quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

JURITI-PEPENA... o tajá que pia.

A filha de um pajé foi abandonada pelo amado, em troca de outra donzela. Tão grande foi a desilusão e de tal forma ficou ferido o coração da jovem desprezada, que esta não resistiu à dor da separação e faleceu. O pajé, pai da infeliz, transformou-a na jurutí, e no local onde foi enterrada surgiu uma planta – o tajá (tinhorão) – que encerrava alma da desditosa e apaixonada criatura. Essa planta, empregada em sortilégios de amor, enfeitiça os amantes traidores, que passam a ser perseguidos pelo piar da ave, até que se cumpra a maldição, isto é, até que aquele que trocou de amores fique inválido, paralítico.

São inúmeros os fenômenos que ocorrem nos confins d
o sertão e que mantêm o indígena e o caboclo em constante sobressalto. Eles identificam o sobrenatural a todo o momento, e em diferentes lugares: no ar, nas águas, nos montes, nas cavernas e na selva. Algumas presenças se traduzem em bom augúrio, outras o assustam e o atormentam. O seu espírito e a sua conduta, por isso, variam de instante a instante. As teias e os movimentos da aranhas, o carreiro das formigas, o zumbido dos insetos, a coloração do céu e as formas das nuvens são interpretados como porta-vozes dos espíritos. O canto e o vôo dos pássaros, também são tidos como portadores de mensagens.

Há, por exemplo, um som curioso, que em determinadas situações parte do interior ou das proximidades de uma touceira de tajá: é um arrulho repetitivo e tristonho que parece estar perto de nós, do nosso lado, sobre a nossa cabeça, sem que a gente consiga ver o misterioso pássaro cantador. Podemos até remexer os arbustos, nada encontramos, nem nós nem os cachorros. Não é sempre que o fenômeno ocorre, mas quando começa, custa a parar. Sem uma explicação científica que o justifique, é possível que o rumor seja devido ao desabrochar de uma folha nova, ou, quem sabe, à passagem do ar pelas axilas da planta.

O indígena, em suas andanças pela mata, não gost
a de encontrar um tajá. Se isso ocorre, desvia rápido, e vai-se embora. Do mesmo modo, se o selvagem ouve o canto de uma pomba jurutí, olha logo para os lados, procurando localizar o passarinho. Ele sabe, e de resto, todos na Amazônia sabem, que encontrar pela frente um pé de tajá e ouvir, ao mesmo tempo, o piado insistente de uma rolinha invisível, é sinal certo de desgraça.

Querer destruir o tajá é uma temeridade. Conta-se que Januário, um pescador do Cambixe, certa tarde começou a ouvir "bater sapopema". Em seguida notou, não longe de seu tapiri (cabana), um pé de tajá. Era tajá membeca, o pior de todos. Ficou desconfiado. Por via das dúvidas, resolveu meter o terçado (facão). No segundo golpe, ficou com o braço inteiramente seco. Tarde, ele aprendeu que deveria ter feito aquilo que os velhos recomendam para esses casos: ir-se embora rápido, sem olhar para trás.

Esse pio misterioso, que vem do pé de tajá ou de suas imediações, é o canto do infortúnio. É o fim de todas as coisas. É JURITÍ-PEPENA - diz o caboclo. Sinal de ter sido escolhido para destinatário de tragédia. Sabe que o Gênio do Mal lhe pegou. Procura se lembrar de algum mal que tenha feito; do prejuízo que possa ter causado aos outros, mesmo inadvertidamente; de algum feitiço que injustamente tenha feito contra outra pessoa e que agora "vira" contra si. Convencido ou não de sua culpa, fica silencioso e abatido, tomado de uma tristeza sem fim.

É uma punição, sem dúvida, "coisa feita". Dizem ser uma vingança traiçoeira e implacável, que sempre atormenta os errantes filhos da selva. Dentro de pouco, estará paralítico. De nada adiantará friccionar o corpo com copaíba, manacá, tatapiririca, banha de sucurijú ou leite de mulher virgem... ou nenhuma outra medicina da selva. Só lhe restará o desengano, a morte. Está definitivamente "atuado" (marcado). Vai ter que prestar contas aos "companheiros do fundo". Anhanga lhe espera no "ibiapitera", aquele medonho caldeirão que os brancos chamam de "quintos-dos-infernos".

Nada se pode fazer contra a Jurití-Pepena, essa desgraçada pomba invisível, mensageira do mal, que pia na touceira do tajá, nas proximidades das taperas.

Os pajés, quando solicitados para tratar casos de Juriti-Pepena, examina tudo minuciosamente; fica em silêncio, auscultando o barulho... Certifica-se de que o gemido seja mesmo de jurutí. Caso positivo, manda todo mundo se afastar. Que ninguém faça barulho! Cruza as mãos. Permanece imóvel, contrito, durante alguns minutos, junto ao doente. Depois, ajoelha-se piedosamente. Persigna-se com o polegar direito e beija a mão. Reza, então, em voz baixa, a oração recomendada:

Jurití-Pepena, por que tu pena ?
Quem te fez pena ?
Ser humano, anima ou vegeta ?
Fulano (aqui dá o nome a vítima) só qué trabaiá.
Tem famía prá cuidá. Deixa de lê aperriá !
Anhangá, Anhangá, Anhangá, leva a jurití pr'o teu tejupá.
Deus Nosso Sinhô, Vige Maria e Sino Salomão, venham ajuda.
Nóis num pode mais aguentá.


A oração é completada por um "Amém" solene que parte de todos os presentes.

Em seguida, o pajé corta umas ramas de mato. Cobre-as com a fumaça de seu cachimbo. Em movimento agitados, "limpa" o espaço ambiental circunjacente. Depois, varre cuidadosamente o chão. Larga as ramas e, com o corpo inclinado para a frente, dá voltas em círculo, oportunidade em que costura um pequeno breve de morim roxo, levado de propósito, e dentro do qual introduz uma folha da ramagem defumada. Finalmente, dá por encerrada a "sessão", recomendando à vítima que use sempre o patuá colado ao corpo. Dizem que é o único jeito de atenuar os malefícios da Jurití-Pepena. Anular o seu mal, é impossível.

Normalmente, não há aleijados entre os indígenas e mesmo entre os caboclos. Mas, se encontrarmos um inválido e lhe perguntarmos a razão do seu mal, é quase certo que ele nos responda com convicção: Jurití-Pepena...

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Juriti é um pássaro da família dos Columbidae (pombos), da espécie: Leptotila rufaxilla. Tem 26,5 cm de comprimento e é comum do sul dos Estados Unidos à Argentina, estando presente em quase todo o Brasil. Comum no chão de habitats quentes, tais como capoeiras e campos adjacentes, bordas de florestas densas e cerrados. Vive solitária ou aos pares. Alimenta-se de sementes e frutos no chão. Quando perturbada, foge caminhando sem fazer barulho, ou voa, emitindo um som com as asas, até uma árvore próxima.
Faz ninho típico de pombinhas - uma plataforma construída de gravetos e grama, localizada em arbustos baixos ou árvores, eventualmente no chão. Põe 2 ovos brancos. Conhecida também como pu-pú (Rio Grande do Sul) e juriti-pupu.

Baseado em texto de Altino Berthier Brasil

domingo, 2 de janeiro de 2011

QUECHITXO - Cantadores que Curam

As sociedades indígenas utilizam-se de diversos métodos que auxiliam na cura de doenças. Existem os pajés, que tratam de certas doenças através de transes espirituais; Há os que se utilizam de plantas medicinais, outros que enxergam as causas de alguns males através de sinais da Natureza, e hoje em dia existem muitos enfermeiros indígenas com conhecimento da medicina do homem branco. Entre os índios MARUBO existem canções que curam.

O povo Marubo vivem na bacia do rio Javari, no sudoeste do estado do Amazonas. Sua cerâmica está entre as mais sofisticadas produzidas no Brasil: e leve e em certas ocasiões decoradas com uma impressão em negativo. Depois que as peças são queimadas, as mulheres desenham elementos geométricos nas cerâmicas utilizando uma argila esbranquiçada, diferente daquela utilizada na construção da peça. As cerâmicas são então colocadas sobre um fogo brando que as deixa negras, com exceção dos desenhos feitos com a argila mais esbranquiçada que é retirada da peça após o esfriamento.

Entre os Marubo, os indivíduos especialistas em entoar os cantos que curam são chamados QUECHITXO.

Antes dos cantos, os quechitxo preparam-se tomando o chá da ayahuaska e inalando um tipo de rapé. Depois, colocam o doente deitado em uma rede e sentam-se em volta dele, em banquinhos. Então, cantam curvados, com a mão direita sobre o joelho esquerdo e a cabeça apoiada na mão esquerda. São canções longas, entoadas a qualquer hora do dia e da noite, com intervalos de descanso, enquanto durar o período de crise mais aguda da doença. Nem todos os índios que cantam junto ao doente são quechitxo, alguns cantam apenas como auxiliares destes especialistas.

Há ocasiões que os quechitxo cantam sobre a boca de uma panela com mingau de banana, que será depois tomado pelos doentes como remédio. Este mingau é ingerido também pelos demais membros da comunidade como prevenção contra certas doenças e até mesmo para evitar mordidas de cobras. Os índios Marubo explicam que quando os quechitxo cantam, aproximam-se os espíritos REWEPEI, ONISRÃCO e SROMA.

O espírito Rewepei vai atrás da alma do doente e tenta convencê-la a permanecer no corpo. Os Marubo acreditam que seus pajés possuem uma taboca de guardar rapé dentro da garganta. A voz grave e volumosa surge quando esta taboca está destampada e a voz fina é sinal da taboca tampada. É também o espírito Rewepei quem coloca esta taboca na garganta dos pajés.

O espírito Onisrãco é o espírito da ayahuaska. Ele fica ao lado dos cantadores e canta junto com eles. Pode se transformar em diversos seres, como a onça, um pássaro, o fogo, o vento... O espírito Onisrãco é como o soldado que briga com a doença

Os espíritos Sroma são dois espíritos femininos que também lutam contra a doença. "Sroma" significa "seio" na língua dos Marubo.

Os cantos de cura dos índios Marubo dividem-se em três partes: (1º) como se forma o agente que originou a doença, (2º) como este agente atua no corpo da vítima e (3º) como este mal é combatido. Julio Cezar Melatti recolheu um canto contra mordida de cobras.

Ele começa pela narração de como surgiu a cobra, a partir da cabeça de um sapo morto; dois pingos de
fogo formaram os olhos da cobra; os venenos de um outro sapo e o leite de uma taboca formaram o veneno da serpente. E, por fim, o frio da terra e o calor de um terceiro sapo foram colocados também dentro da cobra. A segunda parte do canto conta como a cobra se coloca no caminho da vítima e como o indígena que é mordido fica com o calor da cobra na cabeça e o frio da terra nos pés.

A terceira parte conta então como a cobra e seu veneno são combatidos. As duas Sroma e Onisrãco vêm cuidar da vítima. A cobra é espantada com fogo. As Sroma dão saúde à vítima; a saúde vai passando pelo corpo, tirando o peso do corpo, o escuro dos olhos, o veneno da cobra. A fumaça também espanta a cobra, jogando-a para fora do corpo da pessoa mordida. O vento da saúde leva a cobra por cima do mato. O cheiro doce da ayahuaska passa por dentro da cabeça do paciente, tirando a dor. A saúde desce para a barriga, curando. O frio da água, o frio da pedra, o frio da terra, o frio do pau, o frio da ayahuaska, entram no corpo da vítima; quando o frio da cobra vai embora; o espírito da ayahuaska (Onisrãco) corre atrás dela com o terçado, cortando-a. Ele tira do corpo da vítima o veneno, o dente, o pelo da cobra.

No cântico ainda se citam outros elementos que vêm socorrer o paciente: o azedo, o sangue da árvore, o sangue da ayahuaska. Convém notar que no cântico os efeitos da mordida da cobra são confundidos com a própria cobra ou com partes do corpo dela.

Baseado em texto de Julio Cezar Melatti
Boletim da Iandé, nº 24