sábado, 17 de dezembro de 2011

MAKUNAIMA X MACUNAÍMA


Sem dúvida alguma, Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade, permeia a mente de muitos brasileiros. O autor, após colher material necessário sobre o folclore brasileiro e mitos indígenas, escreveu a “rapsódia”, em apenas duas semanas no final de 1926, numa fazenda de sua família em Araraquara – SP, publicando-o em 1928.

Com liberdade poética, inspirou-se no personagem principal dos povos indígenas Taurepang, Arekuna, Wapichana, Macuxi, Ingarikó e Pemon, entre outros. Mas Mário nunca teve contato direto com nenhum desses povos indígenas, sua fonte foi importada diretamente da Alemanha e em alemão, que mesclou a outras de Capistrano de Abreu, Couto Magalhães, Pereira da Costa e relatos orais.

Makunaima foi apresentado aos não-indígenas pelo etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg, que viajou, entre 1911 e 1913, pela região da tríplice fronteira entre Brasil, Venezuela e Guiana, no monte Roraima, seguindo até o rio Orenoco, na Venezuela, Grünberg colheu músicas, artefatos, imagens e muitas histórias. Estas, narradas pelos indígenas Akúli, do povo Arekuná (Yekuana) e Mayuluaipu, do povo Taulipanque (Taurepang), foram descritas no volume II de uma coletânea de 5, com o título: “Von Roraima zum Orinoco” (Do Roraina ao Orenoco), publicado em 1916, em Berlim.

É fato que Mário de Andrade foi um gênio da literatura brasileira e Macunaíma um ícone para o modernismo no Brasil, mas acredito que se ele tivesse conhecido parte da cultura dos povos de onde o mito se originou, a história talvez teria seguido outro rumo, quem sabe até com o mesmo sucesso.

Reescrevo pequeno resumo da história de Macunaíma, usando palavras de Mário e, claro, a mesma liberdade poética que ele usou.

Nasceu de parto normal no fundo da mata virgem no Amazonas, Macunaíma, filho de uma índia Tapanhunas (da Silva) com o senhor Medo da Noite (da Silva). Este curumim veio ao mundo numa noite escura e silenciosa, à beira do rio Uraricuera (em Roraima). Ao amanhecer, Tapanhunas inspecionou minuciosamente sua cria enquanto ele dormia grudado no peito. Que susto quando viu a cor do curumim! Era preto retinto, com pernas tortas e cabeça rombuda. Isto de imediato a preocupou, pois segundo as tradições indígenas, uma criança defeituosa traria problemas para o povo numa batalha.

A mãe ficou triste imaginando o que sucederia caso o curumim fosse cego. Ansiosa, resolveu acordar o menino. Ao ele abrir os olhos, a mãe surpreendeu-se mais uma vez: o menino possuía um belo par de olhos azuis. Que alívio! Aqueles lindos olhos azuis, indubitavelmente o salvariam das formigas assassinas.

O herói subnutrido de nossa gente precisava de poderes especiais para compensar a falta de sorte e poder sobreviver neste mundão desconhecido. Sua mãe pendurou logo o muiraquitã da tribo das amazonas (talismã talhado em rocha esverdeada, na forma de animais ou pessoas) no pescoço do menino. Depois, Macunaíma pôs o pé na estrada, viveu peripécias e seus feitos se fizeram conhecidos. Recebeu, então, atributos de trapaceiro, malandro, preguiçoso, individualista, matreiro, mulherengo e mentiroso.

O herói de Mário viajou por muitos lugares, conseguindo tudo o que desejava. Já satisfeito, retornou ao Amazonas e transformou-se na constelação Ursa Maior...

Mas o verdadeiro Makunaíma indígena está muito além das façanhas do Macunaíma de Mário, pois Makunaíma pertence a outro mundo, bem diferente do de Macunaíma. Makunaíma faz parte do tempo, do espaço, do nosso universo mítico e cultural desde o início do mundo: é a figura mais importante quando se trata da nossa ancestralidade. Foi ele que, depois do grande fogo que destruiu tudo, refez os indígenas e lhes devolveu a vida.

Nosso grande guerreiro protetor ainda habita o monte Roraima e podemos ver seus feito sem muitos lugares por onde passou – seja por benevolência, brincadeira ou capricho seu.

É importante que o povo brasileiro conheça mais o próprio país, tão imenso, com uma diversidade maior ainda. Existem mais de 230 povos indígenas espelhados em quase todos os Estados da Federação, cada um deles com suas histórias, língua, pintura e traços fisionômicos diferentes. Diferenças que devem ser respeitadas, afinal são elas que nos fazem tão ricos.

É preciso compreender que cada povo indígena tem seu universo peculiar e que suas histórias, personagens ou o criador de todas as coisas recebe nosso respeito, assim como Jesus e os santos do mundo cristão.

Não desrespeitamos ou menosprezamos o sagrado e a crença dos outros povos, mesmo daqueles que não conhecemos. O sagrado é parte integral da cultura indígena durante toda a vida, e a vemos em tudo o que vive. A terra, o rio, as florestas, os campos naturais, os animais, tudo tem a presença do Criador. Nossas histórias tradicionais estão carregadas de símbolos e significados, fazendo parte de nossa educação e formação como seres inseridos no mundo. Essa ligação íntima, necessária ao equilíbrio da vida, funde o mundo físico e o espiritual de forma tão homogênea que nos torna seres completos.

Makunaíma é o pajé que nos trouxe o peixe e a farinha, tristezas e alegrias, uma terra linda e um universo cheio de significados. É o guerreiro que vive no topo do monte Roraima com suas armas, vigiando o mundo e o universo celeste, e protegendo os povos que ele conhece.

Texto de Cristino Wapichana

ARTE PLUMÁRIA BRASILEIRA


A imagem visual que nos ocorre mais espontaneamente quando pensamos em índio é a de figuras nuas empenadas. Ao lado dos arcos e flechas, esta nudez emplumada os tem caracterizado sempre como o atributo mais peculiar.

Toda a copiosa documentação iconográfica que se vem acumulando desde o século das descobertas, os representa assim, invariavelmente envoltos em mantos de plumas ou profusamente adornados com enfeites de pena.

É provável que essa imagem esteja muito próxima da que os índios fazem de si próprios, como idealização mais alta, a de figuras engalanadas com uma paramentália de penas multicolores.

Desde os primeiros encontros entre índios e europeus, os adornos plumários suscitaram o interesse e a admiração dos observadores mais sensíveis, como a arte indígena mais elaborada. Pode-se mesmo datar o início deste interesse, já que o primeiro objeto recebido pelo descobridor foi aquele “sombreiro de pennas d’auves” que um marujo de Cabral trocou por carapuças, segundo o testemunho de Pero Vaz de Caminha. Mais tarde, tantas destas peças foram levadas à Europa que a quase totalidade dos artefatos indígenas quinhentistas existentes em museus é constituída por coifas e mantos dos Tupinambá.

Apesar disso, os ornamentos plumários raras vezes foram objeto de estudos etnológicos ou artísticos e em poucos casos mereceram a atenção que deveriam impor, como uma das mais altas criações estéticas dos nossos índios. Nas monografias etnológicas eles figuram no capítulo das vestimentas e adornos, ao lado da pintura de corpo, da tatuagem e dos ornatos móveis, na forma de frias descrições ergológicas de artefatos de penas, sem transmitir a mensagem estética que contêm. Ao etnocentrismo da maioria dos viajantes, naturalistas e mesmo etnólogos que trataram do tema, a arte plumária se afigurou como simplesmente exótica. Quando muito seria uma “arte primitiva” no sentido de simplista, ingênua, rudimentar ou de primeira origem. E dentro de perspectiva tão estreita era impossível alcançar uma verdadeira compreensão do valor e significação destas criações indígenas.


Entretanto, é na plumária que encontramos a atividade mais eminentemente artística dos nossos índios, aquela em que revelam os mais elaborados impulsos estéticos e mais vigorosas características de criação própria e singular. E é natural que assim seja, porque a plumagem dos pássaros, com sua variedade de formas e riqueza de colorido, constitui o material mais precioso e mais acabado, por assim dizer, que a natureza oferece aos índios para se exprimirem artisticamente. O seu maior interesse estético, por outro lado, está voltado para o embelezamento do próprio corpo. Da combinação daqueles recursos e desta tendência, resultaria a elaboração de uma técnica requintada que, associando penas e plumas a diversos outros materiais, permitiria criar obras de arte capazes de competir em beleza com os mesmos pássaros.

Algumas tribos só se utilizam de plumagem na forma e acabamento com que se apresentam na natureza. Tomam chumaços de plumas e penas selecionadas pela forma e colorido atraentes para colar ao corpo, introduzir no furo das orelhas, nariz ou lábios, ou ainda, para dispor sobre a cabeleira, obtendo efeito de meros enfeites aos quais não é dada elaboração técnica que permita tratá-los como criações artísticas.

Entre esta utilização simplesmente apropriativa de elementos que em estado natural já se recomendam como adornos e o desenvolvimento de uma verdadeira arte, se impõe a elaboração de uma tecnologia adequada aos materiais plumários, de todo um saber complexo sobre a fauna ornitológica e, sobretudo, um apuramento de sensibilidade para as combinações de cores e os arranjos de formas que só se alcançam através do esforço continuado de gerações.

Assim, só é legítimo falar de “arte plumária”, quando o valor estético das penas é superado por um esforço de imaginação, sensibilidade e virtuosismo, que permite construir com elas obras que valham por si próprias. Quando da atividade tecnológica resultam criações singulares capazes de suscitar emoções estéticas, pela harmonia da forma, pela felicidade da combinação cromática e, ainda, por uma consistência táctil suave e atrativa.

Diversas tribos brasileiras alcançaram tão alto aprimoramento neste campo que, com referência a seus adornos plumários, se pode falar de uma verdadeira arte. Suas criações satisfazem as mesmas exigências de desenvolvimento técnico e impulso estético original bem-sucedido que, aplicados a outros materiais, deram lugar a todas as artes.

Exploraram com maestria a exuberância da fauna ornitológica das regiões em que viviam, tirando partido de sua riqueza de formato e colorido. Em suas obras se encontram exemplos magníficos de utilização da imponência das penas longas da ema e do jaburu, das cores vivas das araras, da alvura das graças, do matizado da plumagem dos gaviões e mutuns, da delicadeza de formato e colorido dos papos de tucano e dos galos da serra, dos efeitos iridescentes das plumas de saís, cotingas e pipras. Algumas tribos levaram adiante este requinte, provocando a mudança do colorido original das penas de certas aves para obter matizes mais claros e brilhantes.

A fragilidade do material plumário foi um desafio vencido galhardamente por prodígios de destreza no manuseio das penas, aliado ao completo domínio dos procedimentos técnicos mais meticulosos, cujas exigências começam na coleta das penas e se acentuam em cada etapa até a conclusão da obra.

As penas e plumas a utilizar em certos adornos devem ser colhidas uma a uma ou aos tufos, com rigorosa uniformidade e atendendo-se ao formato que terá a peça. O arranjo destes elementos ao longo de cordéis para formar as fieiras ou sua colagem a uma base, no caso dos mosaicos, tem requisitos de apuramento técnico e coordenação motora que só podem ser obtidos após longo treinamento. Atente-se, por exemplo, para a confecção de uma simples fieira de plumas de papo de tucano. Os minúsculos canhões devem ser desbastados do froxel em proporções iguais; cumpre dobrá-los com segurança empregando pressão uniforme para não partirem e ajustá-los ao cordel-base guardando distâncias exatas uns dos outros. O amarramento dos canhões deve fazer-se com nós diminutos e rigorosamente iguais. Só atendendo a estes e outros requisitos se pode obter as características de acabamento indispensáveis para que a fieira possa ser combinada a outras formando um adorno que se conforme ao corpo com a mesma leveza e naturalidade com que antes as plumas se assentavam no pássaro.

A arte plumária dos índios do Brasil apresenta certas uniformidades essenciais derivadas do uso dos mesmos materiais, de certas identidades tecnológicas e do caráter formalista que, em conjunto, a distinguem de outras, como a plumária predominantemente figurativa e altamente desenvolvida dos povos andinos e mexicanos. Sobrelevam, porém, a estas uniformidades, tão evidentes discrepâncias que não podemos falar legitimamente de um estilo plumário único dos índios brasileiros. O que se impõe à observação é, ao contrário, a presença de estilos diversos, cada um dos quais caracterizado por atributos tão peculiares que permitem identificar com bastante precisão a origem de uma peça qualquer.

Estes padrões estilísticos em alguns casos correspondem a uma única tribo, detentora de um estilo próprio dentro do qual conforma todas as suas criações. Outras vezes se difundem por áreas etnográficas inteiras, tornando-se comuns a tribos diferentes não só linguisticamente mas por outros característicos.

O que particulariza estes estilos são certas qualidades diacríticas, como modalidades de procedimento técnico, o uso de certas associações constantes de materiais, determinadas variantes de combinação cromática ou modos próprios de obter efeitos formais. Mas estes atributos, por si somente, não definem os estilos plumários. Cada um deles, além de uma combinação peculiar destas qualidades, tem de próprio uma individualidade de expressão que se imprime em cada peça e se deixa reconhecer quase fisionomicamente, mas que se não pode descrever com precisão.

A associação da plumária aos traçados ou aos tecidos lhe empresta características tão peculiares que pode servir de critério para distinguir duas famílias estilísticas diversas.

A primeira é representada principalmente por tribos do norte do Amazonas, como os Apalai, Galibi, Taulipung, Waiwai e outros que, montando seus adornos plumários em imponentes armações trançadas, conseguem efetio majestoso, mas não parecem sensíveis aos requintes de acabamento. Outros exemplos de estilo plumário voltado para a suntuosidade, na base da associação com traçados e varetas, se encontra entre os Borôro, Karajá e Tapirapé. Estas tribos manifestam uma tendência pronunciada para a utilização das penas longas montadas em armações rígidas, alcançando dimensões avantajadas, de magnífico efeito cênico. Seus diademas rotiformes ou seus largos leques de occipício sugerem, pela aparatosidade, a paramentália de grandes cerimônias de autoafirmação tribal.

Os mais altos representantes da segunda família estilística, baseada na associação da plumagem aos tecidos, são alguns grupos Tupi e, em particular, os Munduruku e os Urubu. Suas criações se distinguem pela flexibilidade que permite aplicá-las diretamente ao corpo, pelos requintes de acabamento e pela procura de efeitos cromáticos sutis em peças de dimensões diminutas. Enquanto os estilos anteriormente referidos parecem voltados para a suntuosidade e o esplendor, estes sugerem a delicadeza das filigranas e a sensibilidade e virtuosismo das iluminuras.

É tarefa difícil situar as criações estéticas de grupos tribais nas classificações das artes elaboradas originalmente para nossa sociedade, tão mais complexa. A arte plumária apresenta, por isso mesmo, tanto qualidades das chamadas artes menores, como o caráter ornamental e reiterativo, quando atributos geralmente conferidos às belas artes com sua natureza essencialmente suntuária.

Não é repetitiva no sentido mecânico das artes industriais, mas reiterativas, porque cumpre ao plumista performar sua obra dentro de padrões previamente estabelecidos e com pequena margem para inovações. Uma coifa de penas é semelhante numa infinidade de detalhes, todos rigidamente prescritos, a qualquer outra coifa da mesma tribo. Entretanto, na aldeia onde foi colhida ninguém teria dúvidas ou dificuldade para indicar a pessoa que a fez. O caráter reiterativo não impede, pois, nesse caso, que o artista se imprima em sua obra, fazendo dela uma criação original e única.

Participa da natureza das artes ornamentais porque é essencialmente um esforço para emprestar beleza e majestade ao corpo humano. Ao contrário de uma escultura, por exemplo, uma peça de plumária só alcança plena expressividade quando aplicada ao corpo, como um diadema aberto sobre a fronte ou um manto caído sobre o dorso.

A arte plumária se distingue das artes aplicadas, por seu caráter não utilitário. As técnicas em que se baseia e os esforços que coordena foram desenvolvidos e encontram realização como fins em si mesmos. Não são disciplinadas pelo respeito a uma utilidade prática imediata, como ocorre com a maioria das atividades artísticas tribais, neste nível de desenvolvimento. O oleiro que modela um vaso esforçando-se para exprimir com o barro suas emoções estéticas, jamais pode esquecer que sua obra deverá conter um líquido e, eventualmente, ir ao fogo. O cesteiro que trança uma esteira e procura emprestar-lhe maior beleza, não pode ignorar também sua finalidade de uso.

Enquanto naquelas atividades artísticas tribais a procura de beleza é o acessório, o dispensável em face da finalidade utilitária da obra, na arte plumária ela é o fundamental, o elemento imperativo. E seu caminho para alcançá-la é, na maioria dos casos, o dos arranjos puramente formais, despidos de intenção simbólica ou figurativa.

Embora frequentemente associada a diversas esferas da cultura, a plumária jamais perde seu caráter de pura expressão artística. Ao contrário, por ser a mais refinada criação estética de um povo é que pode servir de insígnia aos seus líderes religiosos, simbolizar o poder dos seus chefes ou constituir o apanágio dos heróis guerreiros. Nestes casos não passa a constituir mero item do cerimonial religioso, do simbolismo político ou guerreiro, simplesmente empresta a estes campos o seu prestígio de arte realizada que sintetiza os ideais estéticos de um povo.

Nesta linguagem muda de conteúdos manifestos mas tão altamente estéticos, é que os índios do Brasil exprimem mais vigorosamente sua alegria de viver, a grandiosidade de seus cerimoniais e, sobretudo, a oportunidade de realização estética de que gozam enquanto puderam manter sua autonomia cultural.

Texto de Darcy Ribeiro e Bertha Ribeiro

domingo, 11 de dezembro de 2011

PERSPECTIVISMO AMERÍNDIO


Se pudéssemos caracterizar em poucas palavras uma atitude básica das culturas indígenas, diríamos que as relações entre a sociedade humana e os componentes de seu ambiente são pensadas e vividas como relações sociais, isto é, relações entre pessoas. O saber indígena, se está fundado como o nosso próprio em uma teoria instrumental das relações de causalidade, está associado à imagem de um universo comandado pelas categorias de agência e da intencionalidade, isto é, depende de uma experiência sociomórfica do cosmo: a “física” e a “semântica” indígenas são ontologicamente coextensivas e epistemologicamente co-intensivas. A natureza não é “natural”, isto é, passiva, objetiva, neutra e muda – os humanos não têm o monopólio da posição de agente e sujeito, não são o único foco da voz ativa no discurso cosmológico.

Se a categoria que comanda as relações entre homem e natureza é, para a modernidade, a categoria da produção, concebida como ato prometeico de subordinação da matéria ao desígnio humano, para as sociedades amazônicas a categoria paradigmática é a de reciprocidade, isto é, a comunicação entre sujeitos que se interconstituem no e pelo ato da troca – troca que pode ser violenta e mortal, mas que não pode deixar de ser social.

A “reprodução” das sociedades indígenas é assim concebida e vivida sob o signo de uma circulação de propriedades simbólicas entre os humanos e os demais habitantes do cosmos, e não por analogia com a produção de bens materiais a partir de uma natureza informe. Se as ideologias modernas tendem a ver as sociedades indígenas, para bem ou para mal, como parte da natureza – mas isto é verdade para toda a sociedade humana –, podemos então dizer que as culturas indígenas tendem a ver a natureza como parte da sociedade, ou antes, mergulhada, tanto quanto o mundo humano, em um meio universalmente social – o que não é menos universalmente verdadeiro.

O verdadeiro problema, portanto, não é determinar a relação das sociedades indígenas com a nossa Natureza; o problema é saber como as sociedades indígenas, ao se auto-determinarem conceitualmente, constituem suas próprias dimensões de exterioridade. Cabe, então, indagar: como a questão se coloca para os índios?

Tomei emprestado ao vocabulário filosófico um termo para qualificar aspecto marcante de várias, talvez de todas as culturas nativas do Novo Mundo: seu PERPECTIVISMO COSMOLÓGICO. Trata-se da noção de que o mundo é povoado de um número indefinitamente grande de espécies dotadas de consciência e cultura. Isso está associado à idéia de que a forma manifesta de cada espécie é envoltório a esconder uma forma interna humana, normalmente visível apenas aos olhos da própria espécie ou de certos seres transespecíficos, como os xamãs. Essa forma interna é o espírito do animal: uma intencionalidade formalmente idêntica à consciência humana, materializada em esquema corporal humano oculto sob a máscara animal.

Até aqui, nada de muito característico: a idéia de que a espécie humana não é um caso à parte dentro do mundo, e de que há mais pessoas no céu e na terra do que sonham nossas antropologias, é muito difundida entre as culturas tradicionais de todo o planeta. O que distingue as cosmologias ameríndias é um desenvolvimento sui generis desta idéia, a saber, a afirmação de cada uma dessas espécies é dotada de um ponto de vista singular, ou melhor, é constituída como um ponto de vista singular.

Assim, o modo como os seres humanos vêem os animais e outras subjetividades que povoam o universo – deuses, espíritos, mortos, habitantes de outros níveis cósmicos, plantas, fenômenos meteorológicos, acidentes geográficos, objetos e artefatos –, é diverso do modo como esses seres vêem os humanos e vêem a si mesmos. Cada espécie de ser, a começar pela nossa própria, vê-se a si mesma como humana. Assim, as onças se vêem como gente: cada onça individual vê a si mesma e a seus semelhantes como seres humanos, isto é, como organismos anatômica e funcionalmente idênticos aos nossos. Além disso, cada espécie ou tipo de ser vê certos elementos-chave de seu ambiente como se fossem objetos culturalmente elaborados, como suportes de uma visada humana: o sangue dos animais que matam é visto pelas onças como cerveja de mandioca, o barreiro em que se espojam as antas é visto como uma grande casa cerimonial, os grilos que os espectros os mortos comem são vistos por estes como peixes assados, etc.

Em contrapartida, os animais não vêem os humanos como humanos. As onças, assim, nos vêem como animais de presa: porcos selvagens, por exemplo. É por isso que as onças nos atacam e devoram, pois todo ser humano que se preza aprecia a carne de porco selvagem. Quanto aos porcos selvagens (isto é, aqueles seres que vemos como porcos selvagens), esses também se vêem como humanos, olhando, por exemplo, as frutas silvestres que comem como plantas cultivadas, enquanto a nós humanos como espíritos canibais – pois os matamos e comemos. Em suma: os humanos, em condições normais, vêem os humanos como humanos e os animais como animais (e os espíritos como espíritos, ou melhor, não os vêem; ver estes seres usualmente invisíveis é um signo seguro de que as “condições” não são normais). Os animais predadores e os espíritos, de seu lado, vêem os humanos como animais de presa, ao passo que os animais de presa vêem os humanos como espíritos ou como animais predadores.

Essas idéias possuem fundamento na mitologia. Se há uma noção virtualmente universal no pensamento ameríndio, é aquela de um estado originário de co-acessibilidade entre os humanos e os animais. As narrativas míticas são povoadas de seres cuja forma, nome e comportamento misturam inextricavelmente atributos humanos e não-humanos, em contexto comum de intercomunicabilidade idêntica ao que define o mundo intra-humano atual.

O propósito da mitologia, com efeito, é narrar o fim desse estado pré-cosmológico: trata-se da célebre separação entre “cultura” e “natureza” analisada na monumental tetralogia Mitológicas de Lévi-Strauss. Mas não se trata aqui de uma diferenciação do humano a partir do animal, como é o caso em nossa mitologia evolucionista moderna. A condição original, comum aos humanos e animais, não é a animalidade mas a humanidade. A grande divisão mítica mostra menos a cultura se distinguindo da natureza que a natureza se afastando da cultura: os mitos contam como os animais perderam os atributos herdados ou mantidos pelos humanos; os animais são ex-humanos, e não os humanos ex-animais. Se nossa antropologia popular vê a humanidade como erguida sobre alicerces animais, normalmente ocultos pela cultura – tendo outrora sido “completamente” animais, permanecendo, “no fundo”, animais –, o pensamento indígena conclui ao contrário que, tendo outrora sido humanos, os animais e outros seres do cosmos continuam a ser humanos, mesmo que de modo não-evidente.

Mas isso suscita uma questão crucial. Se os seres não-humanos são pessoas e têm almas, em que se distinguem dos humanos? E por que, se são gente, não nos vêem como gente? Por que seus pontos de vista são diversos do nosso?

A idéia de mundo que compreende uma multiplicidade de posições subjetivas traz logo à mente a noção de “relativismo cultural”. E de fato, menções diretas ou indiretas ao relativismo são freqüentes nas descrições antropológicas das cosmologias ameríndias. Como os antropólogos, os índios seriam relativistas culturais, só que estenderiam “animisticamente” este relativismo a outras espécies além da nossa: cada espécie veria o mundo à sua maneira, exatamente como, para os antropólogos, cada cultura humana vê o mundo à sua. (Não deixa de ser curioso que cada um, espécie ou cultura, veja o mundo a seu próprio modo, mas que os antropólogos e os índios o vejam do mesmo modo...)

Mas há aqui um mal-entendido do qual se pode tirar lições interessantes. O relativismo cultural moderno, ao supor a equivalência entre uma multiplicidade de representações sobre o mundo, pressupõe um mesmo mundo subjacente a esta multiplicidade: uma natureza “sob” várias culturas. Mas basta considerar o que dizem as etnografias para perceber que é o exato inverso que se passa no caso ameríndio: todo os seres vêem ou “representam” o mundo da mesma maneira – o que muda é o mundo que eles vêem. Os animais utilizam as mesmas idéias e valores que os humanos: sues mundos, como o nosso, giram em torno da caça e da pesca, da cozinha e das bebidas fermentadas, dos ritos e da guerra, dos xamãs, chefes, espíritos, etc. “O ser humano se vê a si mesmo como tal; a lua, a serpente, o jaguar e a mãe da varíola o veem, contudo, como um tapir ou um pecari, que eles matam”, anota o etnógrafo G.  Baer sobre os Matsiguenga da selva peruana. Só poderia ser assim, pois, sendo gente em seu próprio departamento, seres não-humanos como a lua, a serpente ou o jaguar vêem as coisas como “a gente” vê. Mas as coisas que eles vêem são outras: o que para nós é sangue, para o jaguar é cauim; o que para as almas dos mortos é um cadáver podre, para nós é a mandioca fermentando; o que vemos como um barreiro lamacento, para as antas é uma grande casa cerimonial.

O perspectivismo não é um relativismo, mas um multinaturalismo. O relativismo cultural, um “multiculturalismo”, supõe uma diversidade de representações subjetivas e parciais, incidentes sobre uma natureza externa, uma e total, indiferente à representação; os ameríndios propõem oposto: uma unidade representativa aplicada indiferentemente sobre uma diversidade real. Uma só “cultura”, múltiplas “naturezas”; epistemologia constante, ontologia variável – o perspectivismo é um multinaturalismo, pois uma perspectiva não é uma representação.

Uma perspectiva não é uma representação porque as representações são propriedades do espírito, mas o pondo de vista está no corpo. Ser capaz de ocupar o ponto de vista é sem dúvida uma potência da alma, e os não-humanos são sujeitos na medida em que têm (ou são) um espírito; mas a diferença entre os pontos de vista – e um ponto de vista não é senão diferença – não está na alma. Esta, formalmente idêntica através das espécies, só enxerga a mesma coisa em toda parte; a diferença deve então ser dada pela especificidade dos corpos. Isso permite responder à pergunta feita acima: por que, sendo gente, os não-humanos não nos vêem como gente?

Os animais vêem da mesma forma que nós coisas diversas do que vemos porque seus corpos são diferentes dos nossos. Não estou me referindo às diferenças de fisiologia – quanto a isso, os ameríndios reconhecem uma uniformidade básica dos corpos –, mas aos afetos, afecções ou capacidades que singularizam cada espécie de corpo: o que ele come, como se move, como se comunica, onde vive, se é gregário ou solitário... A diferença de afecção, embora possa ser enganadora, pois uma figura de humano, por exemplo, pode estar ocultando uma afecção-jaguar. O que estou chamando de “corpo”, portanto, não é sinônimo de fisiologia distintiva ou de anatomia característica; é um conjunto de maneiras ou modos de ser que constituem um habitus. Entre a subjetividade formal das almas e a materialidade substancial dos organismos, há esse plano central que é o corpo como feixe de afecções e capacidades, que é a origem das perspectivas.

Longe do essencialismo espiritual do relativismo, o perspectivismo é um maneirismo corporal. A diferença dos corpos, entretanto, só é apreensível de um ponto de vista exterior, para outrem, uma vez que, para si mesmo, cada tipo de ser tem a mesma forma (a forma genética do humano): os corpos são o modo pelo qual a alteridade é apreendida como tal. Não vemos, em condições normais, os animais como gente, e reciprocamente, porque nossos corpos respectivos (e perspectivos) são diferentes.

Texto de Eduardo Viveiros de Castro

LÍNGUAS INDÍGENAS DO BRASIL NO SÉCULO XXI


Admite-se que o povo brasileiro tem em suas raízes o branco, o negro e índio, porém, quanto à real participação na história e cultura brasileiras, a presença indígena é apagada ao máximo e, quando muito, vista como algo genérico. Resulta deste apagamento que, ainda no século XXI, se difunde a idéia de que o Brasil é um país monolíngüe e de cultura única. Após 500 anos de penoso contato, violências e discriminações, sobrevivem mais de duzentos povos indígenas, com suas crenças, costumes, organização social e visão de mundo próprios, falantes de umas 180 línguas distintas.

As línguas ameríndias, assim como outras línguas nativas, receberam os qualificativos de “primitivas” ou “exóticas”. Esse preconceito está relacionado ao fenômeno do etnocentrismo: os indivíduos tendem a encarar as demais culturas pelo prisma de sua própria, considerando como anormal, estranho ou exótico tudo o que dela diverge. Afirma Mattoso Câmara: “Em relação à língua o etnocentrismo ainda é maior, porque a língua se integra no indivíduo e fica sendo o meio permanente do seu contato com o mundo extralingüístico, com o universo cultural que o envolve, de tal sorte que se cria uma associação íntima entre o símbolo lingüístico e aquilo que ele representa”.

A afirmativa, válida para qualquer língua, aplica-se mais às línguas indígenas, de culturas distintas da ocidental. Acresce que são línguas de tradição oral, o que parece implicar diferenciação em relação às ocidentais, pela importância da língua escrita nessas últimas.

Entretanto, como qualquer outra das cerca de seis mil línguas naturais existentes, as línguas indígenas são organizadas segundo princípios gerais comuns e constituem manifestações da capacidade humana da linguagem. Cada uma constitui um sistema complexo, com um conjunto específico de sons, categorias e regras de estruturação, perfeitamente adequada a cumprir as funções de comunicação, expressão e transmissão. Cada uma reflete em seu vocabulário “as distinções e equivalências que são de intenção na cultura da sociedade na qual ela opera” (Lyons). E se as línguas indígenas apresentam propriedades diferentes de línguas indo-européias, isto implica simplesmente que elas são distintas do ponto de vista tipológico.

Desde a chegada dos portugueses ao Brasil a existência de povos indígenas e de suas línguas tornou-se conhecida, mas não completamente. O primeiro contato ocorreu com povos tupi da costa brasileira e, exceto o kariri, a língua por eles falada foi a única estudada nos primeiros trezentos anos de colonização. Os materiais lingüísticos foram produzidos sobretudo por missionários jesuítas portugueses, entre os quais se destacam o padre José de Anchieta, que em 1595 publicou uma gramática tupi, e do padre Luis Figueira, de 1621, sobre a mesma língua. Há materiais produzidos por não missionários, destacando-se o francês Jean de Léry, que deixou observações sobre aspectos do tupi (o ava-nheeng, literalmente “língua da gente” – de “ava”: gente e “nhe’eng”: fala, língua).

As demais línguas, faladas por povos considerados do grupo “tapúya” (tupi: “bárbaro, inimigo”) eram denominadas de “travadas”, de difícil entendimento, em contraste com o tupi jesuítico, o nheengatu (tupi, “nhe’eng”: língua + “katu”, bom) – a “língua boa”. Este desenvolveu-se como “língua geral” da colônia e ainda sobrevive na região do Rio Negro.

Já apontadas por Câmara Jr., as características principais dos materiais lingüísticos desse época são:
1 – referência somente à língua tupi, uma generalização de variantes próximas, também chamada de “brasílica” nos séculos XVI e XVII, e de “tupinambá”, após o século XVIII, ou de “tupi-guarani”;
2 – focalização da língua não como objeto de estudo, mas para estabelecer comunicação com os falantes nativos e promover sua catequese; e
3 – abordagem da língua com base no aparato conceitual então disponível – o de descrição das gramáticas clássicas, particularmente a latina.

A ênfase dada ao estudo do tupi no Brasil colônia continuaria posteriormente pelo desenvolvimento de uma “filologia tupi”: o estudo de materiais escritos em tupi, legados em especial por missionários, focalizando também a influência da língua no português, e o nheengatu, foi em grande parte responsável pela idéia, ainda hoje difundida, de que no Brasil havia o tupi, ou tupi-guarani, língua extinta da qual se fala no passado, apagando-se a existência das demais línguas.

Informações sobre línguas não tupi começaram a surgir no século XIX, pelo trabalho de missionários e de estudiosos que mantiveram contato direto com falantes nativos, por força de pesquisas voltadas para suas áreas particulares de interesse. Incluem-se europeus (geógrafos, naturalistas, etnólocos), como von den Steine, Wied-Neuwied, Martius, Castelnau, Koch-Grümberg, Manizer; brasileiros: Couto Magalhães, Capistrano de Abreu, Visconde de Taunay, e missionários como Val Floriana, A. Giaconi, Fidélis de Alviano, A. Kruse.

Os trabalhos desse período não tinham como objetivo central a língua em si, mas eram voltados à catequese, no caso de missionários, ou aos interesses específicos de cada pesquisador. Os estudos consistem, via de regra, de listas lexicais, sendo raras as tentativas de descrição de aspectos gramaticais, e as transcrições eram, com poucas exceções, predarias, impressionísticas. No período, foi dada atenção a línguas não tupi, e os materiais produzidos permitiram análises comparativas que basearam o trabalho de classificação inicial de nossas línguas e, muitas vezes, são a única informação existente sobre as hoje extintas. Quanto aos materiais sobre línguas indígenas brasileiras produzidos até a primeira metade do século XX, cumpre notar que alguns trabalhos, como o de Anchieta, sobre o tupi, o de Steinen sobre os bakairi e o de Capistrado sobre o kaxinawá, são reconhecidos como mais elucidativos do que muitos produzidos por lingüistas contemporâneos.

A preocupação com estudo científico das línguas indígenas brasileiras aparece nos anos 1930, como os de José Oiticica, nos quais se criticava a orientação existente e se preconizava a necessidade de proceder à documentação sistemática dessas línguas. Na época, embora a lingüística estivesse em fase de grande desenvolvimento no exterior, inexistia no Brasil. O quadro institucional de nossas universidades só previa o ensino de línguas clássicas e literárias modernas, numa orientação profissionalizante que excluía a pesquisa. O processo de implementação da lingüística somente ocorreria a partir dos anos 1960 e, na disciplina, o desenvolvimento de estudos das línguas indígenas foi retardado por vários fatores, entre eles a vinda para o Brasil do Summer Institute of Linguistics (SIL), conhecido como Instituto Linguístico de Verão, ou “Summer”, instituição missionária que usou o trabalho lingüístico como roupagem e meio de desenvolver a catequese.

O ingresso do SIL no país ocorreu em fins dos anos 1950, através de convênio com o Museu Nacional, e recebeu apoio no meio antropológico, pois esperava-se que os lingüistas do Summer tomassem a si a tarefa de descrever as línguas indígenas, “salvando-as” para a posteridade, e contribuindo para a formação de lingüistas brasileiros. A última expectativa não se confirmou: os lingüistas brasileiros que trabalham com línguas indígenas receberam formação no exterior ou aqui, sob a orientação de brasileiros. Somente no início lingüistas do SIL prestaram alguma colaboração, conduzindo cursos nas instituições a que o Instituto esteve ligado – o Museu Nacional e a UnB – e participaram de outras atividades acadêmicas, porém a tendência foi de afastamento em relação aos lingüistas brasileiros. Quanto à documentação lingüística, houve contribuição do SIL, mas, apesar de significativo, o material produzido ficou aquém do esperado, considerando-se o período abrangido, as excelentes condições de pesquisa e o tempo desprendido por seus lingüistas junto às comunidades falantes das línguas. Embora a qualidade da produção seja variável, os resultados deixam a desejar.

A partir da década de 1980 a lingüística indígena experimentou grande desenvolvimento, com crescente número de lingüistas brasileiros engajados no estudo de nossas línguas e na formação de especialistas, com aumento quantitativo e qualitativo na produção de trabalhos. Grande parte os especialistas estão envolvidos na formação de professores indígenas, incluindo o treinamento em lingüística.

Atualmente, cerca de 180 línguas indígenas são faladas no Brasil, mas não há absoluta certeza quanto ao número, devido às dificuldades inerentes à definição técnica do que seja propriamente uma língua (em relação a dialeto, formas antigas e modernas, etc.), agravadas pela carência de informações sobre as línguas e seus falantes.

Estima-se que, nos 500 anos de colonização, umas mil línguas se perderam pelo desaparecimento dos falantes, por epidemias, extermínio direto, escravização, redução de territórios, destruição das condições de sobrevivência e aculturação forçada, entre outros fatores que acompanham as frentes de expansão do Brasil colônia até hoje. Exemplo atual é o avanço sobre a área Terra do Sol, em Roraima, habitada por indígenas makuxi, wapixana, ingarikó e taurepang. A extensão da perda pode ser visualizada pela localização atual de grupos e línguas indígenas: estão concentrados no Amazonas, Acre, Pará, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Rondônia, Roraima, Tocantins e, em menor proporção, noutros estados, tendo desparecido praticamente de toda parte leste, de norte a sul do país, até em parte da Amazônia. Por exemplo, a família lingüística botocudo, uma das mais extensas do Brasil, cujos falantes ocupavam no passado a área entre o Rio Pardo, na Bahia, e o Rio Doce, em Minas Gerais e Espírito Santo, está hoje reduzida a um único grupo, o krenak-nakrehé.

As sobreviventes línguas indígenas brasileiras apresentam grande diversidade lingüística. A despeito de materiais muito deficitários, foi possível estabelecer uma classificação genética dessas línguas, agrupando-as em famílias e troncos lingüísticos.

O tronco tupi, estabelecido bem claramente, é um dos grandes agrupamentos, ao lado do tronco macro-jê e das famílias aruák, karíb e pano. É constituído por sete famílias genéticas: tupi-guarani (com 33 línguas e dialetos no Brasil), monde (com 7 línguas), tuparí (com 3 línguas), juruna, mundurukú e ramarána (cada uma com 2 línguas), incluindo ainda três línguas isoladas no nível de família: awetí, sateré-mawé e puruborá. A família tupi-guarani caracteriza-se por grande dispersão: suas línguas são faladas em diferentes regiões do Brasil e em outros países da América do Sul (Bolívia, Peru, Venezuela, Guiana Francesa, Colômbia, Paraguai e Argentina). As demais famílias do tronco tupi estão todas localizadas no Brasil, ao sul do Rio Amazonas.

No tronco macro-jê, definido com base em evidências menos claras, são incluídas cinco famílias genéticas: jê (com 27 línguas e dialetos), bororo (com 2 línguas), botocudo (com 1 língua), karajá e maxakali (com 3 línguas cada), e ainda quatro línguas: guató, ofayé, rikbaktsá e yatê ou fulinô. As línguas (e dialetos) filiadas a esse tronco, exclusivamente brasileiro, são faladas em particular em áreas de campos e cerrados, do sul do Maranhão e do Pará, e estados do Centro-Oeste e do Sul do país.

A família karib é representada no Brasil por 20 línguas, distribuídas no norte do Rio Amazonas – Amapá, Roraima, Pará e Amazonas, e ao sul, ao longo do Rio Xingu. Outras línguas dessa família soa faladas nas Guianas e na Venezuela.

Dezessete línguas representam a família aruák (ou arawák) no Brasil, sendo faladas nos estados de Amapá, Roraima, Acre, Amazonas, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. A família inclui outras línguas faladas fora do Brasil.

A família pano abrange 13 línguas faladas no Brasil – Acre, Rondônia e Amazonas –, ainda pouco estudadas, além das faladas no Peru e na Bolívia.

Outras famílias lingüísticas são: o tucano, com 11 línguas e vários dialetos; arawá, com 7 línguas; maku, com 6 línguas, katukina e yanomámi, cada uma com 4 línguas; txapakura e nambikwára, com 3 línguas cada; mura, com 2 línguas e gaikuru, com 1 língua falada no Brasil.

Há ainda 10 línguas indígenas classificadas como isoladas, isto é, como constituindo tipos lingüísticos únicos: tikuna, irantxé/münku, trumái, aikaná, arikapu, jabuti, kanoê e koaia ou kwazá.

Este rápido panorama sobre as línguas indígenas brasileiras que sobreviveram ao século XX suscita a relevância de estudá-las e pesquisá-las, considerando-se que a lingüística busca compreender a natureza da linguagem humana, caracterizada pela unidade na diversidade, manifesta em cada língua de forma particular.

Texto de Lucy Seki

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

CINCO EQUÍVOCOS SOBRE AS CULTURAS INDÍGENAS



Se não tivermos conhecimento correto sobre a história indígena, não poderemos explicar o Brasil contemporâneo. As sociedades indígenas constituem um indicador extremamente sensível das características da sociedade que com elas interage. A sociedade brasileira se desnuda e se revela no relacionamento com os povos indígenas. Nesse sentido, buscar compreender as sociedades indígenas não é apenas procurar conhecer “o outro”, “o diferente”, mas implica conduzir as indagações e reflexões sobre a própria sociedade em que vivemos.

1° EQUÍVOCO – O ÍNDIO GENÉRICO
A primeira idéia que a maioria dos brasileiros tem sobre os índios é a de que eles constituem um bloco único, com a mesma cultura, compartilhando as mesmas crenças, a mesma língua. Ora, este equívoco reduz culturas tão diferenciadas a uma entidade supraétnica. O Tukano, o Desana, o Munduruku, o Waimiri-Atroari deixam de ser Tukano, Desana, Munduruku e Waimiri-Atroari para se transformar no “ÍNDIO”, isto é, no ÍNDIO GENÉRICO.

Hoje vivem no Brasil mais de 200 etnias, falando 188 línguas diferentes. Cada povo desses tem língua, religião, arte, ciência e dinâmica histórica próprias, diferenciando-se uns dos outros. Só para se ter noção dessa enorme diversidade, quando Frei Gaspar Carvajal desceu o rio Amazonas, em 1540, encontrou ali povos que falavam dezenas de línguas diferentes, tão diferentes entre elas como o português e o alemão. Trabalho feito pelo lingüista tcheco Cestmir Loukotka, em 1968, sobre classificação de línguas, mostrou que na Amazônia brasileira, em 1500, eram faladas mais de 700 línguas diferentes.

O grau de intercomunicação entre eles é variável. A diferença que pode haver entre a língua makuxi e a ingaricó, ambas do tronco lingüístico karib, é comparável à existente entre o português e o espanhol, ou seja, é possível estabelecer um nível mínimo de comunicação. No entanto, não é o que ocorre, por exemplo, entre a língua makuxi (karib) e a wapixana (aruák); entre línguas de troncos diferentes, as diferenças podem ser comparáveis à existente entre o alemão e o português, sem condição de entendimento.

2° EQUÍVOCO – CULTURAS ATRASADAS
A segunda idéia equivocada é considerar as culturas indígenas como sendo ATRASADAS e PRIMITIVAS. Os povos indígenas produziram saberes, ciências (em moldes diversos da nossa ciência), arte refinada, literatura, poesia, música, religião. Suas culturas não são atrasadas como durante muito tempo pensaram os colonizadores e como ainda pensam os mal-informados.

As línguas indígenas, por exemplo, foram consideradas pelo colonizador, equivocadamente, como línguas “inferiores”, “pobres”, “atrasadas”. Ora, os lingüistas sustentam que qualquer língua é capaz de expressar qualquer idéia, pensamento, sentimento e que, portanto, não existe uma língua melhor que a outra, nem língua inferior ou mais pobre que outra. As pessoas, no entanto, confundem muitas vezes as línguas com os falantes. O que existe são falantes que, na estrutura social, ocupam posições privilegiadas ou não.

As religiões indígenas também foram consideradas pelo catolicismo guerreiro, no passado, como conjunto de superstições. Entretanto, basta entrar em contato com as formas de expressão religiosa de qualquer grupo indígena, para verificar quanto esta visão é etnocêntrica e preconceituosa. Os Guarani, por exemplo, são considerados por estudiosos como “os teólogos da floresta”, devido à sua profunda religiosidade, que se manifesta a todo momento, no cotidiano, penetrando nas diversas esferas da vida. As próprias atividades econômicas aparecem muitas vezes como simples pretexto para a realização de cerimônias. A colheita de produtos de roça pode ser motivo para rezas e danças rituais. O ciclo econômico anual é, antes de mais nada, um ciclo de vida religiosa, que acompanha as diversas atividades de subsistência. A religião é, assim, um dos mais importantes fatores de identidade para os Mbyá.

As ciências indígenas também foram tratadas de forma preconceituosa pela sociedade brasileira. Os conhecimentos indígenas foram desprezados e ridicularizados, como se fossem a negação da ciência e da objetividade. O antropólogo Darell Posey explicou que existem índios especialistas em solos, plantas, animais, colheitas, remédios e rituais. Mas tal especialização não impede, no entanto, que qualquer homem ou mulher Kayapó tenha absoluta convicção de que detém os conhecimentos e as habilidades necessárias para sobreviver sozinho na floresta, indefinidamente, o que lhe dá grande segurança. Segundo Posey, “se o conhecimento do índio for levado a sério pela ciência moderna e incorporado aos programas de pesquisa e desenvolvimento, os índios serão valorizados pelo que são: povos engenhosos, inteligentes e práticos, que sobreviveram com sucesso por milhares de anos na Amazônia. Essa posição cria uma ‘ponte ideológica’ entre culturas que poderia permitir a participação dos povos indígenas, com o respeito e a estima que merecem, na construção de um Brasil moderno”.

O preconceito contra as línguas, as religiões e as ciências produzidas pelos índios alcançou também as artes, sobretudo a literatura. Os diferentes povos indígenas produziram uma literatura sofisticada, que foi menosprezada porque as línguas indígenas eram ágrafas (não possuíam escrita) e essa literatura foi passada de geração em geração através da tradição oral. As várias formas de narrativa e de poesia indígenas, por isso, não são consideradas como parte da história da literatura nacional, nem ensinadas nas escolas, tampouco reconhecidas e valorizadas pela mídia.

No século passado e no início deste século, vários estudiosos recolheram, no Pará e no Amazonas, literatura oral de primeiríssima qualidade. Um deles foi o general Couto de Magalhães, que não era militar mas advogado e político mineiro, que recebeu a patente de general porque, quando era presidente da província do Mato Grosso, comandou as tropas brasileiras na guerra do Paraguai. Como se sabe, o Império do Brasil se compunha de províncias e não de estados, e quem as governava tinha o cargo de presidente e não de governador. Pois bem, Couto Magalhães foi presidente de Mato Grosso, São Paulo e Pará. Ele não tinha, em princípio, qualquer motivo para simpatizar com os índios e compartilhava de todos os preconceitos de que falamos. No entanto, quando viajou ao Pará, no barco ouviu um índio contanto histórias, durante horas, para uma platéia atenta de tripulantes, que ria e participava ativamente. Curioso, Couto de Magalhães se aproximou e ouviu que falavam uma língua que não entendia: o nheengatu. Decidiu então aprender essa língua, só para conhecer as histórias. Ficou apaixonado com a beleza da literatura indígena, equiparando-a à grega. Recolheu e registrou muitas histórias, como aquelas que têm por personagem o Jabuti. Essas narrativas tinham na verdade a função educativa de transmitir valores e formas de comportamento. Couto de Magalhães comentou, em inteligente observação, que um povo cuja literatura tem um personagem como o Jabuti, lento e feio, que consegue vencer animais belos e fortes como a onça e o jacaré, só usando a astúcia, é um povo que tem civilização “para dar e vender”. “Um vomo que ensina que a inteligência vence a força, é um povo altamente civilizado, é um povo altamente sofisticado”, afirma.

Muitos recolheram narrativas que, talvez agora, com a recente legislação (Lei n° 11.645, de 10/03/2008, incluindo no currículo oficial de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”) possam chegar aos estudantes e à população brasileira, permitindo que não ignorem mais esse patrimônio cultural da humanidade – a literatura indígena.

3° EQUÍVOCO – CULTURAS CONGELADAS
O terceiro equívoco é a idéia do “CONGELAMENTO” das culturas indígenas. Criou-se para a maioria dos brasileiros a imagem de como deveria ser o índio: nu ou de tanga, no meio da floresta, de arco e flecha, como descrito por Pero Vaz de Caminha. Essa imagem foi “congelada”, persistindo até hoje. Qualquer mudança nela provoca estranhamento. Quando o índio não se enquadra nessa imagem, vem logo a reação: “Ah! Não é mais índio”. Para essas pessoas, o “índio autêntico” é o da carta de Caminha e não aquele índio de carne e osso que conosco convive, que está hoje no meio de nós.

Para impedir a demarcação de terras indígenas e reforçar preconceitos, diz-se: “esses ai não são mais índios, já estão de calça e camisa, de óculos e relógio, e falando português, não são mais índios”. Cria-se uma nova categoria, desconhecida pela etnologia: o ex-índio! Alias, isso acontece com todos nós. O uso de jeans, tão corrente no Brasil, não foi inventado por nenhum brasileiro. A forma de construir em concreto armado também não é técnica brasileira. A tecnologia do telefone celular e do computador não é brasileira, enfim, toda essa parafernália que usamos – os milhares de itens culturais presentes no nosso cotidiano – não tem necessariamente suas raízes em solo brasileiro.

Então, o brasileiro pode usar coisas produzidas por outros povos – computador, telefone, televisão, relógio, rádio, aparelho de som, luz elétrica, água encanada – e nem por isso deixa de ser brasileiro. Mas o índio, se fizer o mesmo, deixa de ser índio. Quer dizer, nós não concedemos às culturas indígenas aquilo que queremos para a nossa: o direito de entrar em contato com outras culturas e de, como conseqüência, mudar.

4º EQUÍVOCO – OS ÍNDIOS FAZEM PARTE DO PASSADO
O quarto equívoco consiste em pensar que os índios fazem parte apenas do passado do Brasil. Num texto de 1997, sobre biodiversidade, sob a ótica de um índio, Jorge Terena escreveu que uma das consequências mais graves do colonialismo foi justamente taxar de “primitivas” as culturas indígenas, considerando-as como obstáculo à modernidade e ao progresso: “(Eles) vêem a tradição viva como primitiva, porque não segue o paradigma ocidental. Assim, os costumes e as tradições, mesmo sendo adequados para a sobrevivência, deixam de ser considerados como estratégia de futuro, porque são ou estão no passado. Tudo aquilo que não é do âmbito do Ocidente é considerado do passado, desenvolvendo uma noção equivocada em relação aos povos tradicionais, sobre o seu espaço na história”.

Os índios, na verdade, estão encravados no nosso passado, mas integram o Brasil moderno, e não é possível imaginar o Brasil do futuro sem a riqueza das culturas indígenas. Se isto por acaso ocorresse, o país ficaria pobre, muito pobre, e feio, muito feio.

 

5º EQUÍVOCO – O BRASILEIRO NÃO É ÍNDIO
Por último, o quinto equívoco é o brasileiro não considerar existência do índio na formação de sua identidade. Há 500 anos não existia no planeta Terra o povo brasileiro. Esse povo é novo, foi formado nos últimos cinco séculos com a contribuição, entre outras, de três grandes matrizes: as européias, assim no plural, representadas basicamente pelos português, mas também pelos espanhóis, franceses, italianos, alemães, poloneses, etc.; as africanas, também no plural, da qual participaram diferentes povos como os sudaneses, yorubás, nagôs, gegês, ewes, haussás, bantos e outros tantos. E também as matrizes indígenas, formadas por povos de várias famílias lingüísticas como o tupi, o karib, o aruák, o jê, o tukano e muitos outros.

Depois as migrações de outros povos como os japoneses, os sírio-libaneses, os turcos, vieram enriquecer ainda mais a nossa cultura. No entanto, como os europeus dominaram política e militarmente os demais povos, a tendência do brasileiro, ainda hoje, é se identificar apenas como “vencedor” – o de matriz européia – ignorando as culturas indígenas e africanas. Isso reduz e empobrece o Brasil, porque acaba apresentando aquilo que é apenas uma parte, como se fosse o todo.

O índio, no entanto, permanece vivo dentro de cada um de nós, mesmo que não saibamos disso. Não é uma questão genética, é uma questão cultural. Ao fazermos nossas opções de culinária, música, dança, poesia, de onde saem os critérios de seleção? É ai que afloram as heranças culturais, incluindo as indígenas e as negras.

No entanto, se não vemos o índio e os negros como antepassados, é porque acabamos por assumir a identidade veiculada pela ideologia dominante, que reivindica apenas a matriz européia, que nos deu a base da língua que falamos e marcou inapelavelmente nossa cultura, e da qual temos motivos para nos orgulhar. No entanto, precisamos também conhecer e ter orgulho da contribuição das culturas indígenas e das diferentes culturas africanas que marcaram a nossa forma de ser.

Esses não são os únicos equívocos que cometemos em relação aos nossos índios e a nós mesmos, mas talvez sejam aqueles que mereçam urgentemente ser discutidos e reconsiderados.

Texto de JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE
Coordenador do Programa de Estudo dos Povos Indígenas / UERJ