segunda-feira, 27 de agosto de 2012

KA'A I NHEMONGARAI - batismo da erva-mate


O Tekoa Pyau, aldeia guarani em Pirituba, nos últimos dez anos tem atraído muitos novos moradores, parentelas, em decorrência da presença de uma forte liderança religiosa. Esta comunicação diz respeito à presença da cerimônia da erva-mate que tem se realizado duas vezes ao ano, nesses locais. Recriam-se valores simbólicos cultivados como saberes tradicionais e significados relativos a vida humana.Entendemos que o impacto decorrente da presença das políticas públicas de educação, saúde, moradia, subsistência que atingem os indígenas nos últimos cinco anos tornou-se ameaçador para o desempenho tradicional indígena. Uma crescente influência do “jurua” – termo nativo para designar o branco invasor – tem se imposto ao mundo cotidiano exigindo escolhas e provocando mudanças na rotina indígena.

Neste momento histórico os Guarani Mbyá, conhecidos pela sua resistência cultural e por seguirem a tradição como mito e realidade, tornam-se vulneráveis em um contexto que lhes exige uma certa modernização e ocidentalização. A maior demanda ocorre com relação a exigência do letramento que é reconhecido como um valor que adquire aceitabilidade diante de conteúdos interculturais.O mundo das palavras-almas e de suas representações ao mesmo tempo que correm o risco de serem enfraquecidos, são também o motivo para o enaltecimento da memória e de suas projeções discursivas. É desta forma que a realização da cerimônia da erva-mate indica-se como um ritual com a capacidade de estabelecer uma ordem e permanência na transitoriedade das coisas. O ambiente sócio-histórico subsumido pelos adeptos projeta-se por suas raízes de valor e condições de representação.

No sentido cosmológico, a dimensão temporal surge como uma construção da cosmovisão e concepção do mundo. Trata-se do tempo cósmico, o tempo das próprias coisas, um tempo que se propõe independente de qualquer consciência sócio-histórica. Esse tempo polariza um caráter unificador das experiências e dos rituais. Ele se expressa pela criação do cosmo, a origem dos Deuses, definição do Mito de Criação, da Primeira Terra, a terra divina, e a terra imperfeita ligada ao sofrimento, ao teko axy. O tempo de revelação divina molda a vida em condições dadas, na base dos ensinamentos do passado (Clastres, P., 1990).

Estrutura-se a sociedade mbya mediante uma formação histórico-ideológica onde ocorre um desejo pleno de superação da imperfeição que é própria da terra nova (yvy pyau). Aí vigora como tema central, a busca da terra sem males (yvy mara e’).

O motor de religiosidade e de misticismo presente na espiritualidade projeta-se por uma reversibilidade existencial que se depara com a questão cíclica do tempo em sua expressão de mudança e de equilíbrio. De forma mais ampla, uma dinâmica de expansão acentua os temas cataclismológicos, o fim do mundo,yvy opa

Como uma marca de tempo nessa descrição, a festa da erva-mate origina-se como tema do antigo (ara yma) e do novo (ara pyau). Indica-se uma renovação e busca de maturidade expressiva das mudanças da natureza. O ritual ocorre como replica Ara yma, “o céu primeiro, é seco e vazio, o inverno original” (Wera Jecupe, 2001:37), quando se realiza em fevereiro. Ara pyau ñemokandire “os dias novos que se erguem e ressurgem de si mesmos, dando cadência ao tempo quando a vida outona” (ib), quando se repete em agosto.

Compreende-se a festa no rumo cíclico da representação do tempo; o ponto de partida, o tempo-espaço originário e o tempo-espaço do renascimento. Mediante o calendário expressivo da festa a idéia de renovação ocorre tanto com relação a um movimento contínuo do tempo como sua dimensão de um devir e aperfeiçoamento.

Destaca-se o tempo do lugar-significação onde se materializa o modo de vida e a vida cotidiana em relação às segmentações temporais. O tekoa ,literalmente o local dos costumes, a aldeia, impõe-se como identidade sócio-histórica. Evidencia-se a vida terrena e a coletividade em seu esforço de recriação que se institui no ritual. Este plano impõe-se competitivamente entre as aldeias se seus investimentos religiosos coletivos.

O possível impacto ameaçador de uma crise e enfraquecimento da esfera religiosa atingem a dimensão subjetiva da cultura. O tempo-ser ganha discursividade na relação dramática dos sujeitos com o ritual. Um movimento que se orienta para o devir constrói os homens em sua ilusão/desejo de reversibilidade. O desejo premente é o de serem os Guarani deuses e não apenas humanos, como salientou H. Clastres (1978).

“A Festa da Erva-Mate
Antigamente eu via a erva mate amarrada. Então os homens iam ao mato para trazer erva mate. Então, depois de trazê-la cada um deles amarrava um feixinho da erva. Amarrava para ele, para os seus filhos, para os seus irmãos mais novos, para o pai e para o irmão mais velho.
Quando é meio dia todos entram na Casa de Rezas cada um deles com os seus feixinhos de erva.Então o rezador levanta com o violão e anda circularmente cantando.Depois o rezador pára no meio da Casa de Rezas. Então os que circulavam param. Na direção leste da Casa de Rezas, em horizontal, amarravam a takuara para colocar os feixinhos. Depois de parados cada um deles com os feixinhos coloca-os enfileirados,amarrados na takuara.Os feixinhos que nós amarramos é para nos fortalecer. O feixinho que fizemos para nossos filhos é que irá revelar o futuro das crianças para viver.Depois quando anoitece todos entravam na Casa de Rezas.Quando nós entrávamos, pegávamos o cachimbo para purificar a fileirinha dos feixinhos. Através disto pedimos ao Ñanderu para que ele possa guiar os filhos para eles viverem bem.No dia seguinte as mulheres preparam uma obra representando suas mãos. As mulheres, desde cedo, cada uma delas pega cada feixinho para secar na fogueira. Depois que secaram, socavam no pilão. Depois de socá-los colocam o farelo no porunguinho feito prato.
As mulheres colocam o farelo no porunguinho em forma de prato para ela, para as suas filhas, para a sua avó, para a sua mãe, para as irmãs mais novas e para as irmãs mais velhas. Até agora temos essa cerimônia nas aldeias.
O feixinho de ervas foi deixado por Ñanderu para os homens. E os farelos de erva foram revelados pela Ñandexy tenonde para as mulheres”.

A importância e cultivo da cerimônia da erva-mate nas aldeias retrata-se como um discurso de saberes tradicionais que se tornam operantes na luta do povo guarani em seguir suas tradições, em levar avante o nhandereko, o seu modo de vida.

A experiência vivencial dos sujeitos no ritual mobiliza sua subjetividade, afetividade diante da memória de antigos saberes e compreensão cultural. O passado, construído como o tempo de exigência divina liga-se ao tempo real e a vida humana que se replicam no esforço de uma reversibilidade. Compartilhando a dimensão sagrada, o convívio divino, o ideal de fortaleza que conduz os homens torna-se real em sua direção própria de criar uma passagem, ou o desejo de ultrapassagem como um caminho de profecias.

Baseado em texto de Marília Godoy, Maria Carolina de Almeida e Suelen Gazzi

sábado, 18 de agosto de 2012

BELO MONTE PAROU!

Foto de Paulo Fradinho

Em decisão histórica, a 5ª turma do Tribunal Regional Federal da 1ª região (TRF1) decidiu, por unanimidade, pela suspensão das obras da hidrelétrica no Rio Xingu (PA). A medida foi tomada após o tribunal julgar recurso de embargo do Ministério Público Federal que pedia a revogação da licença ambiental da megausina pela falta de consulta prévia aos povos indígenas.

O desembargador federal Souza Prudente, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), anunciou na terça-feira (14) a paralisação imediata das obras de Belo Monte. A decisão foi tomada na noite anterior (13), pela 5ª turma do TRF1, ao julgar recurso de embargo do Ministério Público Federal sobre a falta de consulta prévia aos povos indígenas para liberação da obra. 

A ação data de 2005, quando o Congresso Nacional, sem ouvir nenhuma das comunidades afetadas, e sem se basear em nenhum estudo que apontasse as possíveis consequências da obra, autorizou a construção da usina. A mesma turma, em decisão confusa, havia julgado anteriormente que a ação era improcedente, mas o Ministério Público recorreu e o teor da decisão foi alterado. 

De acordo com Souza Prudente, a paralisação da obra deve ser imediata. Caso a decisão seja descumprida pela Norte Energia – empresa responsável pela construção e operação do empreendimento – uma multa diária de R$ 500 mil será aplicada. A empresa alega que só suspenderá a obra quando for notificada pela Justiça, o que deve acontecer nesta quarta-feira (15), segundo o desembargador. 

“Nós vamos notificar [a empresa] por ofício eletrônico, mas o acórdão ainda deve esperar até a próxima semana, pois precisamos reunir as notas taquigráficas e a partir disso é que começa o prazo para recurso. Mas a multa já passa a valer a partir do momento que a empresa tomar conhecimento da nossa decisão”, afirmou Souza Prudente em entrevista coletiva. 

A paralisação de Belo Monte deve acontecer até que o Congresso Nacional ouça as comunidades indígenas afetadas, fazendo valer seu direito à consulta prévia, livre e informada – o que não foi feito antes da liberação do empreendimento. Os parlamentares terão ainda, segundo o desembargador, que editar um novo decreto legislativo autorizando as obras. 

“Não estamos combatendo o projeto de aceleração do governo. Mas não pode ser um processo ditatorial. O Congresso terá que corrigir seu ato, materialmente viciado. Só queremos garantir os direitos dessas populações”, disse. 

A Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), e a Constituição Federal garantem aos índios o direito de serem ouvidos em empreendimentos que vão afetar seu modo tradicional de vida. No caso de Belo Monte, esse direito foi atropelado. O decreto legislativo nº 788, de 2005, que autoriza a construção da usina, diz que as consultas, assim como o Estudo de Impacto Ambiental – exigido pela legislação para liberação de empreendimentos – poderiam ser realizados após a liberação da obra, caracterizando a primeira falha do processo. 

“Só em um regime de ditadura tudo é póstumo. Não se pode admitir estudos póstumos. A Constituição Federal diz que os estudos têm que ser prévios.” Além disso, disse o desembargador, caso as comunidades resolvam que não querem o empreendimento, a decisão deverá ser considerada pelos parlamentares, o que invalidaria de vez o licenciamento da usina e paralisaria definitivamente a construção da hidrelétrica no Rio Xingu. 

“Eles têm que ter voz ativa nesse processo, pois esse é um direito garantido a eles na Constituição. Esse projeto está sofrendo várias impugnações e vai continuar sofrendo. Não podemos pensar, como já disse o Supremo Tribunal Federal, apenas em aproveitamento financeiro e econômico. Há outros valores de ordem cultural, os direitos fundamentais dessas populações que têm que ser respeitados, como a Constituição e os tratados internacionais dizem. Nem mesmo o parecer da Funai substitui a decisão dos índios”, alega o desembargador. 

Para o procurador Felício Pontes Jr., do Ministério Público Federal do Pará, o decreto legislativo que autorizou Belo Monte sem consultar os índios era uma afronta à Carta Magna. “Finalmente, depois de anos de debates, o Judiciário se pronunciou em defesa da lei maior do País e dos direitos dos povos originários”,disse o procurador, em nota do MPF.

Essa é a única ação na qual houve, até o momento, uma decisão de mérito ligada ao caso. Todas as outras foram provisórias. Todas foram, invariavelmente, cassadas pelo presidente do TRF1, sob o argumento de que a obra é importante para o País e, portanto, o cumprimento da lei é secundário. 

Apesar de ser uma vitória em relação à batalha que se travou no processo atropelado de licenciamento de Belo Monte, ainda cabe recurso. Segundo Souza Prudente, as partes interessadas – Advocacia Geral da União e Norte Energia – podem recorrer tanto ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) como ao STF. “O Supremo tem sido categórico em defender os direitos ambientais e indígenas. Nossa esperança é que valide essa decisão”, disse Souza Prudente. 

Para Raul Telles do Valle, coordenador adjunto do Programa de Políticas Públicas do ISA, a revisão feita pelo tribunal em sua própria decisão é muito bem-vinda. “A decisão anterior era vergonhosa. A relatora, Selene de Almeida, proferiu um voto muito consistente e bem fundamentado, reconhecendo que não houve consulta, mas que deveria haver. Os demais juízes, no entanto, discordaram dela, mas sem explicar bem o porquê. Um deles, inclusive, tinha sido advogado da Eletronorte, mas mesmo assim participou do julgamento. Agora, finalmente, uma decisão sem influência política foi tomada". 

Notícia extraída do site www.socioambiental.org

sábado, 4 de agosto de 2012

JAGUAR, O ALTER EGO DO "HOMO AMERICANUS"

Ninguém sabe ao certo quando e como o primeiro homem imigrou para a América. Não se sabe se veio de uma sociedade já madura ou se era selvagem. Não é certo ter vindo dos cumes da Ásia através da estreita ponde de gelo que uniu a Mongólia ao continente americano, ou ter atravessado mares em oscilantes embarcações, portador de um escudo cultural. A questão é velha. Mas uma das hipóteses mais defendidas é a de que o homem das Américas teve seu princípio cultural em solo americano.

Os primeiros americanos viviam à beira de águas geladas ou em frorestas tropicais, em planícies ou cavernas, em florestas ou desertos e estepes. Uns habitavam regiões com temperaturas amenas; outros, lugares insalubres. Mas apesar de separados por ambientes tão distintos, deram origem a um novo ser: o HOMO AMERICANUS.

Por volta de 5.000 a.C., este "americano" não se diferenciava muito do homem de outras regiões da Terra, do ponto de vista evolutivo. O habitante do vale do Nilo se dedicava ao cultivo de espigas miúdas e da cevada, estabelecendo a base agrícola que seria o alicerce da posterior cultura egípcia. Mas o "americano" escolheu as plantas silvestres, que futuramente seriam seu milho, sua batata, tomates, feijão e abóbora, sobre as quais igualmente edificaria sua cultura.

Quando a cultura babilônica já havia desaparecido e os egípcios já tinham ultrapassado o ápice cultural de sua civilização, as grandes migrações da América chegaram ao fim. Grandes áreas do continente estavam ocupadas pelo homem. Surgiram núcelos culturais condicionados geograficamente: nas regiões árticas viviam os esquimós, com rostos chatos e corpos redondos. Nas baixadas norte-americanas, os habitantes altos e esguios organizavam sua vida em torno da biologia do animal vagante. Mais ao sul, onde o sol acaricia o homem por longas horas do dia, os indígenas cultivavam suas plantas e erguiam primitivas moradias sob a proteção de rochas. No extremo sul do continente, os gigantes da Terra do Fogo, corpos envolto em couro guanaco, caminhavam sobre a gelada tundra. Entre esses monstros geográficos, América do Norte e América do Sul, estende-se o chão que serviu de palco para algumas das grandes culturas da América Latina: América Central e México, com montanhas recortadas e vulcões incandescentes.

A sociedade tribal apoia-se nas bases de um estreito parentesco. A unidade fundamental era a parentela; estas originaram a tribo, unida não pela região habitada em comum, mas pelos laços de sangue. Da mesma maneira, unia-os a religião: o animismo, crença segundo a qual tudo no mundo possui "alma", tudo é vivo, sensível e com vontade própria. Deuses, bons ou maldosos, devem ser pacificados e a arte, quando desenvolvida, era dedicada a esta teologia. Cada tribo tinha um nome totêmico. As etapas desta herança cultural sucediam-se, até que a cultura de determinada tribo tornou-se patrimônio comum das demais.

Não houve posterior influência cultural, nem por parte da Europa, nem da Ásia. A América criou um mundo próprio, nascido do âmago do seu ser.

Os séculos sucederam-se no encadeamento do tempo sem fim. Os grandes reinos indígenas já não existem. Permanecem os resquícios de suas cintilantes culturas, vultosa quantidade de pedrinhas, que os arqueólogos tentam jutnar para reconstruir o colorido mosaico de passados quadros de vida. Para isso, prestam-lhe imprescindível ajuda as lendas, mitos e tradições orais que através dos séculos chegaram até nós.

De grande valor são os relatórios dos cronistas espanhóis, que contribuíram amplamente para que o chão do novo mundo revelasse seus segredos. Teria Evans procurado Creta, se não tivesse conhecido a lenda do Minotauro? Seria que Schliemann teria se proposto encontrar Tróia se não tivesse tão familiarizado com o conteúdo da Ilíada? Mas, no velho mundo, ao contrário das Américas, a possibilidade de interpretação dos achados arqueológicos e sua montagem por intermédio de analogias com História, poesia ou alguam tradição oral ou escrita, foi bem mais praticável. Pois antes que algum arqueólogo tivesse, pela primeira vez, colocado a pá em seu chão, antes mesmo do nascimento da ciência da Arqueologia, sua história já tinha mais de 5.000 anos e era largamente conhecida.

Na América, os conquistadores não tinham interesse por relações históricas. Mesmo que tivessem encarado as construções e objetos que encontravam com outros olhos, não teriam encontrado resposta para sua procedência. Nada sabiam sobre os povos que encontraram e não tinham condições de estabelecer alguma datação.

O desconhecimento de lendas e sagas dificulta a reconstituição da civilização de um povo. Por isso, a arqueologia nas Américas começou com a coleta da "história" dos povos indígenas, ou seja, os textos dos cronistas que juntaram o que restou dos velhos cânticos indígenas, das lendas e mitos, indicações sobre direito e administração, organização e culto. Muito tempo passou até que a ciência conseguisse pesquisar este material reunido com tanto esforço, até possuir uma visão mais ou menos clara da história indígena.

De modo geral, as religiões das sociedades tribais arcaicas da América do Sul caracterizam-se pela tendência par ao culto de espíritos da natureza, ou seja, personificação de objetos ou fenômenos naturais, ou ainda de espíritos tutelares, progenitores e protetores das diferentes espécies animais e vegetais. Nas sociedades com base cinegética, o culto é ligado às estrelas e às constelações e se prolonga nas culturas agrícolas menos arcaicas: cerimônias propiciatórias, danças animais, rituais de caça. O culto dos espiritos vegetais é acompanhado de ritual ligado à fertilidade humana, ao jogo de bola, à caça de cabeça, ao canibalismo ritual.

Os hábitos funerários (pedaços de jade na boca dos defuntos, oferendas nos túmulos, pintura vermelha dos cadáveres, etc) indicam preocupações metafísicas ou mágicas. Entretanto, tais ritos não parecem corresponder, de modo geral, a  um verdadeiro culto dos  mortos, mas ao desejo de os vivos apaziguarem os defuntos, impedirem sua volta e facilitarem sua viagem para o além.

Nas religiões arcaicas, as representações materiais dos deuses são raras. Não existem templos; ídolos de madeira, pedra ou argila não são frequentes. Os objetos sagrados consistem em postes grosseiros, figurinhas de pedra, maracás, instrumentos de vento (que reproduzem as vozes divinas) e algumas máscaras.

O mediador entre o homem e o além é o xamã, verdadeiro centro da vida religiosa, cujo poder origina-se no contato direto com o sobrenatural. Com o início do cerimonialismo afirma-se o fenômeno religioso "stricto sensu", isto é, passa-se do universo mágico da multiplicidade para o esforço da síntese, que caracteriza a especulação metafísica. Finalmente, com as culturas Chavin e Olmeca, a religião torna-se mais complexa, poderosa e expancionista, apesar de manifestaões mais arcaicas continuarem em algumas áreas sem traços notáveis de cerimonialismo formal.

No período de 300 a.C a 600 d.C., a desagregação das grandes culturas unificadoras resulta numa fragmentação religiosa. Entretanto, na Mesoamérica, em virtude da frequencia e intensidade dos contatos, da preeminência de poucas teocracias (Teotihuacan e Maia) e de certa orientação comum, constitui-se um corpo religioso oriundo do amálgama de diversas tradições que são, aliás, provenientes de tronco único. Na Mesoamérica deu-se o contrário das regiões andinas, onde vicissitudes políticas, falta de documentos e outros testemunhos tornam as indicações bastante fragmentárias. Os resquícios arqueológicos, o complexo escrita-numeração-calendário e as tradições dos cronistas (houve tradição initerrupta até a época colonial), garantiram um conhecimento bastante razoável sobre crenças e mitos.

De um modo geral, o culto do felino nas Américas fornece certo ponto focal, apesar de não existir grande unidade.

Tanto na Mesoamérica central como setentrional, ainda hoje é amplamente difundida a crença do parceiro animal. Uma cerâmica do velho Peru traduz nitidamente este conceito do "outro eu": é a figura de um homem que tem suas mãos unidas como em solene prece; atrás dele, vê-se um jaguar, cujas patas estão apoiadas sobre os ombros do homem; a cabeça afeiçoa-se à do homem e parece que as duas pertencem a um só corpo. É um gesto de carinho e proteção, uma excelente interpretação da íntima união do homem com seu "alter ego" animal.
 
O respectivo espírito protetor do homem é quase sempre o de um animal imponente e poderoso, isto é, o temível felino, como o puma ou o jaguar. Não raras vezes, são animais míticos, sobretudo os que apresentam clara relação com o céu noturno: lua e estrelas.A união do homem com seu espírito animal protetor é tão íntima que em caso de ferimento ou morte de um dos parceiros, acontece o mesmo com o outro.
 
Estudos e anotações feitas entre nativos da Guatemala, Honduras e regiões andinas, revelam, no entanto, que o conceito hoje existente não mais corresponde à forma original. Apenas em algumas regiões isoladas da América do Sul, como Araucários e Mataco, no Gran Chaco, o xamanismo ainda é encontrado em sua forma primitiva. A posse do animal "alter ego" entre indígenas da Mesoamérica é, provavelmente, uma deturpação secundária da antiga crença, que sofreu profundas mutações. Os fenômenos outrora limitados à esfera espiritual foram rudimentarizados para o real.
 
A forma de aquisição do animal parceiro, que perdeu todas as propriedades mágicas, já demonstra isto: quando nasce uma criança, são espalhadas cinzas, farinha ou areia e o animal que deixar seu rastro será o "outro eu" da criança. Entre os indígenas de Honduras, a avó materna apresenta, segundo sua escolha, um animal à criança, que fica com ele como seu "outro eu". As vezes, o "outro eu" é o primeiro animal que aparecer junto da criança recém-nascida. Ou ainda: um xamã indica um determinado animal como espírito protetor, segundo os sinais do calendário.

Nos tempos antigos, a posse do "outro eu" era provavelmente reservada apenas a alguams pessoas especiais, como líderes e sacerdotes da tribo.

Em 1575, Thevet escreve em sua Cosmographie Universelle: "Por causa das devastações que provoca, o jagar é temido pelos índios do Sul do Brasil. Quando capturam um desses animais, matam-no e levam-no para a aldeia. As mulheres enfeitam seu corpo com penas, colocam aros em suas patas, choram e lamentam: 'Não deixeis que a vingança caia sobre nossos filhos, porque tu foste capturado e morto pela tua própria ignorância. Não fomos nós que te enganamos, foste tu mesmo. Nossos homens colocaram a armadilha para apanha apenas animais comestíveis. Nucna quiseram te capturar'."
 
Esta velha narração se refere aos índigenas Tupinambá e corresponde, em seu contexto, ao que nos foi transmitido por Koslowsky sobre os índios Bororo: "Quando o índio caça um jaguar, é feita, durante a noite, uma dança ritual: as mulheres, sob forte emoção, lamentam e choram, evocam a alma do animal para implorar por misericórdia. Se a alma do jaguar não for apaziguada, causará a morte do caçador. Durante a dança ritual, o índio que matou o jaguar assume o papel do animal enfurecido em busca de vingança. O xamã e alguns outro síndios mais velhos tentam apazigua-lo com cânticos monótonos. Dançam ao redor do caçador, com o rosto virado pala ele e com matracas nas mãos. Cânticos e danças são repetidos durante horas contínuas, num ritmo monótono e exaustivo, até que os participantes são vencidos pelo cansaço. Segundo a crença, só então a alma do jaguar está conciliada, não havendo mais nada a temer".
 
Os Bororo, porém, seguem ainda outroritual em torno do jaguar: homens e mulheres dançam em fileiras. O representante do jaguar é enfeitado com a pele do animal, pintada por dentro com desenhos geométricos em vermelho e negro. Usa uma máscara coroada por penas de pássaros de várias espécies e guarnecida com os dentes do animal. Seu rosto é pintado com urucu. Segundo a crença, a alma do animal morto se apodera do corpo do homem que o representa e manifesta-se através dos saltos e movimentos frenéticos deste. Um cercado de folhas de palmeira, sem cobertura, serve de vestuário para o dançarino. às mulheres é proibida a entrada; provavelmente, o ritual observado para vestir o dançarino é tabu para elas.
A posição do indígena diante do jaguar é, até nossos dias, de respeito e medo. Encara-o não como um animal comum, mas como poderoso e temível espírito.

Após a conquista do México, o monge Bernardino de Sahagun descreve bem a forma como os indígenas encaram o jaguar: "sibarítico, preguiçoso, com forças sobrenaturais e inteligência humana". Segundo a crença, o jaguar hipnotiza suas vítimas com um soluço cujo ar enfraquece o coração da vítima através do pavor. Escreve Bernardino: "o índio que encontra um jaguar na floresta, sabe que pode atirar apenas quatro flechas. O animal apanha-as no ar, quebra-as com os dentes. Se o índio errar pela quarta vez, está perdido: o jaguar espreguiça-se, bufa maldosamente e em seguida, com um enorme salto, decide a sorte do índio indefeso".

Bartolomeu de Las Casas conta que os índios de Vera Paz, na Guatemala, caem de joelhos ao encontrar um jaguar na floresta. Começam a confessar seus pecados e, por conseguintes, são devorados.

O culto ao jaguar, vivo em todo o Sul do México e América Central, assumiu, após a conquista, a forma de sociedades político-religiosas denominadas NAHUALISTAS. Segundo Bernardino, os nahualistas eram corajosos e acostumados a matar. Cobriam o corpo com partes da pele do jaguar, isto é, testa, peito, cauda, patas e dentes, para se tornarem poderosos, valentes e temíveis.
 
A palavra asteca NAUALLI pode ser traduzida como ALGO OCULTO, SECRETO, o que provavelmente deu origem à sua múltipla interpretação como máscara, disfarce ou transformação. Com as migrações astecas, a palavra chegou até a Guatemala e à América do Sul, onde parece ter-se fundido com os existentes conceitos do outro eu. Hispanizada, a palavra naualli tornouse NAGUAL, de onde deriva a denominação "nagualismo" para o conceito de "alter ego" indígena, sendo o próprio animal protetor denominado "nagual".
 
Nos velhos tempos, o jaguar era um deus da terra, símbolo do interior da terra e da noite, da escuridão. Acreditava-se que o jaguar engolia o sol, causando eclipses. Era o deus das cavernas, do obscuro interior das montanhas. Nessa qualidade foi venerado em todo o sul do México, sobretudo em Tehuantepec. Os maias de Chiapas, chamavam-no UOTAN, isto é, "coração" ou "inteiror"; para os indígenas mexicanos era TEPEYOLLOTI, isto é, "coração das montanhas". O jaguar, coração da terra, tinha um santuário em uma grande caberna em Monopoxtiac, pequena ilha nas lagoas de Tehuantepc, coberta por florestas, além de outros grandes santuários em cavernas, todos de grande importância.
 
Padre Burgos narra a história de um estranho ídolo encontrado na caverna de Achitlán: "Existe, entre ouros altares, também um para um ídolo que chama de 'CORAÇÃO DA TERRA', e que goza de grande veneração. É feito de material extremamente valioso, ou seja, uma esmeralda (jade verde claro, provavelmente) do tamanho de um grande pimentão, sobre o qual está representado, artisticamente, um pequeno pássaro e uma serpente em posição de luta. A pedra é tão transparente que do seu interior parecelançar um feixe de luz".
 
A veneração que os índígenas tinham para com a divindade jaguar é tão profunda e enraizada que os reis dos zapotecas, mesmo após sua conversão para o cristianismo, continuaram a oferecer-lhe sacrifícios.

Texto de Elizabeth Loibl

CHAVIN DE HUANTAR


Chavin é considerado um horizonte arqueológico, isto é, um complexo cultural ou, pelo menos, um estilo tendente para a unidade (apesar da irregualidade de suas manifestações) e difundido através de boa parte dos Andes centrais. Sua denominação provém da localidade de Chavin de Huantar, perto do Callejón de Huaylas. O complexo Chavin se manifesta na edificação de centros cerimoniais, mas é particularmente reconhecível através da iconografia.

Os motivos principais são constituídos por animais: águas, falcões, jaguares e pumas. As representações humanas sem "kennings" (comparações visuais, como por exemplo cobras = cabelos) são raras. As criaturas míticas características são o crocodilo-peixe, o deus sorridente e o deus dos cetros, sendo que a boca de felino, com grandes caninos, caracteriza os seres sobrenaturais.
O arqueólogo peruano Julio Tello estabeleceu datações ousadas para Chavin, que despertaram o interesse e a curiosidade da ciência. Significaria nada menos do que o florescimento de elevada civilização indígena em épocas muito remotas, paralelas a algumas das grandes culturas do Velho Mundo, ou seja, os hititas, a época do bronze, sarcófagos de pedra, os obeliscos, etc.

Chavin, como se sabe hoje, estendeu sua influência por toda a região andina, das nascentes do Amazonas ao Oceano Pacífico, da selva até a costa, onde é chamado "Chavin costeira", alcançando até as ilhas do Pacífico. Os Chachapóias, que no século XIV ou XV ofereceram férrea resistência ao inca Tupac Yupangui, habitavam o curso superior do Marañon. As ruínas de uma de suas cidades, na margem ocidental o Urubamba, remontam a dataa antiquíssimas. Com suas representações do jaguar, seus desenhos solares, seus túmulos cônicos, denotam a visível influência da cultura Chavin.

Desta velha cultura indígena restam, além das ruínas do templo perto da aldeia de Chavin de Huantar, inúmeros sítios arqueológicos onde os símbolos, ornamentos, cerâmica e divindades são elos de união presentes, visíveis e inegáveis com Chavin: as estátuas dos Chibcha, que ocupavam sobretudo a região perto de Bogotá e Funja, bem como os vales dos rios Magdalena, Cauca, Caqueta e Patia; a cerâmica de Chimbote, Pachacamac; os trabalhos de cobre do vale de Chicama; as plaquetas de ouro de Lambaiquie ou os símbolos da "Porta do Sol" de Tihuanaco; restos de um palácio encontrado em Moniquira, com grandes colunas de pedra; as estátuas e figuras humanas encontradas em San Augustin, na região das nascentes do rio Magdalena; a colossal figura de jaguar que Lopez encontrou em Neita, onde guardava a entrada de um túmulo, etc.

A que se deva tamanha difusão? A hipótese de um império Chavin foi abandonada. Tudo leva a crer que essa difusão deriva de um culto religioso que se estendeu através dos Andes centrais, mais pela conversão do que pela conquista. O ponto de origem do fenômeno é muito discutido. Para alguns, corresponderia a influências externas (olmeca, colombiana, equatoriana); segundo outra corrente, seria autóctone, nascido nos Andes centrais, de focos múltiplos ou em ponto determinado. Não se trata, com toda certeza, das costas centrais ou meridionais, nem do alto Hualaga, pois o elemento Chavin se reveste, nessas regiões, de caráter nitidamente intrusivo. Restam as possibilidades da costa Norte, da cordilheira e dos vales andinos da encosta atlântica. De qualquer forma, os diversos elementos do complexo Chavin são encontrados no próprio Peru anes de 1.000 a.C.: templos sobrelevados (Kotosh, Toril), escultura lítica (Cerro Sechin), estilo de cerâmica (norte), iconografia (desde o período pré-cerâmico).

O Templo de Chavin de Huantar, durante os numerosos séculos em que esteve em uso, fornece indicações preciosas sobre a evolução geral do fenômeno Chavin. Erroenamente denominado "Castillo", é constituído de numerosas construções, terraços e páticos edificados no decorrer de vários séculos.

A construção principal, em três andares, com cerca de 75 metros de comprimento, é um complexo formado por galerias e corredores subterrâneos, minúsculos recintos, escadarias e plataformas, provido de um genial sistema de ventilação. Inicialmente, o templo é um edificio em forma de U, de pedra talhada, centralizado em torno de uma escultura complexa - o "Lanzon". Deve ser contemporâneo de certos templos da costa centro-norte (Palka) e da cerâmica mais antiga de Chavin, de Chogoiape e Cupisnique Antigo (costa norte).



A religião parece basear-se no culto de um "deus sorridente", com dentes de jaguar, que se encontra representado no Lanzon: uma divindade atemorizadora, cujas mãos e pés erminam em garras; em sua cabeça, que tem uma boca larga e dentes caninos, vêem-se serpentes enrelaçadas; em cima,a figura é arrematada por uma forma de coluna ornada com caretas grotescas de animais.

Entre as demais obras líticas de Chavin, destacam-se a famosa "PEDRA RAIMONDI", encontrada por volta de 1870 pelo viajante Antonio Raimondi. A pedra raimondi é um gigantesco monólito verde. Representa um ser híbrido, metade homem, metade felino, cujo adorno de cabeça é constituído por serpentes e goelas abertas. A lousa alta e estreita tem, na extremidade inferior, uma estranha figura de difícil interpretação: corpo de homem, guarra de jaguar e cabeça híbrida - meio jaguar, meio touro pois em cornos. Faz lembrar o cruzamento de jaguar/homem/touro. Outra obra lítica é o chamado "OBELISCO", uma formação ainda mais complicada, constituída de homem, felino, pássaro, peixe e réptil.

Representações em recipientes e em rochas mostram que, na concepção religiosa do homem de Chavin, ocuparam lugar proeminente, além do jaguar, também as serpentes e os crocodilos. Aliás, seres híbridos homem/animal, adorados como divindades, existem em quase todas as culturas do mundo. Os diferentes estágios de transição entre homem e animal são frequentemente exteriorizados através de máscaras cúlticas (cerimoniais).

Em 1925, Julio Tello fez um outro achado sensacional, no sul do Peru, península de Paracas, perto da cidade portuária e Pisco: restos de uma cultura que floresceu durante cerca de 900 anos e cujo início aproximou por volta de 700 a.C. Denominou-se de "CULTURA PARACAS", resultante da fusão de fortes influências Chavin com elementos locais.

Em câmaras subterrâneas, Tello encontrou centenas de múmias envoltas em grossas camadas de finíssimos panejamentos, bordados ou enfeitados com outras refinadas ténicas; as cores continuam vivas como se os séculos não tivessem passado. Elas estavam em grandes cestos, em posição fetal; muitas apresentam sinais de trepanação, às vezes com incrustações de pequenas lâminas de ouro. Seus "mantos", extraordinários para não dizer perfeitos, espelham o fantástico universo de deuses e demônios, com seus seres híbridos: felinos, pássaros e serpentes.

No principio, a cultura Paracas apresenta visível influência de Chavin, sobretudo na representação da divindade felina. No entanto, após 500 a.C. surge uma nova religião, um culto de troféus, expresso na reprodução de cabeças humanas decapitadas. Pouco a pouco a cultura Paracas se desliga da influência de Chavin, desenvolve estilos puramente locais e integra novos elementos religiosos e iconográficos, provenientes da serra meridional.

Texto de Elizabeth Loibl

 

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

DA SELVA AMAZÔNICA PARA OS ANDES

MAPA DE FELIPE GUANAM POMO DE AYALA
Enquanto um restrito círculo arqueológico é unânime em afirmar que a primeira colonização da América se deu há cerca de 20.000 - 40.000 anos através do estreito de Bering, a opinião sobre a origem do cultivo do solo e atividades mais ou menos coligadas, bem como sobre o nascimento das grandes culturas mesoamericanas e andinas diverge bastante.

Afirmam alguns, apoiados em achados pré-históricos, que o cultivo do solo na América teve seu princípio nas montanhas Tamaulipas e no altiplano de Puebla, no México, entre 7.000 e 2.000 a.C., sendo que, a partir daí, o cultivo do milho, o alimento principal da América pré-colombiana, começou a ser difundido através do resto da América, sobretudo em direção sudeste. Outros, mormente cientistas americanos, acreditam ser mais provável que a agricultura tenha se desenvolvido no sul, com consequente penetração para o norte.

Mas é a respeito da formação das grandes culturas americanas que os eruditos realmente se dividem.

Para contatos transpacíficos faltam provas históricas concretas, pois a conjetura sobre relações Mundo Velho/Mundo Novo, apóia-se apenas em uma série de comparações arqueológicas, etnológicas, linguísticas de ambas as partes da terra. Sua seleção, avaliação e análise, no entanto, deixam tanta margem a interpretação divergentes que facilmente se pode encontrar argumentos a favor e contra uma delas. Assim, apesar de, em princípio, convicta da existência de contatos pré-colombianos transpacíficos, não quero entrar em detalhes sobre esta questão e sim evidenciar apenas o inter-relacionamento das culturas americanas e papel que nele ocupa a adoração do felino.

Há quase trinta anos, o geógrafo Carl O. Sauer postulou que a cultura tropical baseada no cultivo de plantas tubérculas teria sido precursora do cultivo do solo na região centro-andina. Esse ponto de vista foi endossado pelo grande arqueólogo peruano Julio Tello e criticado, entre outros, pelo casal Meggers e Evans, dos Estados Unidos. Para ambos, a cultura da selva tropical é nada mais do que um fraco e tardio reflexo das civilizações centro e norte-andinas. Mas pesquisas pré-históricas efetuadas pelo arqueólogo D. Lathrap, em fins dos anos 50 do século XX, na baixada ocidental amazônica,a chamada MONTANA peruana, sobretudo em Tutishcainio, extremo norte de Yarinacocha, perto da cidade de Pucalpa, fazem o pêndulo inclinar-se a favor da primeira teoria.

A camada mais antiga destas escavações - Tutishcainio precoce - foi datada pro Lathrap entre 2.000 e 1.600 a.C. Os cacos de argila encontrados apresentam, tanto no estilo e motivos da decoração, como na forma, uma semelhança muito acentuada com o material enocntrado pelos japoneses Izumi e Sono, no começo dos anos sessenta do século passado, na camada mais antiga de Wairairca (escavações em Kotosh, região dos Andes Centrais, perto de Huanuco), datado, segundo método Carbono-14, em 1.800 a.C. e que pertence ao horizonte formativo de Chavin de Huantar. Devido a essa semelhança, Lathrap supõe um estreito parentesco entre os dois complexos culturais, deduzindo um movimento cultural baixada-altiplano.

Um dos motivos mais interessantes da cerâmcia do Tutishcainio precoce é a representação estilizada da cabeça, sobressaindo a dentadura de um felino, provavelmente jaguar.

O jaguar ocupou papel bastante relevante na religião e mitologia da cultura Chavin, bem como na cultura La Venta, pertencente ao formativo olmeca mesoamericano, que contribuiu em larga escala nas influências mesoamericanas sobre os Andes Centrais. Prova isto a iconografiade ambas as culturas. Acontece, porém, que o jaguar é um animal das baixadas tropicais e não do altiplano andino, fato que constituiu um dos motivos pelo qual considerou-se uma influência, ou até a origem da cultura Chavin, na região amazônica.

Mas, além do jaguar, Lathrap identificou outros animais típicos da selva tropical: o gavião-real da baixada amazônica, o grande caimão, que como suprema divindade tem duplo aspecto: "caimão do céu" e "caimão do submundo e da água" . Como caimão do céu, traz as plantas de sementes; como caimão do submundo, as plantas tubérculas, entre outras a mandioca, que nasce do seu pênis, como dádiva mais preciosa. Mas a mandioca também sai da boca e das narinas do jaguar, o que mostra, também aqui, a idéia desse animal como portador de alimento, como no Peru antigo.

Lathrap atribui a influência das baixadas sobre as culturas andinas do Peru, bem como sobre as culturas costeiras do Equador, durante o período formativo, a um único foco: uma cultura uniforme, de desenvolvimento relativamente elevado, a região fértil (várzea) dos rios da Bacia Amazônica central, baseada na economia da mandioca e da pesca.

Da velha "cultura amazônica", no entanto, restam hoje apenas alguns objetos: almofarizes, tabuleiros de madeira ou, mais raramente, de pedra destinados à olfatização ritual de um pó narcótico - o PARICÁ. Feito da semente alcalóide de determinadas plantas que crescem somente nas baixadas tropicais, o paricá faz parte das drogas de que os xamãs se serviam para entrar em êxatase, durante o qual lhes apareciam os Espíritos do jaguar, caimão, anaconda e outros.

Utensílios deste tipo, sobretudo almofarizes de pedra que representam animais, também foram encontrados em grande número na região das elevadas culturas andinas, testemunhando que o uso de drogas era também muito comum entre as civilizações andinas e provando, mais uma vez, a teoria de Lathrap e outros, sobre uma prematura influência da baixada amazônica.

Entre as numerosas peças encontradas, a mais famosa, pela importância artística e iconográfica, é um pequeno jaguar encontrado na esfera chavinóide, cujo corpo, coberto com sinais e símbolos, expressa concentrada força e vigor.

Não menos importante são dois outros almofarizes de Pacopampa, curso superior do rio Reque, perto de Cajamarca, que datam provavelmente do início do período formativo, período Wairajirca. Enquanto um deles representa novamente a figura do jaguar, o oturo possui, além de traços felinos, traços de águia ("felinized eagle"). Os pilões do almofariz-jaguar são ornados com cabeça de serpente. Aliás, a mescla de traços répteis e felinos é bastante familiar e constituiu elemento típico do círculo cultural andino-amazônico.

Almofarizes com caráter felino foram encontrados ambém no Equador, onde o animal tem, via de regra, corpo cúbico, pernas curtas e cabeça desproporcional. Pertencem, no entanto, a um período tardio, a fase "Manteno" (1.000 a 1.500 d.C.).

O arqueólogo A. R. Gonzales encontrou em Tafi del Valle, oese da pronvícia de Tucuman, Argentina, um almofariz datado entre 500 e 600 d.C., que também representa, nitidamente, um jaguar com cabeça humana. Também na segunda fase da cultura Condorhuasi, na província de Catamarca, Argentina (250 a 300 d.C), aparecem almofarizes de pedra com forma de felinos. Porém seu efeito era totalmente desconhecido até então: em pé, com pernas, cauda e cabeça desmensuradas e imponente dentadura.

Segundo a afirmação convicta de Gonzales, eses almofarizes apontam para o uso de drogas, o que permite enquadrá-los no seguinte contexto: um comprovado complexo arqueológico nos Andes meridionais, com centro na costa setentrional chilena (Chango, província Antofagasta) e no interior, na zona de San Pedro de Atacama e no vale Chalchaqui, da província de Salta, Argentina, que tem como enfoque a olfatização ritual e se estende até a região arqueológica de Tihuanaco. O estilo desta transparece, muitas vezes, no fetio das bandejas dos atacamenos, outrora habitantes da região de Atacama.

No que diz respeito à origem do "complexo de rapé" nos Andes meridionais, Wassen defende uma influência amazônica anterior sobre a região de Atacama. Levando em consideração sobretudo uma influência de tribos Aruak em direção norte-sul, espaço sul andino, isto pode ser perfeitamente compatível com as já citadas teses de Lathrap.

Mais comuns do que os almofarizes são, no entanto, as bandejas de madeira entalhada, destinadas à aspiração do pó narcótico da região amazônica. A maioria é atribuída à tibo tupi dos Mauhés, da região enre o baixo rio Tapajós e rio Madeira, ao sul da Amazônia. As alças destas bandejas quase sempre representam um acabeça de réptil, geralmente serpente. Os kachuiana, na região do Trombetas, há pouco mais de duas décadas ainda seguiam um rital xamã durante o qual eram empregadas pequenas tábuas de rapé, cujas alças continham representações plásticas de casais míticos de jaguar.

Do ponto de vista artístico, estas peças são inferiores a uma velha tábua maravilhosamente esculpida, provavelmente também na região do Trombetas, e em cuja alça se vê um jaguar montado nas costas de uma mulher. Provavelmente, é uma cena de copulação entre o jaguar e a mulher, conhecida através das esculturas de pedra de San Augustin (500 a.C a 1.000 d.C), da Colômbia. Este tipo de união, da qual nasce o homem-jaguar, ainda hoje ocupa certo papel de destaque na mitologia dos índios Paez, da mesma região.

Fora os utensílios rituais, ligados diretamente ao uso de narcóticos, ainda há outros requisitos pertencentes ao xamanismo sul-americano, amplamente orientado pelo uso de drogas, que apontam para uma relação das culturas andinas com a amazônica. São as banquetas zoomórficas, sede dos Espíritos, que serviam ao xamã durane os rituais cúlticos. Segundo Lathrap, essas banquetas são parte integrante de uma velha cultura amazônica. Lathrap aponta para a acentuada semelhança das pequenas banquetas de argila encontradas em Momil III (2.000 a 1.200 a.C.), costa setentrional da Colômbia, e na fase 3 e 4 (2.300 a 2.000 a.C.) de Valdívia, Equador, com as banquetas zoomórficas dos xamãs da Amazônia. Para Lathrap, os primeiros são autênticas réplicas das banquetas amazônicas que, como parte essencial da cultura tropical da selva, espalham-se pela costa colombiana jutnamente com o complexo de drogas. Como data do aparecimento das banquetas na região andina, Lathrap menciona cerca de 2.000 a.C. e diz que a formação do fenômeno na região amazônica se deu, no mínimo, um milênio antes. 

A possibilidade de um afastamento contrário dos complexos "banqueta zoomórfica" e "de drogas", ou seja dos Andes para a Bacia Amazônica, é rejeitada por Lathrap, sob alegação de origem extra-andina de certas plantas narcóticas (Piptadenia e Banisteriopsis).

Texto de Elizabeth Loibl