sábado, 12 de maio de 2012

RITO ANTROPOFÁGICO

Alberto Mussa, fez uma interessante reconstrução da mitologia e das etapas do RITO ANTROPOFÁGICO entre os Tupinambá, a partir de textos dos cronistas que conviveram com eles no período de início da colonização européia - Thevet, Pigafetta, Pe. Manoel da Nóbrega, Pe. Anchieta, Staden, Lévy, Gabriel Soares de Souaza, Gândavo, Cardim, Anthony Knivet, Francisco Soares, Jácome Monteiro, Abbeville, Yves d'Êvreux, Vicente do Salvador e Simão de Vasconcelos.

Segundo Mussa, no rito canibal, o inimigo, antes de morrer, era "transformado" em cunhado. Ou seja: ganhava uma mulher da parentela de seus futuros matadores. É, portanto, pefeitamente lógico que tenha sido um cunhado quem praticou o primeiro banquete canibal, pois o que sucedeu posteriormente foram vinganças contra esse cunhado mítico.Parece que a injúria sofrida pela irmã tenha sido o estupro incestuoso.

O mito tupinambá - que Mussa chamou de "Meu destino é ser onça" - é fundamentalmente uma exaltação aos valores canibais.

Os Tupinambá dividiam a história do universo em três períodos. O mundo primitivo era perfeito: não havia morte, não havia incesto, não havia trabalho. Mas a imprudência humana provocou um enorme cataclismo, do qual apenas um homem se salvou: o Pajé do Mel.

A segunda humanidade sofreu muito inicialmente, mas em contrapartida via surgir uma classe de homens especiais - chamados Maíras -, grandes feiticeiros que introduziram a cultura, porque podiam ir ao céu e se comunicar com o Velho, grande criador. Esses Maíras podiam guiá-los à terra-sem-mal, seção da terra preservada da primeira destruição, que por isso mantinha suas características originais.Foi nesse período que se completou a formação do céu, com todas as estrelas e constelações que existem hoje.

Ainda assim, a humanidade foi imprudente: matou e expulsou da terra seus mais poderosos Maíras, além de provocar o dilúvio.

A terceira humanidade, que descendem dos dois casais que se salvaram, se viu privada da possibilidade de chegar à terra-sem-mal em vida, por já não haver quem conhecesse o caminho até lá. a única solução restatne era garantir tal acesso depois da morte - o que se obtinha com a prática canibal.

Todavia, a aniquilação do mundo era provável e iminente: a Onça poderia comer a Lua a qualquer momento, como a qualquer momento a pedra celeste podeira ser destruída. Isso fazia a opção canibal ser urgente. Os Tupinambá deveriam matar e comer, o quanto antes, o maior número de inimigos possível - para não correrem o risco de morrer sem se ter capacitado a enfrentar as provas da morte. É importante insistir num detalhe: o destino do Tupinambá era ser onça, era ser canibal, porque já não era possível atingir a terra-sem-mal em vida.

Os movimentos esporádicos registrados pelos cronistas, em que grupos indígenas adentravam os sertões buscando a terra-sem-mal, eram certamente decorrentes da iniciativa individual de caraíbas históricos que - profundamente perturbados pela presença européia - passaram a interpretar os mitos de uma maneira pessoal, particular.É interesante perceber nos textos, ainda que indiretamente, que tais soluções não eram aceitas pela maioria. A saída correta - canônica - seria matar, comer, ser morto e vingado.

Mas o canibalismo não era só isso. Na verdade, o sistema tem um objetivo muito mais alto: o de eliminar do mundo o conceito de mal. Entre os povos de língua tupi, no interior da tribo o nível de violência era baixíssimo. Sempre que ocorria uma espécie de agressão (o que incluia homicídios eventuais), havia apenas duas soluções: a compensação, através da vingança, ainda que fosse sobre um parente do agressor; ou a cisão da tribo em duas metades inimigas, que passariam a se canibalizar - dando à vingança um caráter permanente.o desejo de vingança é absolutamente natural - existia até no Velho, que destruiu a primeira humanidade quando se sentiu traído. Todavia, tal conceito implica logicamente a admissão de que o ato a ser vingado é um ato negativo, um ato mau. Quando um tupinambá matava, sabia que fazia o mal, porque sua atitude dava à parte contrário um direito legítimo de vingança. Mas se no plano imediato um homicídio tinha um valor negativo, o canibalismo o transfigurava, simbolicamente, em algo positivo. No jogo canibal, cada grupo depende totalmente de seus inimigos, para atingir, depois da morte, a vida eterna de prazer e alegria. O mal é, assim, indispensável para a obtenção do bem. O mal é o próprio bem!

Todo ritual é a dramatização de um mito, ou ao menos tem esse drama mítico como base. No caso Tupinambá, o mito é aquele citado no início: um irmão injuriou uma irmã e o cunhado deste o matou e comeu, dando à família do cunhado o direito (e a obrigação) de vingá-lo, matando e comendo alguém da família do primeiro. Assim, a função, os gestos, a ornamentação simbólica as personagens atuantes no rito canibal devem corresponder aos de personagens do mito a ser revivido no rito. E podemos indentificar no rito canibal as seguintes personagens, todas animais: ajuru (papagaio), guará vermelha (pássaro de penas vermelhas), inambu (codorna, de ovos esverdeados), muçurana (a única espécie de cobra canibal no Brasil), nhandutinga (ema-branca), suaçu (o veado) e uiruçu (a harpia).

Buscando uma reconstrução do rito canibal, a partir daqueles cronistas, Alberto Mussa traça o seguinte resumo:

1 - Um dos guerreiros faz, em campo de batalha, um prisioneiro, que passa a lhe pertencer.

2 - O prisioneiro é levado ao túmulo de algum parente do captor, para "renová-lo", o que inclui a limpeza dos objetos do morto lá depositados.

3 - O prisioneiro recebe uma esposa. Se tiver filhos com ela, eles também serão executados.

4 - Depois de algum tempo (que pode levar anos) em que o prisioneiro vive como se fosse um membro da tribo, marcam a data da excecução.

5 - No primeiro dia dos ritos, a muçurama - corda de algodão - é pintada de branco e levada para a oca do captor da vítima.

6 - Os homens que irão participar dos ritos da execução têm o corpo pintado com jenipapo e coberto de penas vermelhas, o rosto coberto com pó de casca de ovos verdes de inambu, a cabeça ornada com um cocar de penas.

7 - As mulheres que também irão participar dos ritos, paramentam-se da mesma maneira.

8 - Mulheres e homens enfeitados dançam, percorrendo as ocas.

9 - Outro grupo de mulheres, indicadas pelo captor, se pintam de jenipapo.

10 - A vítima tinha a parte da frente da cabeça raspada e o corpo e rosto pintados de jenipapo.

11 - O segundo grupo de mulheres - pintadas de jenipapo - passam a noite ao lado da vítima, entoando cantos de vingança.

12 - No segundo dia, acende-se uma enorme fogueira, como uma cabana de bambu, em torno da qual homens e mulheres dançam, com flechas apoiadas no ombro.

13 - A vítima fica a distância, atirando objetos.

14 - No terceiro dia, homens e mulheres dançam acompanhados de flautas (sem cantigas) e batendo o pé no chão.

15 - Na véspera da execução, a vítima é conduzida a um rio, onde lhe fazem a barba

16 - Na volta, a vítima é assaltada e luta com um ou dois homens. Ou, num outro rito, a vítima é solta e tem que passar por um corredor formado por homens paramentados com enduapes de pena de ema-branca e, às vezes, sapatos de algodão.

17 - Depois de recapitulado, a vítima é conduzida até um grupo de mulheres, que trazem a muçurama e a amarram em seu pescoço.

18 - Uma mulher o conduz e as demais cantam: "Somos nós que estiramos o pescoço do pássaro" e "se tu foras papagaio, voando fugirias".

19 - A esposa da vítima segue atrás, fornecendo-lhe jenipapos e flechas rombudas que o marido atira no resto da tribo, como vingança.

20 - Algumas mulheres ativam nela penas de papagaio, indicando que não poderia mais escapar da execução.

21 - Algumas mulheres se empluvam e põem enduape, simulam um combate e passam de quatro em quatro diante da vítima, batendo com a mão na boca.

22 - Outro grupo de mulheres traz a ibirapema (espada de madeira maciça) e a adorna com casca de ovo verde de inambu, dançando depois ao redor da arma, tudo diante da vítima.

23 - As mulheres que ornaram a ibirapema pintam o corpo da vítima com jenipapo e o cobrem de penas, em geral vermelhas, tingem os pés de urucu e enfeitam o rosto com casca de ovo verde de inambu.

24 - A vítima toma cauim com o resto da tribo e dança com eles a "Dança do Veado".

25 - No dia da excecução, levam a vítima para o centro da taba e passam a muçurana do pescoço para a cintura, quando sua esposa chora e se despede.

26 - o matador sai da oca, com um cocar de penas (às vezes amarelas), um "diadema" rubro, também de plumas, colares de conchas, braceletes e tornozeleiras de penas (as vezes amarelas), enduape, manto de penas vermelhas sobre os ombros, rosto pintado de urucu e corpo de branco (ou de várias cores).

27 - Os acompanhantes do matador o seguem pintados de branco.

28 - O matador imita o ataque de uam ave de rapina - como a harpia.

29 - Um grupo de mulheres traz a ibirapema e passea com ela, para que os homens possasm tocá-la.

30 - A ibirapema é entregue ao matador

31 - Um ancião, paramentado, retoma a ibirapema e, depois de passá-la entre as próprias pernas, fazia discurso para a vítima e devolvia a arma ao matador.

32 - O matador insultava a vítima, que respondia no mesmo tom, sem mostrar medo, afirmando que sues parentes iriam vingá-lo.



33 - O matador dava golpes para derrubar a vítima, sendo o último na altura da nuca, matando-o.

34 - O matador, eviando por os pés no chão, às vezes com sapatos de algodão, passa pelo meio de um arco distendido (pelo ancião que consagrou a ibirapema) diante da entrada da sua oca e se recolhe à rede, onde fica por alguns dias, sem comer alimento salgado e bebendo apenas água.


35 - O corpo da vítima é retalhado e comido.


36 - Dias depois, o matador anuncia seu novo nome e recebe no corpo incisões de dentes de cotia.

Texto de Alberto Mussa, no livro "Meu Destino é ser Onça"