar a região como uma zona de paz, estabilidade e cooperação. Os países sul-americanos desenvolverão quatro linhas de trabalho: políticas de defesa; cooperação militar, ações humanitárias e operações de paz; indústria e tecnologia da defesa, e formação e capacitação. Ao final do encontro, os ministros presentes aprovaram uma declaração, que prevê a elaboração de uma doutrina de defesa comum, a realização de um inventário da atual capacidade militar dos membros da UNASUL, o acompanhamento dos gastos do setor de defesa da região, e a criação de um Centro de Estudos Estratégicos de Defesa – CSEED, com sede em Buenos Aires, na Argentina, responsável pela criação e manutenção de um repositório de dados relativos a gastos de defesa e indicadores econômicos associados a esse setor, para subsidiar a análise e a propositura de novas políticas de defesa.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

LLANK'AY - se faz, faça bem



"Com sabedoria, alegria e energia, trabalha por tua família, pela tua comunidade, pela tua nação, pela Mãe-Terra"



Desde os primórdios da civilização andina, o trabalho está intimamente ligado às noções de AYNI (reciprocidade) e de AYLLU (comunidade): o intercâmbio de força de trabalho entre pessoas ou grupos, dentro da comunidade (AYLLU), numa ajuda recíproca (AYNI) para arar a terra ou erguer alguma edificação (casa, cerca ou armazém). Cabia a quem estava sendo ajudado, na forma de ayni, oferecer alimento, bebida e folha de coca aos trabalhadores. E ficava, por sua vez, na dívida de ajudá-los, da mesma forma, quando precisassem.

Além desse esquema de trabalho por ajuda mútua entre, existiam outros dois esquemas tradicionais. O primeiro deles é chamada de MINGA (“trabalho coletivo”) refere-se às obras importantes para toda a comunidade e que, portanto, deveria ser executada por todos – tais como a construção de canais de irrigação, pontes, templos, locais de charqueamento, armazéns, currais, etc, etc. Também era entendido como minga, ou seja, RESPONSABILIDADE COMUNITÁRIA, a construção da casa para um novo casal e o cuidado das terras dos órfãos, inválidos, viúvas, enfermos e anciãos da Comunidade.

O segundo tipo é chamado de MITA, uma organização coletiva de trabalho entre vários Ayllu (comunidades) para a construção de estruturas que fossem necessárias a todos eles. Mita era, portanto, o trabalho estatal: construção de estradas, pontes comunais, depósitos de víveres ou produtos artesanais (collcas), pousadas (tambos) e templos regionais de culto. Esse tipo de trabalho era organizado pelo Inca, que se tornava, então, responsável pela alimentação, bebida, roupa, instrumentos de trabalho, produtos artesanais e folha de coca para os trabalhadores, bem como de suas famílias pelo período em que estivessem a serviço do Estado. Normalmente, ao final do trabalho, cada “mitayo” (trabalhador em regime de mita) recebia uma cota extra de alimentos e tecidos como agradecimento. Como, durante sua permanência nas mitas, a comunidade se responsabilizava pelo trabalho em suas terras (pela obrigatoriedade da minga), os bens recebidos pela mita se tornavam uma grande economia familiar e, portanto, um benefício e não uma exploração. Estavam livres da mita as mulheres, crianças, anciãos e inválidos sem qualquer prejuízo de seus direitos e status dentro da comunidade e do Estado.


As formas coletivas de trabalho eram organizadas pelos líderes: o KURACA (líder comunitário) no caso da minga e o INCA (ou seu representante local) no caso da mita. Mas por não ser um trabalho escravo, a adesão não era automática: ela preciso que o líder – aquele que estava convocando para um trabalho – explicasse exatamente o que queria e porque era necessário. E qualquer pessoa era livre para se recusar participar, porém isso o colocava fora do “ayni” e, portanto, não poderia mais contar nem pedir ajuda aos líderes em caso de necessidade pessoal ou da sua família. O critério do “ayni” estabelecia que todos que participassem do trabalho fossem beneficiários dele, naquele momento ou no futuro. Assim, em um período de fraca produção de alimentos, podia pedir ao kuraca e ao inca que lhe provesse de tudo que precisasse para viver até a próxima produção. Para isso serviam os bens armazenados, tanto no Ayllu quanto no Império.

Essa organização sem propriedade individual, sem mercado, sem moeda, sem preços, sem rendas privadas, onde a oferta é regulamentada, a demanda simplificada e onde o funcionalismo permite a avaliação das necessidades e das possibilidades de produção e a construção de estoques reguladores em benefício de todos os trabalhadores, garantiu que o maior império do mundo não conhecesse a pobreza ou a fome. O trabalho como ayni (reciprocidade ou ajuda mútua), garantindo a justiça e a redistribuição dos bens produzidos comunitariamente.