quarta-feira, 27 de abril de 2011

TERRAS INDÍGENAS E A OMISSÃO DO ESTADO

A Constituição brasileira de 1988 confirmou a prática da justiça para com os primeiros e naturais habitantes dessa terra. Esse princípio, base de seu direito, é anterior a qualquer outro. Consequentemente, o direito dos índios à terra não depende de reconhecimento formal. Segundo a legislação brasileira, Terras Indígenas (TIs) “são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, por eles habitadas em caráter permanente, utilizadas para atividades produtivas, imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições” (Art. 231, parágrafo 1º da Constituição Federal). Conforme o inciso XI do artigo 20 da Constituição, as TIs “são bens da União” e, pelo parágrafo 4º do art. 231, são “inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas imprescritíveis”.

Igualmente, por força da Constituição, o Poder Público está obrigado a promover tal reconhecimento. Sempre que uma comunidade indígena ocupar determinada área nos moldes do artigo 231, o Estado terá que delimitá-la e realizar a demarcação física. A própria Constituição estabeleceu o dia 5 de outubro de 1993 como prazo para a demarcação de todas as TIs no país . O prazo já expirou há 15 anos e isso não ocorreu. De acordo com o CIMI – Conselho Indigenista Missionário, das 847 Terras Indígenas existentes, em 216 delas, nenhuma providência foi tomada. Apenas 343 foram registradas e 49 homologadas.

O objetivo da demarcação das TIs é garantir o direito indígena à terra, sem o qual não há como um Povo sobreviver. A demarcação estabelece a extensão da área de usufruto dos índios e deve assegurar a proteção dos limites, impedindo sua ocupação por não-índios.

Um das maiores ataques contra os Povos Indígenas no Brasil é a omissão do Estado no cumprimento dessa obrigação constitucional. Essa demora tem sido a principal causa de graves conflitos, envolvendo comunidades indígenas e invasores, como por exemplo, o atentado contra a comunidade Dez Irmãos, na Raposa Serra do Sol, em Roraima, em maio de 2008, quando dez índios foram baleados. A lentidão do Estado brasileiro deixa as comunidades perplexas, pois a população continua ameaçada. Além disso, multiplicam-se os casos de agressões aos indígenas durante ações de reintegração de posse ou na condução de investigação dos processos policiais. A onda de criminalizão dos movimentos sociais atinge também o movimento de resistência indígena.

O mais grave é que, além da omissão em fazer cumprir uma lei constitucional, muitos títulos de propriedade concedidos pelo Poder Público, em alguns estados encontram-se em áreas comprovadamente indígenas. Nesse caso “são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos” (Art. 231, parágrafo 6). Como as Terras Indígenas “são bens da União”, os estados não têm a competência para, sobre elas deliberar, muito menos conceder títulos de propriedade em áreas já identificadas ou a ser identificada.

Em algumas regiões, essa falta de clareza no cumprimento da lei abre espaço para a prática do contrabando de drogas, armas e combustível, tráfico de seres humanos, além da prostituição infantil e outros abusos. Grave ainda é a campanha liderada por alguns políticos latifundiários antindígenas, pressionando o governo federal para que se comprometa a não reconhecer mais os direitos territoriais indígenas, em estados como Roraima, Mato Grosso do Sul, Pernambuco e Bahia.

Além de preocupações ambientais, outros projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional afetam aos direitos dos Povos Indígenas, como o de mineração, a construção de hidrelétricas e pelotões militares, deixando dúvidas sobre o futuro dos direitos da população que vive nestas áreas. Atualmente, a concepção desenvolmentista voltada para o mercado externo tem sua mais nova versão no PAC – Programa de Aceleração do Crescimento, que representa a mais séria ameaça ao futuro dos Povos Indígenas. A vontade do governo e o interesse das mineradoras é aprovar um Projeto de Lei para a mineração em TIs, enquanto o Estatuto dos Povos Indígenas continua parado na mesa da Câmara dos Deputados, há 14 anos. Segundo a FUNAI – Fundação Nacional do Índio, “201 empreendimentos do PAC interferem em TIs, dos quais 21 em terras de povos isolados. As hidrelétricas de Belo Monte, no rio Xingu (Pará); Jirau e Santo Antônio, no rio Madeira (Rondônia); Estreito, no rio Tocantins (Maranhão), por exemplo, terão consequências irreversíveis para numerosos povos indígenas da Amazônia”.

Os Povos Indígenas viram na eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002, uma esperança. E, apesar de todas as promessas que ele deixou de cumprir, apoiaram sua reeleição em 2006, porque avaliaram que outra alternativa seria ainda pior. Mas o que o movimento também fez foi manter a pressão sobre seu governo e grupos antindígenas. Essa pressão deve continuar. O movimento indígena vem mostrando capacidade de organização e resistência. Isso deve aparecer cada vez mais para, em primeiro lugar, despertar em todos os Povos o desejo de conquistar seus direitos.

O reconhecimento definitivo de muitas Terras Indígenas está longe de ser alcançado. Por isso, manter a homologação da Raposa Serra do Sol em área contínua é garantir o direito de os índios usufruirem os territórios que ocupam milenarmente. No estado de direito, cumprir com a Constituição é uma questão de justiça. Sem terra não há paz.


Texto de JAIME CARLOS PATIAS

terça-feira, 26 de abril de 2011

KORUBO, os índios caceteiros

Os KORUBO, também conhecidos como “índios caceteiros” por causa de suas bordunas, vivem na região de confluência dos rios Ituí e Itaquaí, que é um afluente direto do Javari, rio que dá o nome à Terra Indígena onde estão inseridos. Suas terras tradicionais são o extremo oeste do estado do Amazonas e abrange a região de fronteira do Brasil com o Peru. A maior parte dessa população (mais de 200 pessoas) ainda vive isolada, movimentando-se entre os rios Ituí, Coari e Branco.


Em 1996, após várias tentativas, a FUNAI contatou um pequeno grupo de índios Korubo. Depois do encontro com a equipe de atração, os Koru
bo começaram a realizar visitas sucessivas às aldeias dos índios Matis e aos acampamentos da Frente na mata. Hoje, o grupo distribui-se em duas comunidades no baixo Ituí. Não se sabe como os Korubo denominam a si mesmos. Alguns pesquisadores chegaram a identificar o termo DSLALA como a autodenominação desse povo. No entanto, trabalhos recentes da Frente de Proteção Etno-ambiental Vale Javari (FPEVJ) revelam que não há uma autodenominação que seja unânime entre os Korubo.

Segundo Pedro
Coelho, a denominação Korubo foi dada pelos Matis. Esses últimos afirmam que Korubo seria um nome próprio da onomástica matis. Um Matis revelou o significado da palavra Korubo: “Koru é isso, coberto de areia, de cinza, sujo de barro. Os Korubo se tapam de barro para espantar os mosquitos, ficam assim sujos, cobertos de Koru” (Arisi, 2007). Philippe Erikson levanta a hipótese de que Korubo seria uma designação genérica para “inimigo”. Ao comentar sobre os etnônimos dos Panos Setentrionais, esse autor ressalta que os Kulina-Pano afirmam ter exterminado um grupo que vivia no igarapé Esperança, afluente do rio Curuçá, cujo apelido era Korubo. No entanto, é provável que não se trate dos índios que hoje designamos como tal.

Os Korubo são falantes de uma língua ainda não classificada, que provavelmente faz parte da família lingüística Pano, bastante semelhante às línguas faladas pelos Matis e pelos Matsés (Mayoruna), que vivem em territórios contíguos ao dos Korubo. Por causa dessa proximidade lingüística e geográfica, a maior parte do grupo compreende e fala as línguas dos grupos vizinhos, principalmente a dos Matis.

Sabe-se que o pequeno grupo korubo contatado em 1996 compreende bem os Matis, etnia com a qual tem estabelecido boas relações. Contudo, é importante ressaltar que, antes do contato, ambos os grupos era
m inimigos entre si e por isso partilhavam uma história de rivalidades e de guerras. Atualmente, por causa dessa história marcada por mortes, raptos e destruição de casas, os Matis ainda guardam um certo medo dos Korubo que vivem isolados.

A influência que hoje os Matis exercem sobre os Korubo é grande e bastante explícita. Um exemplo claro é o fato de utilizarem a língua Matis para se reportarem aos membros da Frente de Proteção Etno-ambiental Vale Javari. A trajetória pós-contato contribui para que houvesse um melhor entendimento da língua Matis, já que a Frente de Contato e, posteriormente, Frente de Proteção Etno-ambi
ental Vale do Javari priorizou os Matis como intérpretes e como mediadores das atividades com os Korubo.

Os Korubo também compreendem a língua Matsés (Mayoruna), mas não tão bem como a dos Matis.

Alguns índios, com contatos mais freqüentes com representantes da Frente, compreendem e falam razoavelmente o português. Há uma cobrança por parte do grupo para que aprendam o português, no intuito de melhor interagir com a sociedade nacional. Os Korubo costumam ouvir comentários e relatos dos Matis sobre suas
visitas à cidade e assim ficam bastante curiosos. No entanto, mesmo possuindo um conhecimento razoável do português, os Korubo evitam conversar nesse idioma, preferindo usar a língua Matis (ou os próprios Matis como intérpretes) para se comunicarem com os membros da Frente. Além disso, percebe-se que eles se apropriaram de algumas palavras matis e as incorporam em seu vocabulário.

Além da influência matis sobre a língua Korubo, nota-se que os Matis são supervalorizados pelos Korubo.
Estes defendem os Matis em inúmeras situações - tanto verbal como fisicamente - especialmente em ocasiões de conflito com membros de outras etnias e com os funcionários da Frente.

Não é possível descrever os rituais desse povo, já que muitas práticas caíram em desuso depois da cisão com o antigo grupo (isolado). Trata-se hoje de um grupo formado basicamente por jovens que não tiveram a oportunidade de aprender com os mais velhos muitos aspectos da sua cultura. Contudo, realizam algumas danças e um tipo de choro que se mescla com um canto ritual.

Com relação à cultura material, nota-se que o grupo utiliza q
uase que exclusivamente os seguintes instrumentos de caça e guerra: a zarabatana, o arco e flecha, a borduna e um tipo de lança. A ponta do dardo da zarabatana é embebida em um veneno elaborado a partir da raspagem de dois tipos de cipó. As cerâmicas ainda estão presentes na vida cotidiana, mas sua fabricação já não é tão comum, dada a substituição dos artefatos tradicionais por utensílios industriais, presenteados pelos funcionários da Frente e pelos Matis. Quanto aos adornos corporais, não há a mesma exuberância existente entre outros grupos Pano. O que pode ser classificado como adorno tradicional é o bracelete de tucum. Muito do que é usado hoje pelo grupo já é uma apropriação dos elementos tradicionais dos Matis, como as pulseiras e a perfuração na orelha.

As mulheres usam uma faixa de tucum para carregar os filhos pequenos.
Uma outra característica tradicional dos Korubo é o corte de cabelo em meia cuia (ou meia lua): conserva-se somente o cabelo que vai do centro da cabeça até a testa, raspando o restante com auxílio de um capim típico da região. Há ainda um outro corte tradicional que é feito com a raspagem de quase toda a cabeça, deixando somente uma faixa de cabelo que vai de uma orelha à outra, como se fosse uma “tiara”.

Os homens korubo tomam uma bebida elaborada a partir de um cipó denominado Tati com objetivo de ficarem fortes e aptos para a caça.
Fonte http://pib.socioambiental.org/pt/povo/korubo

segunda-feira, 25 de abril de 2011

CONVENÇÃO Nº 169 DA OIT SOBRE POVOS INDÍGENAS E TRIBAIS


A Convenção Nº 169 sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes da Organização Internacional do Trabalho (OIT), aprovada em 1989, durante sua 76ª Conferência, é o instrumento internacional vinculante mais antigo que trata especificamente dos direitos dos povos indígenas e tribais no mundo. Em resumo, ela diz o seguinte:

POLÍTICA GERAL - Princípios e condições básicas que os governos devem respeitar em suas relações com os povos indígenas e tribais

A Convenção estabelece os direitos dos povos indígenas e tribais de:
- ter uma existência duradoura e diferente;
- definir suas próprias prioridades de desenvolvimento e de exercer controle sobre o mesmo, na medida do possível;
- serem consultados de boa-fé, mediante procedimentos apropriados e por meio de suas instituições representativas com relação a decisões susceptíveis de afetá-los diretamente, inclusive com relação a medidas administrativas ou legislativas, assim como sobre planos de desenvolvimento;
- manter seus costumes e instituições, inclusive os métodos tradicionalmente utilizados para reprimir os delitos cometidos por seus membros, desde que não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais definidos pelo sistema jurídico nacional nem com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos.

Os governos deverão:
- definir a que grupos se aplica a Convenção, com base em critérios objetivos (idioma, parentesco, costumes, etc.) e na auto-identificação dos povos indígenas e tribais;
- assegurar aos povos indígenas e tribais o gozo, em igualdade de condições, dos mesmos direitos e oportunidades concedidos aos demais membros da comunidade nacional;
- ajudar os povos indígenas e tribais a eliminar as diferenças sócio-econômicas existentes entre eles e os demais grupos da comunidade nacional;
- respeitar os costumes dos povos indígenas e tribais, aos lhes aplicar a legislação nacional, inclusive quando se aplicam sanções penais;
- estabelecer mecanismos e procedimentos apropriados de consulta com os povos indígenas e tribais;
- assegurar-se de que se realizem estudos apropriados, desde que possível, em cooperação com os povos interessados, para avaliar o impacto social, espiritual, cultural que possam ter as atividades de desenvolvimento sobre o meio ambiente. Os resultados desses estudos servirão de critérios fundamentais para a execução das ditas atividades;
- promover as instituições e iniciativas dos povos indígenas e tribais.

TERRAS compreende o conceito de territórios, o que cobre a totalidade habitat das regiões que os povos indígenas e tribais ocupam ou utilizam de alguma maneira.
Os governos deverão:
- reconhecer, quando for o caso, a relação especial que têm os povos indígenas e tribais com suas terras, inclusive os aspectos coletivos dessa relação;
- reconhecer os direitos de propriedade e de posse das terras que tradicionalmente ocupam; o direito ao uso das terras às quais têm tido acesso tradicionalmente para suas atividades tradicionais e de subsistência;
- identificar as terras dos povos indígenas e tribais e proteger seus direitos de propriedade e de posse, mediante sanções previstas pela lei contra toda intrusão não-autorizada e por meio de procedimentos para resolver as reivindicações de terras;
- proteger os direitos do povos indígenas e tribais sobre os recursos naturais de suas terras e territórios, inclusive seu direito de participar da utilização, administração e conservação desses recursos;
- consultar os povos indígenas e tribais antes de realizar trabalhos de prospecção e de exploração de minerais ou recursos do subsolo ou outros recursos cuja propriedade seja do Estado, mas que se encontram nas terras de propriedade dos povos indígenas e tribais;
- assegurar que os povos indígenas e tribais percebam uma indenização justa e eqüitativa por qualquer dano que sofram por essas atividades e que participem dos benefícios que produzam as mesmas;
- consultar os povos indígenas e tribais toda vez que se considere modificar sua capacidade de alienar suas terras;
- respeitar os procedimentos tradicionais de transmissão, entre os povos indígenas e tribais, dos direitos sobre as terras existentes;
- garantir aos povos indígenas e tribais um tratamento em igualdade de condições com os demais setores da população no desenvolvimento dos programas agrários nacionais;
- os povos indígenas e tribais não deverão ser removidos das terras que ocupam, a não ser em caso rigorosamente necessário.

No caso de remoção de suas terras ancestrais, os povos indígenas e tribais têm o direito de:
- só serem removidos com seu livre consentimento e com pleno conhecimento de causa ou ao termo de procedimentos adequados, inclusive consulta pública;
- regressar a suas terras quando deixarem de existir as causas que motivaram a remoção e o reassentamento;
- receber terras em qualidade e estatuto jurídico iguais às terras que antes ocupavam, caso não seja possível o retorno;
- ser plenamente indenizados quando forem reassentados.

CONTRATAÇÃO E CONDIÇÕES DE EMPREGO
Os povos indígenas e tribais têm direito de:
- ter acesso a emprego, condições de trabalho, assistência médica e social e a uma remuneração eqüitativa, em condições de igualdade com os demais trabalhadores;
- exercer todas as atividades sindicais lícitas.

Os governos deverão:
- adotar, em cooperação com os povos indígenas e tribais, medidas especiais para proteger seus direitos trabalhistas, quando esses direitos não estejam eficazmente protegidos pela legislação aplicável aos trabalhadores em geral;
- evitar qualquer discriminação contra os trabalhadores indígenas e/ou tribais, garantindo-lhes proteção contra condições perigosas de trabalho, constrangimento sexual e sistemas coercitivos de contratação;
- assegurar que os trabalhadores indígenas e/ou tribais sejam plenamente informados sobre seus direitos trabalhistas e procedimentos existentes para sua proteção.

FORMAÇÃO PROFISSIONAL, ARTESANATO E INDÚSTRIAS RURAIS
Os povos indígenas e tribais têm direito de dispor das mesmas oportunidades de formação profissional que os demais cidadãos.

Os governos deverão:
- promover e reforçar, quando necessário, com a participação dos povos indígenas e tribais, atividades tradicionais relacionadas com as economias de subsistência, facilitando adequada assistência técnica e financeira;
- desenvolver programas especiais de formação, caso necessário, baseado nas necessidades concretas dos povos indígenas e tribais; transferir-lhes, quando possível e com sua anuência, a responsabilidade da organização e funcionamento desses programas especiais.

PREVIDÊNCIA SOCIAL E SAÚDE
Os povos indígenas e tribais têm direito de ser atendidos pelos sistemas de previdência social ou serviços adequados de saúde, em âmbito comunitário, respeitados seus métodos de prevenção, práticas curativas e medicamentos tradicionais.

Os governos deverão:
- planejar e administrar os serviços de saúde, em cooperação com os povos indígenas e tribais, ou lhes proporcionar os meios que lhes permitam planejar e administrar esses serviços de uma maneira autônoma;
- dar preferência à formação e ao emprego do pessoal de saúde da comunidade local.

EDUCAÇÃO E MEIOS DE COMUNICAÇÃO
Os povos indígenas e tribais têm direito de receber educação em todos os níveis nas mesmas condições que as demais pessoas da comunidade nacional.

Os governos deverão:
- desenvolver e aplicar, em cooperação com os povos indígenas e tribais, programas de educação e serviços adequados a suas necessidades, com pleno respeito a suas tradições, cultura e história;
- reconhecer o direito dos povos indígenas e tribais de criar suas próprias instituições e meios de educação, desde que satisfaçam as normas mínimas estabelecidas;
- tomar medidas para que os povos indígenas e tribais tenham a oportunidade de dominar a língua nacional ou uma das línguas oficiais do país, assim como preservar e promover o desenvolvimento e a prática das línguas dos povos indígenas e tribais;
- proporcionar conhecimentos gerais e aptidões que permitam as crianças dos povos indígenas e tribais participarem plenamente na vida de suas próprias comunidades e na comunidade nacional;
- adotar medidas adequadas, pelos meios de comunicação de massas e nas línguas dos povos indígenas e tribais, para lhes dar a conhecer seus direitos e obrigações;
- sensibilizar e educar os cidadãos não-indígenas sobre a situação dos povos indígenas e tribais a fim de eliminar os preconceitos contra eles.

CONTRATOS E COOPERAÇÃO ATRAVÉS DAS FRONTEIRAS
Os governos deverão facilitar os contatos e a cooperação entre povos indígenas e tribais através das fronteiras, inclusive atividades econômicas, sociais e culturais e relacionadas com o meio ambiente.

DISPOSIÇÕES GERAIS E ADMINISTRAÇÃO - Especifica as medidas administrativas que os governos devem tomar para garantir a aplicação da Convenção.
Os governos deverão:
- criar instituições ou outros organismos apropriados para administrar os programas que afetam os povos indígenas e tribais, assegurando-lhes os meios necessários para seu cabal funcionamento;
- aplicar a Convenção de uma maneira flexível, levando em conta as condições e características próprias de cada país; - ao aplicar a Convenção, não reduzir os direitos dos povos indígenas e tribais por força de outras convenções, instrumentos internacionais, tratados, leis nacionais ou costumes ou acordos.

Texto de ISA, Ana Flávia Rocha.

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O Brasil ratificou a Convenção nº 169 da OIT, em Genebra, em 25 de julho de 2002, mediante o Decreto Legislativo Nº 143, de 20 de Junho de 2002. Entrou em vigência em julho de 2003.

terça-feira, 19 de abril de 2011

SER ÍNDIO


Os habitantes das Américas foram chamados de índios pelos europeus que aqui chegaram. Uma denominação genérica, provocada pela primeira impressão que eles tiveram de haverem chegado às Índias.

Mesmo depois de descobrir que não estavam na Ásia, e sim em um continente até então desconhecido, os europeus continuaram a chamá-los assim, ignorando propositalmente as diferenças lingüístico-culturais. Era mais fácil tornar os nativos todos iguais, tratá-los de forma homogênea, já que o objetivo era um só: o domínio político, econômico e religioso.

Se no Período Colonial era assim, ao longo dos tempos, definir quem era índio ou não constituiu sempre uma questão legal. Desde a independência em relação às metrópoles européias, vários países americanos estabeleceram diferentes legislações em relação aos índios e foram criadas instituições oficiais para cuidar dos assuntos a eles relacionados.

Nas últimas décadas, o critério da auto-identificação étnica vem sendo o mais amplamente aceito pelos estudiosos da temática indígena. Na década de 50, o antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro baseou-se na definição elaborada pelos participantes do
II Congresso Indigenista Interamericano, no Peru, em 1949, para assim definir, no texto “Culturas e línguas indígenas do Brasil”, o indígena como: “(…) aquela parcela da população brasileira que apresenta problemas de inadaptação à sociedade brasileira, motivados pela conservação de costumes, hábitos ou meras lealdades que a vinculam a uma tradição pré-colombiana. Ou, ainda mais amplamente: índio é todo o indivíduo reconhecido como membro por uma comunidade pré-colombiana que se identifica etnicamente diversa da nacional e é considerada indígena pela população brasileira com quem está em contato”.

Uma definição muito semelhante foi adotada pelo Estatuto do Índio (Lei nº. 6.001, de 19.12.1973), que norteou as relações do Estado brasileiro com as populações indígenas até a promulgação da Constituição de 1988.

Em suma, um grupo de pessoas pode ser considerado indígena ou não se estas pessoas se considerarem indígenas, ou se assim forem consideradas pela população que as cerca. Mesmo sendo o critério mais utilizado, ele tem sido colocado em discussão, já que muitas vezes são interesses de ordem política que levam à adoção de tal definição, da mesma forma que acontecia há 500 anos.

As populações indígenas são vistas pela sociedade brasileira ora de forma preconceituosa, ora de forma idealizada. O preconceito parte, muito mais, daqueles que convivem diretamente com os índios: as populações rurais.

Dominadas política, ideológica e economicamente por elites municipais com fortes interesses nas terras dos índios e em seus recursos ambientais, tais como madeira e minérios, muitas vezes as populações rurais necessitam disputar as escassas oportunidades de sobrevivência em sua região com membros de sociedades indígenas que aí vivem. Por isso, utilizam estereótipos, chamando-os de “ladrões”, “traiçoeiros”, “preguiçosos” e “beberrões”, enfim, de tudo que possa desqualificá-los. Procuram justificar, desta forma, todo tipo de ação contra os índios e a invasão de seus territórios.

Já a população urbana, que vive distanciada das áreas indígenas, tende a ter deles uma imagem favorável, embora os veja como algo muito remoto. Os índios são considerados a partir de um conjunto de imagens e crenças amplamente disseminadas pelo senso comum: eles são os donos da terra e seus primeiros habitantes, aqueles que sabem conviver com a natureza sem depredá-la. São também vistos como parte do passado e, portanto, como estando em processo de desaparecimento, muito embora, como provam os dados, nas três últimas décadas tenha se constatado o crescimento da população indígena.

Só recentemente os diferentes segmentos da sociedade brasileira estão se conscientizando de que os índios são seus contemporâneos. Eles vivem no mesmo país, participam da elaboração de leis, elegem candidatos e compartilham problemas semelhantes, como as conseqüências da poluição ambiental e das diretrizes e ações do governo nas áreas da política, economia, saúde, educação e administração pública em geral. Hoje, há um movimento de busca de informações atualizadas e confiáveis sobre os índios, um interesse em saber, afinal, quem são eles.

Qualquer grupo social humano elabora e constitui um universo completo de conhecimentos integrados, com fortes ligações com o meio em que vive e se desenvolve. Entendendo cultura como o conjunto de respostas que uma determinada sociedade humana dá às experiências por ela vividas e aos desafios que encontra ao longo do tempo, percebe-se o quanto as diferentes culturas são dinâmicas e estão em contínuo processo de transformação.

O Brasil possui uma imensa diversidade étnica e lingüística, estando entre as maiores do mundo. São 215 sociedades indígenas, mais cerca de 55 grupos de índios isolados, sobre os quais ainda não há informações objetivas. 180 línguas, pelo menos, são faladas pelos membros destas sociedades, as quais pertencem a mais de 30 famílias lingüísticas diferentes.

No entanto, é importante frisar que as variadas culturas das sociedades indígenas modificam-se constantemente e reelaboram-se com o passar do tempo, como a cultura de qualquer outra sociedade humana. E é preciso considerar que isto aconteceria mesmo que não houvesse ocorrido o contato com as sociedades de origem européia e africana.

No que diz respeito à identidade étnica, as mudanças ocorridas em várias sociedades indígenas, como o fato de falarem português, vestirem roupas iguais às dos outros membros da sociedade nacional com que estão em contato, utilizarem modernas tecnologias (como câmeras de vídeo, máquinas fotográficas e aparelhos de fax), não fazem com que percam sua identidade étnica e deixem de ser indígenas.

A diversidade cultural pode ser enfocada tanto sob o ponto de vista das diferenças existentes entre as sociedades indígenas e as não-indígenas, quanto sob o ponto de vista das diferenças entre as muitas sociedades indígenas que vivem no Brasil. Mas está sempre relacionada ao contato entre realidades socioculturais diferentes e à necessidade de convívio entre elas, especialmente num país pluriétnico, como é o caso do Brasil.

É necessário reconhecer e valorizar a identidade étnica específica de cada uma das sociedades indígenas em particular, compreender suas línguas e suas formas tradicionais de organização social, de ocupação da terra e de uso dos recursos naturais. Isto significa o respeito pelos direitos coletivos especiais de cada uma delas e a busca do convívio pacífico, por meio de um intercâmbio cultural, com as diferentes etnias.

Texto de ISRAEL NUNES

domingo, 17 de abril de 2011

DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL NO ANTIGO PERU

O notável escrito e pensador peruano, José Carlos Mariategui, denunciou uma sociedade injusta e excludente em sua obra “Os 7 Ensaios da Realidade Peruana”, publicado pela primeira vez em 1928. Deixava claro o drama da substituição da economia agrária que fundamentava o Império Inca, para dar lugar a uma economia feudal típica do estilo europeu na época da colonização.

Com efeito, o modelo de desenvolvimento adotado pelos incas baseava-se em uma distribuição equitativa da principal riqueza para os incas: os alimentos, produzidos através da atividade agrícola. O sistema de construção de “anderes” (plataformas) é um exemplo da habilidade traduzida em tecnologia que permitiu à cultura Inca dominar os espaços para torná-los produtivos a partir do respeito a Pachamama (Mãe Terra) – e ao meio ambiente em geral – e o respeito pelo bem-estar da população que formou as quatro partes (“suyos”) do império.

Todos estes objetivos foram alcançados mediante uma correta distribuição da população , organizada em comunidades (ayllus) nos diferentes pisos ecológicos, de acordo com as características que ofereciam para seu aproveitamento eficiente, raciona, que permitiu satisfazer as necessidades de consumo da sociedade incaica. Nesse sentido, cada ayllu dedicava seu trabalho de maneira especializada a alguma atividade agrícola, têxtil, cerâmica, etc. Deve destacar-se, nesse contexto, que essa postura permitiu uma ocupação equilibrada de todo o território.

A distribuição cronológica do trabalho, baseada no conhecimento dos períodos naturais mais propícios para a semeadura e a colheita, permitiu recrutar trabalhadores, em temporadas, para o desenvolvimento de obras públicas (“mita”) ou para o exército. Também se recrutava trabalhadores (“yanacones”) para o servido do Estado (“minka”), seja junto ao Inca ou a outras autoridades, cujo serviço era pago com alimentos e outros tipos de bens.

O trabalho cooperativo ou solidário (“ayni”) permitiu uma distribuição equitativa dos bens produzidos dentro de cada ayllu, assim como a construção de casas e outras obras de benefício para todos da comunidade. Cabe mencionar que, apesar das mudanças administrativas, alguns desses costumes ainda perduram no comportamento das comunidades indígenas, como parte da sua cultura ancestral e como respeito à sua antiga sociedade.

Não é desconhecido que as diferentes culturas pré-incaicas do primeiro milênio da era cristã desenvolveram a cerâmica e a ourivesaria, e, para isso, recorreram à extração de minerais metálicos (como ouro, prata e cobre) e não-metálicos (como a argila). Estas atividades ganham um novo impulso no período inca, que agrega o uso o estanho e do bronze, promovendo uma extensa atividade mineira. Sabe-se que o Cerro de Pasco foi uma das principais zonas de exploração de prata, principalmente de depósitos superficiais, conhecidos como “pacos”. Recentemente, investigações de Kevin J. Vaughn, antropólogo, confirmaram que os antigos peruanos já exploravam o ferro há 2000 anos – a partir da descoberta de escavações de onde calcula-se ter saído cerca de 3.1 70 toneladas de minério de ferro em sua forma de hematita, ao longo de 1400 anos antes da chegada dos europeus. Os antigos Nazca usaram ferro dessa mina na coloração de cerâmicas, tecidos e fachadas de edificações. Tudo isso evidencia que a atividade mineira não interferia na agrícola – que constituiu a base de sustentação econômica do império.

Em resumo: o estudo sobre o desenvolvimento diferenciado, bem focalizado, sem interferências, praticado pelos povos andinos, demonstra que a integração das dimensões econômica, social e ambiental, se reflete na produção equilibrada e racional de bens, na justa distribuição desses bens produzidos e na distribuição do trabalho para benefício da comunidade, considerando-se o respeito ao ambiente em suas diferentes formas. Isso nos dá uma mostra da visão de desenvolvimento com enfoque sustentável que se instaurou no império Inca. Fica evidente, como diz Mariategui, as diferentes visões que a cultura peruana precisa enfrentar a partir da introdução da cultura hispânica - o relativismo histórico, a industrialização posterior e a atual globarização – para recuperar seus antigos costumes, visando privilegiar as atividades que são mais importantes para a coexistência pacífica de suas populações, garantindo uma boa alimentação, moradia, serviços essenciais, educação e saúde para todos, em substituição do atual modelo que pouco contribui para gerar progresso nas comunidades, deteriora o meio ambiente e exclui dos benefícios a grande maioria. Só assim a economia peruana, integrando as dimensões ambiental e social, pode apontar para um DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL, mas isso implica na necessidade de um compromisso da sociedade de romper com paixões e fundamentalismos e, de outro lado, das grandes empresas e consórcios, deixando para trás suas políticas baseadas na ambição. Tarefa difícil, mas que merece o esforço conciliado de todos que estão envolvidos, se realmente se pretende um bem-estar para as maiorias, e não só o bem-estar em excesso para uns poucos.

Texto de JOSÉ GUILLÉN BOCANEGRA

sábado, 16 de abril de 2011

RECUPERAÇÃO DA ECONOMICA TRADICIONAL

A economia dos povos andinos era eminentemente solidária, e perdurou pelos séculos até que o contato com as economias mercantilistas modernas significou sua desarticulação e seu abandono parcial. Perante os incipientes esforços atuais tendentes a recuperar seus conteúdos e suas formas tradicionais, cabe se fazer alguns questionamentos cruciais. Se este é um modo eficiente de organização econômica, por que não tem demonstrado historicamente uma adequada capacidade de sustentação da época moderna e uma real capacidade de garantir para essas comunidades que a têm praticado, níveis satisfatórios de progresso e melhoramento de suas condições de vida? Aqueles processos que tendem a sua recuperação, não implicarão o retorno a um passado de pobreza e estancamento?

Com relação a estas questões, sem dúvida pertinentes, cabem algumas considerações importantes. Uma primeira observação deve nos levar a reconhecer que a grande maioria das comunidades e dos povos indígenas da região, vive atualmente sob condições de vida muito precárias e com níveis de desenvolvimento notavelmente insuficientes. Ora, este fato inegável não pode ser atribuído à parcial supervivência das formas comunitárias tradicionais de fazer economia, porque existe abundante evidência que permite afirmar que estes povos experimentaram um processo de pauperização DEPOIS do advento da formas modernas de produção e de mercado, que atingiram essas economias tradicionais com efeitos devastadores.

O nível e a qualidade de vida, avaliada não em termos de posse de dinheiro nem de produtos tipicamente modernos (que seria obviamente um modo incorreto de comparar), senão conforme a parâmetros de satisfação pessoal e social das necessidades, de autonomia e de controle das próprias condições de vida, de integração social, eram sem dúvida, superiores para aqueles povos, quando suas formas econômicas distintivas se desenrolavam coerentemente e sem as mencionadas interferências da modernidade.

O subdesenvolvimento e a pobreza em que vivem atualmente os povos indígenas é, numa grande medida, atribuível ao fato de as formas econômicas capitalistas os levarem a uma integração apenas parcial e subordinada nos mercados modernos, ao mesmo tempo em que à desarticulação de suas formas tradicionais, tendo por resultado o não poderem contar com os benefícios daquelas nem destas.

Cabe também observar que essas economias tradicionais não eram estáticas e tinham capacidades de crescimento e de evolução progressiva. Essa evolução foi bruscamente interrompida com a conquista e a colonização européia, junto do desmoronamento demográfico desses povos, levando à quebra de suas estruturas econômicas e políticas. Embora não seja mais possível conhecer o potencial de desenvolvimento endógeno daquelas culturas e formas econômicas, é obvio que nos vários séculos que têm transcorrido desde então, teriam podido desenvolver processos de expansão, diversificação e aperfeiçoamento que os teriam levado a atingir níveis e qualidade de vida, muito superiores aos que atualmente têm os grupos étnicos descendentes daquelas sociedades.

Todavia, como este desenvolvimento potencial não foi realizado, a pura recuperação dos conteúdos e das formas tradicionais daquelas economias, poderia implicar um retorno ao passado que importasse um retrocesso histórico. Algo similar poderia acontecer caso ditos processos de recuperação de identidade, fossem efetuados negando e se contrapondo radicalmente à modernidade, ou se fossem entendidos como a simples reativação das práticas, costumes, crenças, rituais e formas de produção ancestrais, num vão esforço por reavivar aquilo que já deixou de ser.

Contudo, há outras formas de desenvolver o processo, num sentido realista e com projeção de futuro. Tratar-se-ia, fundamentalmente, de revalorizar e de dar nova vida às formas de organização e aos conteúdos substanciais daquelas economias, que dão um sentido particularmente humano e comunitário ao trabalho, à tecnologia, à propriedade e à distribuição. Tais são, precisamente, os aspectos que fazem das economias originárias dos povos indígenas, expressões cabais da economia da solidariedade e do trabalho.

É neste sentido que nos referimos ao caminho dos povos antigos na direção da economia da solidariedade e do trabalho. No encontro desses povos com os outros grupos humanos que convergem a esta por seus próprios caminhos, tornar-se-á possível se enriquecerem com o contato e o intercâmbio que estabeleçam com experiências e concepções que recolhem e elaboram as novas expressões de uma economia e de uma civilização superior incipiente. No intuito de ilustrar o por quê pensamos seja possível que a recuperação de concepções e de valores antigos empalme e harmonize com as mais elevadas expressões da cultura contemporânea que se põem à vanguarda da construção do futuro, transcrevemos algumas lúcidas expressões de Fritjof Capra, que nos falam dos problemas contemporâneos e dos mais recentes desenvolvimentos das ciências físicas.

Sustenta este autor que estamos na presença de “uma impressionante disparidade entre o desenvolvimento do poder intelectual, do conhecimento científico e da destreza tecnológica, de um lado, e a sabedoria, a espiritualidade e a ética de outro. (...) O progresso humano tem sido um assunto puramente racional e intelectual, e esta evolução unilateral tem atingido agora um grau sobremaneira alarmante; uma situação tão paradoxal que beira a insânia. (...) Ainda sem a ameaça de uma catástrofe nuclear, o ecossistema global e a evolução ulterior da vida na terra, estão seriamente em perigo e podem desembocar num desastre ecológico em grande escala. Nossa prodigiosa tecnologia não parece servir de ajuda alguma. (...) Contudo, acredito sejamos testemunhas do início de um enorme movimento evolucionário. (...) A crescente preocupação pela ecologia, o alto interesse pelo misticismo, a redescoberta do tratamento holístico da saúde e do curar, e a crescente consciência feminista, são todas manifestações da mesma tendência evolucionaria”. “Sustentarei - continua Capra - que os físicos podem efetuar uma valiosa contribuição para superar o desequilíbrio cultural que impera. (...) No século XX a física atravessou por várias revoluções conceituais, que revelaram com clareza as limitações da concepção mecânica do mundo e que conduziram a uma visão orgânica e ecológica do globo, que mostra grandes similitudes com as visões dos místicos de todas as eras e tradições. O universo não é mais visto como uma máquina feita a partir de um monte de objetos separados, senão que aparece como um todo harmonioso e indivisível; uma rede de relações dinâmicas que incluem o próprio observador humano e sua consciência de modo essencial. O fato de que a física moderna, manifestação extrema da mente racional, esteja agora estabelecendo um contato com o misticismo, essência da religião e manifestação de uma especialização extrema da mente intuitiva, denota com beleza a unidade e a natureza complementar das modalidades racional e intuitiva da consciência. Os físicos, portanto, podem proporcionar uma base científica à mudança de atitudes e de valores que a nossa cultura precisa, tão urgentemente, para sobreviver. A física moderna pode mostrar às outras ciências, que o pensamento cientifico não deve ser necessariamente, reducionista e mecânico; que as visões holísticas e ecológicas são, também, cientificamente certas”.

Este novo paradigma teórico da física é chamado a abalar profundamente a ciência em todos seus campos e disciplinas, e indubitavelmente, começa a manifestar suas potencialidades no âmbito tecnológico. É interessante observar que as novas perspectivas que se abrem, mediante os mais avançados desenvolvimentos científicos, estão orientados num sentido de reencontro, senão com as formas e os conteúdos particulares das tecnologias tradicionais, ao menos com seus traços e suas características essenciais, tal e como o parecíamos nas tecnologias andinas. A revalorização do homem e da subjetividade, a preocupação ecológica, a tomada de consciência das interconexões que ligam as dinâmicas dos diferentes espaços-tempos da economia, da política, da cultura da espiritualidade, são processos que apontam para novos conceitos e novas formas da economia e do desenvolvimento, tal e como viéramos traçando ao longo da nossa exploração dos caminhos da economia de solidariedade.

Texto de Luis Razeto Migliaro

TERRA OU MÃE-TERRA... qual a diferença?

Nas mais diversas tradições indígenas ao redor do mundo, a Terra é vista como um ser vivo que proporciona a existência aos povos da floresta e a todas as demais criaturas; é a matriz, a origem a partir da qual tudo nasce, a Mãe Primeira.

As manifestações dessas culturas podem ser facilmente comprovadas, entre outras situações, no cuidado dos índios brasileiros com a Mãe Natureza, no culto dos povos andinos à deusa Pachamama – a Mãe de toda a vida – e na famosa carta do chefe Seattle, norteamericano, em resposta à proposta do presidente dos Estados Unidos, em meados do século XIX, de comprar terras indígenas: “ensinem às suas crianças o que ensinamos às nossas, que a terra é nossa mãe. Tudo o que acontece à terra, acontecerá aos filhos da terra.”

No entanto, com o passar do tempo, nos desconectamos do todo, mesmo tendo a própria ciência comprovando nossa interdependência com os outros seres do planeta, e ainda que se tenha disseminado a Teoria de Gaia, desenvolvida pelo cientista e ambientalista James Lovelock – que defende que a Terra se comporta como um grande organismo vivo, com mecanismos que mantêm suas condições favoráveis à existência da vida.

A maioria de nós – ocidentais, racionais, pós-modernos, consumistas e individualistas que somos – enxerga o planeta como algo a ser explorado e, no máximo, preservado para que as futuras gerações também tenham o que explorar. Acostumados com o discurso de que tudo o que existe está aqui para servir aos seres humanos, nos colocamos acima das plantas, dos animais, da água, do solo e do ar, e cultivamos uma visão pragmática e utilitarista em relação aos recursos da Terra e aos demais seres vivos. “Já dizia o livro bíblico do Gênesis que as coisas foram criadas por Deus para nosso serviço. Mas nos esquecemos de que o que n os serve não é inferior a nós e merece nossa honra, nosso cuidado e nossa profunda gratidão”, diz Lia Diskin, fundadora da organização Palas Athena e conselheira do Planeta Sustentável.

Felizmente, nos últimos anos, com o discurso da sustentabilidade cada vez mais presente, uma série de movimentos vêm propondo o retorno ao cuidado com a natureza, a valorização dos direitos humanos, a preservação das florestas e o fim dos maus-tratos aos animais. A ecologia está inserida nos currículos escolares de maneira interdisciplinar e as novas gerações vêm sinalizando uma preocupação natural em relação ao desperdício de água e energia e mais consciência em relação aos seres vivos de modo geral. Ao mesmo tempo, a natureza dá sinais claros de que nosso atual estilo de vida não poderá ser sustentado por muito mais tempo.

Em meio a esse contexto que parece ganhar força, no dia 22 de Abril de 2009, a Bolívia, por meio de seu atual presidente de origem indígena, Evo Morales, propôs, em Assembléia Geral das Nações Unidas, em Nova York, que a data há 40 anos lembrada como o DIA DA TERRA por diversos países; fosse reconhecida pela como o DIA INTERNACIONAL DA MÃE TERRA. A sugestão foi acatada por unanimidade.

Mas, na prática, qual a diferença de darmos ao planeta o título de “MÃE”? Para Lia Diskin, “mudar o nome de algo é reconhecer ali uma identidade diferente. O planeta retoma seu status de mistério em que a vida se renova, em vez de depósito de onde extraímos o que precisamos”

A psicóloga Monika von Koss, citando o biólogo chileno Humberto Maturana, diz que nos tornamos quem somos numa relação de “linguajear”. Segundo ela, as palavras são importantes e definem o modo como pensamos, agimos e sentimos. “Estamos condicionados a um linguajear de guerra e precisamos transformálo em um linguajear de amor, fazendo com que os relacionamentos e as organizações sejam imbuídos dessa qualidade”.

O interessante é que, em todas as culturas atuais, por mais que seus valores tenham sido distorcidos, a figura da mãe é algo que ainda mantém um lugar especial, que lembra um vínculo maior e implica em entrega mútua.

“O termo MÃE TERRA nos remete ao lar e recupera a concepção original dos povos nativos em relação à mãe que acolhe, nutre e apóia na vida e na morte”, diz Monika – que trabalha, entre outras coisas, com a reincorporação dos valores do feminino na sociedade. Em seu artigo “Matriz, mãe, maternidade”, ela afirma: “de todas as forças que impactaram os grupos humanos ao longo de seu processo evolutivo, a mais fundamental é a maternidade. A força da maternidade é prevalente, porque sem ela não haveria humanidade, sem ela não haveria existência”.

Lia Diskin concorda: “No lugar de um objeto despossuído de personalidade, com o qual julgávamos impossível construir um laço afetivo, inserimos um termo consolidado em nosso imaginário como a maior expressão de acolhimento, carinho e amor”.

Como uma legítima mãe, que acolhe a todos os seus filhos, a Mãe Terra não faz distinção entre as criaturas que a habitam. “Independentemente de tamanho, cor, inteligência ou qualquer outro critério que a gente queira inventar, a idéia da Mãe Terra não é de utilidade, mas de interação com o todo. Ela não discrimina ou classifica, mas acolhe a todos”, diz Monika.

Esses valores que nos colocam em pé de igualdade com os demais seres do planeta estão presentes em documentos com o a “Carta da Terra”, concluída há dez anos, e a “Declaração Universal dos Direitos da Mãe Terra”, em fase de elaboração.

A noção de interdependência pode ser reconhecida e vivida nas coisas mais simples. Lia Diskin diz que ao pegarmos um lápis e um papel para escrever, por exemplo, deveríamos nos lembrar de que eles já foram parte de uma árvore um dia, ou nos darmos conta de que todos os objetos que têm como base o petróleo, na realidade, são feitos de milhões de plantas e dinossauros decompostos. “Precisamos adquirir a capacidade de ver as coisas em profundidade. A partir do momento em que me conscientizo de que tudo o que me presta serventia já foi um ser vivo, passo a ter uma relação mais respeitosa com esses objetos. É preciso reconhecer que tudo o que nos rodeia é sagrado”.

Monika von Koss diz que o aprendizado de se refazer essa relação maternal com o planeta é o do cuidado. “Perdemos o valor do cuidar e o desafio é recuperar isso. Atualmente, todas as profissões cuidadoras são mal remuneradas, há uma desqualificação do cuidado, sendo que todos precisamos dele em qualquer momento da vida. Essa é uma qualidade do feminino, que, além de maternal, é colaborador, busca a beleza, a harmonia e a paz”.

Texto de Thays Prado

quinta-feira, 14 de abril de 2011

ECONOMIA ANDINA TRADICIONAL


As economias dos povos originários da América Latina se caracterizam por terem à comunidade como sujeito principal, integrada com base a formas de propriedade comunitária, ao trabalho coletivo e a relações de reciprocidade e cooperação. Isto pode ser percebido, especialmente, na concepção da produção e do trabalho nos povos andinos, para os quais o mundo não é um conjunto de materiais disponíveis isolados, dos quais o individuo se aproprie, e onde possa desdobrar suas capacidades transformadoras, porém um todo vivo, um mundo-animal que lhe exige respeito e carinho.

A importância da comunidade e a peculiar relação com a terra, próprias das culturas indígenas, impedem o estabelecimento de formas de propriedade privada individual a respeito do principal dos meios de produção. O próprio sentido que, entre eles, adquire o conceito de “propriedade” é muito diferente daquele que deriva do direito romano e que foi difundido na nossa civilização moderna: para eles, a terra é mãe provedora e não somente um fator de produção. Os animais, as árvores, os cultivos, são elementos integrantes da comunidade e com eles se estabelecem vínculos de intercâmbio vital, que impedem sua exploração com fins de enriquecimento pessoal.

Produzir é cultivar a vida do mundo, na lavoura, no gado, na casa. A terra, chamada de Pachamama, é a mãe universal da vida e é mãe deles; seus frutos são vivos e são fontes de vida. O trabalho é mais do uma simples atividade produtiva: é um culto religioso à vida. A economia andina se desenvolve no próprio meio, o ayllu, que é um meio social e cultural, natural e religioso. É sua comunidade junto a todo seu cosmos, e inclui a comunidade humana, a comunidade de huacas, ou divindades, e a comunidade da sallqa ou natureza. Na cosmovisão andina, a comunidade humana “faz chácara” a partir da comunidade da natureza e sob a tutela da comunidade de huacas. Trata-se de um encontro e de um diálogo de intercâmbio e de reciprocidade.

“Saber cultivar a vida” seria a definição andina da própria tecnologia. A produção não é transformação e domínio do mundo, mas “criação da vida”.

Os elementos da natureza e da comunidade humana possuem todos, seu lado interior, sua vida secreta, sua própria personalidade capaz de se comunicar com o homem sob condição deste saber tratá-los com sensibilidade; de que saiba respeitá-los e recompensá-los adequadamente. A produção deve contemplar o “pagamento da terra” segundo o princípio de reciprocidade. Conscientes da vida interior do mundo, os povos andinos acompanham todas suas atividades econômicas com rituais de produção, seja para estimular simbolicamente o desenvolvimento da vida criada, seja para agradecer e vitalizar, por sua vez, o mundo. O trabalho e a produção são, a um tempo só, atividade prática e culto sagrado. “A terra não dá sem mais nem mais”, é um ditado andino muito comum. Chamam a atenção as continuas expressões carinhosas utilizadas no trabalho. O indígena trabalha com o coração e com carinho, sendo mais uma atividade espiritual do que corporal, ou melhor, ambas as coisas simultaneamente.

Como funciona essa tecnologia simbólica? Segundo Van Kessel, “é uma tecnologia que compreende um grande caudal de conhecimentos e de habilidades empíricas. Conhecimentos da agro-astronomia e do meio natural: a imensa diversidade de terras e de águas, a leitura sofisticada de indicadores climáticos, o comportamento das plantas, dos animais e das águas, a bondade dos materiais construtivos e dos adubos. Também, habilidades no uso produtivo destes elementos: na agricultura e na pecuária, medicina humana e veterinária, proteção contra pestes e doenças, geadas e granizadas, secas e inundações. A tecnologia andina compreende uma riqueza empírica insuspeitada de saberes e habilidades, que investigadores do desenvolvimento, fechados no seu etnocentrismo ocidental e colonizador, jamais puderam apreciar”. O homem andino - diz o autor - é um grande observador da natureza e das pessoas; desenvolve uma apurada observação dos fenômenos naturais, porém distante de uma atitude fria e impessoal, e sim em uma relação carregada de afetividade e de dedicação orientada a sentir a vida íntima das coisas, no intuito de entender sua linguajem secreta e de se sintonizar delicadamente com elas. Observa, também, a conduta e a ação, a força e a fraqueza dos irmãos, suas exigências e suas motivações, seu caráter e suas alianças.

Dos fenômenos e das pessoas que observa, efetua uma leitura mitológica que desdobra comunitariamente. Todos os comuneiros observam os sinais e fazem a leitura dos indicadores, e os comentam entre eles. A leitura é coletiva, descentralizada, ao igual que a interpretação. Esta acontece num ambiente religioso e em cerimônias rituais coletivas, sempre à procura de prever o futuro para se proteger e se preparar para o trabalho e para a luta pela vida, que é extraordinariamente dura sob as condições geográficas em que se desenvolve. O processo de aprendizagem e a transmissão dos conhecimentos para as gerações jovens, são uma iniciação na vida secreta da comunidade. A instrução tecnológica é educação ética e formação religiosa. Os comuneiros valorizam a tradição, e suas conversações versam sobre o passado remoto ou incidem na lembrança de feitos anedóticos. Os fatos e as experiências do passado têm realidade e consistência, enquanto que o futuro é desconhecido porém procura-se predizê-lo e controlá-lo através de atos rituais e de trabalhos preventivos.

Este conjunto de características da tecnologia incide, ainda, num alto grau de adequação por parte da comunidade, ao meio ecológico onde habita. Ela procura um equilíbrio móbil e duradouro entre o homem e o seu meio, orientado a garantir o bem-estar da comunidade. A tecnologia simbólica constitui uma atitude mental ética do camponês, que maneja suas técnicas de produção e que, ao mesmo tempo, rende culto tanto à natureza como à comunidade das deidades.

Van Kessel salienta dez aspectos através dos quais este modo de organizar a produção tende a garantir sua eficácia. Eles são:
1. As cerimônias e os símbolos têm efeito enquanto constituem um estímulo psicológico, que gera autoconfiança e otimismo numa comunidade cuja existência é dura e azarada, exposta às inclemências e os riscos da ecologia andina.
2. O trabalho e a tecnologia conscientizam, enquanto levam as comunidades a adquirir consciência da própria identidade cultural e histórica, fundamentais para incentivar as iniciativas e as forças coletivas.
3. Os ritos e os símbolos operam como um controlador social dos experimentos técnicos, indispensáveis para o desenvolvimento tecnológico e para o aperfeiçoamento da produção, mas que inevitavelmente implicam riscos que é preciso mitigar.
4. É uma tecnologia integradora de valores, que garante uma visão integral da existência humana e estimula a consciência da unidade hierarquizada dos valores espirituais, sociais e corporais.
5. O rito religioso provê à comunidade, de uma metodologia ordenada e eficaz de observação e de análise da realidade, refinada e penetrante.
6. A ritualidade da produção os protege do materialismo, do consumismo e do tecnicismo. Não cabe, para o andino, uma racionalidade econômica autônoma, descontrolada, liberada das normas éticas e religiosas.
7. Garante a acumulação e a reprodução do “saber fazer”, que é transmitido oralmente. O ritual da produção representa o principal sistema mnemotécnico. A codificação da tecnologia nas formas rituais e nos símbolos religiosos, seja talvez menos exata e esteja exposta ao esquecimento e à perda de informação, porém é altamente flexível e reajustável ao desenvolvimento local baseado no microclima.
8. Os rituais da produção estimulam a responsabilidade dos comuneiros, porque interiorizam e ativam compromissos sociais e pessoais. Ao mesmo tempo, estimulam o esforço pessoal e o aperfeiçoamento, pois salientam e premiam simbolicamente, os resultados positivos alcançados pelas pessoas, as famílias e as comunidades.
9. A tecnologia andina é propriedade comunitária; suas formas rituais garantem o acesso pleno de todos os membros da comunidade.
10. É uma economia e uma tecnologia que garantem os equilíbrios ecológicos.


Na distribuição dos produtos econômicos entre os diversos membros da comunidade e entre as diversas famílias e comunidade que conformam um povo economicamente integrado, não predominam as relações comerciais mas as relações de intercâmbio recíproco, que buscam uma equilibrada satisfação das necessidades fundamentais de todos, reconhecidos como igualmente necessários para a vida, a conservação e a reprodução da comunidade no tempo. Mediante fluxos de reciprocidade regulados pela tradição e os costumes, a comunidade procura assegurar o aporte de cada um conforme as próprias capacidades, e a compensação de seus esforços segundo as próprias necessidades.

Diferentes sistemas cultuais e festivos introduzem elementos de emulação e de competição: neles são celebradas as pessoas, as atividades e os resultados de maior eficácia, aumentando o prestígio social dos mais capazes e esforçados. Porém, também se os compromete e se os faz responsáveis por prover dos recursos necessários para a convivência e o progresso da comunidade. Estabelecem-se assim os mecanismos de redistribuição periódica da riqueza, que impedem um excessivo distanciamento entre as pessoas e as famílias de diferentes capacidades e graus de riqueza.

Texto de LUIS RAZETO MIAGLIARO

TERRA E POVOS INDÍGENAS

A relação da terra para as populações indígenas tem significados próprios. O valor dado a terra em momento algum se menciona o retorno financeiro, a destruição para produzir. A terra é um bem essencial para que toda e qualquer sociedade possa desenvolver a ação de “viver” de forma harmoniosa. Os povos indígenas tradicionalmente viveram e continuam vivendo a partir dos potenciais existentes em seu ambiente. Na época em que ainda não se obtinha os saberes do cultivo da prática da agricultura, tais povos, se adequavam as suas reais necessidades através da cultura nômade, que nada mais era do que a busca de locais propícios para a sobrevivência de suas comunidades, para possibilitar melhores condições de vida. Assim a busca de locais que tivessem a existência de água potável, abundancia em peixes, frutas e raízes e caças, eram sempre lugares de interesse das comunidades indígenas, sendo atribuída abstratamente para cada povo um tipo de demarcação na memória de cada um dos indivíduos que compunha tal etnia.

Os valores da terra para as comunidades indígenas e a sociedade ocidental se diferem. Para os “brancos” o significado da terra está atrelado a interesses econômicos. Assim a terra só serve para que as pessoas possam produzir, escoar a produção e a obtenção de lucro para poucas pessoas. Enquanto que para os povos indígenas a terra tem um significado mais afetivo, de memória, sustentabilidade, identidade, espiritualidade e garantia do princípio da vida.

Para as populações indígenas, a terra é a principal condição para que se garanta a reprodução física e cultural dos povos. Locais para morar, plantar, caçar, pescar, praticar as manifestações culturais. Efetivar a saúde e educação diferenciada só podem se realizar se a comunidade indígena tiver a posse da terra. Não é necessário que se desmate todas nossas matas para que possamos desenvolver as atividades necessárias para nossa sobrevivência. Para os “brancos” a terra tem que ser totalmente desmatada, para que as pessoas possam construir suas casas, fabricas, barragens, ou mesmo cultivo de monoculturas.

A resistência indígena no Brasil se caracterizou por ser contrária as formas de usurpação da mãe terra. Para isso muitas etnias tiveram que desaparecer (serem exterminadas) e outras tiveram sua população reduzida para garantir que nossos territórios não fossem totalmente tomados. A política do colonialismo e da integração, pregava unicamente a perca do direito aos territórios indígenas para daí se configurar num país de uma cultura só, negando por tanto a existência da diversidade étnico-cultural de nosso país.

As ocupações desordenadas pelos colonizadores nos territórios indígenas, acabaram descaracterizando boa parte de nossas terras, extraindo além do espaço territorial, espaços de significados importantes para nossos povos.

A redução dos territórios e povos indígenas no Brasil na época da colonização ocasionou em um problema social extremamente grave, que afeta as comunidades indígenas contemporânea. Se não se tem terra não se tem vida, e é justamente nesse cenário social de descaracterização social e de fragilidade nas identidades indígenas, que vários povos estão vivendo hoje. A falta de terra põe em risco inúmeras etnias indígenas, inclusive as que ainda não tiveram contatos com a sociedade ocidental, desde a questão da sustentabilidade, até confrontos constantes com posseiros.

A vunerabilidade cultural, o risco de perca das línguas indígenas, a desnutrição, a violência nas comunidades indígenas, já é realidade no cenário nacional.

O reconhecimento de direito sempre foi pleiteado pelo movimento indígena organizado e apoiadores junto às estruturas de poder. Com relação a terra, os povos indígenas conseguiram avançar no reconhecimento do direito. Somente através da aprovação da C.F(Constituição Federal) de 1988 os povos indígenas, puderam pressionar e presenciar o reconhecimento desse direito dentro do texto constitucional.

O artigo 231 avançou significativamente nessa área. Reconhecendo aos povos indígenas o seguinte direito: “São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”. Para nós povos indígenas esse fato histórico não só reconheceu o direito a terra, mas também institucionalizou na forma da lei a importância que os povos indígenas tem para a preservação ambiental e da necessidade da obtenção da posse da terra para que as populações indígenas possam efetivamente garantir sua reprodução física e cultural, por tanto negar a terra ao índio é sem dúvida nenhuma negar o direito a vida.

O mau uso dos recursos naturais pelo Homem, remete para o mundo todas as vulnerabilidades sociais já existentes (falta de moradia, emprego, etc.), tanta atitude impensada hoje põe em risco nossa casa. O aquecimento global tão falado e pouco debatido pela sociedade é sem dúvida o retorno que a natureza está nos dando. A preocupação com nossa casa mais uma vez está saindo das aldeias indígenas. Se já não nos bastasse garantir a preservação do meio em que vivemos agora somos responsáveis em disseminar esse costume tão obvio que é zelar pelo lugar em que vivemos.

Tudo isso, só serve para mais uma vez confirmarmos o quanto que o mundo é desigual e insensato, por outro lado é também reconhecida à importância das populações indígenas para garantir o futuro da humanidade, estamos fazendo nossa parte, agora só falta a do estado que é garantir o direito daqueles que sempre mereceram ter a posse da terra, que tem o mesmo significado de ter o cuidado com a terra.

Texto de Weibe Tapeba
Membro da Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena – CNEEI

domingo, 10 de abril de 2011

MANIFESTO DA CNPI

16ª Reunião Ordinária da Comissão Nacional de Política Indigenista – CNPI

À Excelentíssima Senhora Dilma Rousseff
Presidente da República Federativa do Brasil

Ao Excelentíssimo Senhor José Eduardo Cardozo
Ministro de Estado da Justiça


Nós lideranças indígenas membros da bancada indígena e indigenista reunidos em Brasília, por ocasião da
16ª. Reunião Ordinária da Comissão Nacional de Política Indigenista – CNPI, considerando a continuidade desta Comissão sob responsabilidade do Governo da Presidente Dilma Rousseff, depois de mais de 4 anos de funcionamento, preocupados com a manutenção de um quadro de desrespeito e violação aos direitos dos povos indígenas, e cientes da nossa responsabilidade de zelar por esses direitos nesta instância de diálogo e negociação com o Estado brasileiro, viemos por meio desta apresentar à vossas excelências as seguintes manifestações.

Mesmo reconhecendo os avanços que implicaram na criação da CNPI e alguns feitos como as consultas que possibilitaram discutir propostas para o novo Estatuto, a elaboração do
Projeto de Lei do Conselho de Política Indigenista e a construção de uma proposta de Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental das Terras Indígenas (PNGATI), o Estado Brasileiro durante o mandato do Governo Lula não atendeu a contento as demandas e perspectivas do movimento indígena, permitindo que as políticas voltadas aos povos indígenas continuem precárias ou nulas, ameaçando a continuidade física e cultural desses povos, tal como nos casos dos Guarani Kaiowá em Mato Grosso do Sul e dos povos do Vale do Javari no Amazonas, expressões do descaso e da omissão do Estado.

Diante deste quadro, reivindicamos do Governo da Presidente Dilma Rousseff comprometimento no atendimento das seguintes demandas:

1. Criação, na Câmara dos Deputados, da Comissão Especial para analisar o PL 2057/91, considerando as propostas encaminhadas pela CNPI, após discussões nas distintas regiões do país, visando a tramitação e aprovação do novo Estatuto dos Povos Indígenas. Dessa forma, todas questões de interesse dos nossos povos serão tratadas dentro desta proposta, evitando ser retalhadas por meio de distintas iniciativas legislativas que buscam reverter os avanços assegurados pela Constituição Federal de 1988.

2. Que o Governo redobre esforços na tramitação e aprovação do Projeto de Lei 3.571/2008 que cria o Conselho Nacional de Política Indigenista, instância deliberativa, normativa e articuladora de todas as políticas e ações atualmente dispersas nos distintos órgãos de Governo.

3. Que a CNPI apóie a mobilização de nossos representantes junto ao Congresso Nacional para assegurar o andamento destas iniciativas e outras matérias de interesse dos nossos povos, conforme discutido na 15ª. Reunião Ordinária desta Comissão.

4. Que Governo da Presidente Dilma agilize a assinatura do Decreto de criação da
Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial de Terras Indígenas, e a sua devida implementação, para assegurar as condições de sustentabilidade dos nossos povos e territórios.

5. Que o Executivo, por meio do órgão responsável, a Funai, cumpra com máxima celeridade a sua obrigação de demarcar, proteger e desintrusar todas terras indígenas priorizando com urgência os casos críticos dos povos indígenas de Mato Grosso do Sul, principalmente os Guarani Kaiowá, e do Povo Tupinambá de Olivença, no sul da Bahia, não descartando a fragilidade em que se encontram tantos outros povos e terras em todo o país.
A agilidade na conclusão das distintas fases do procedimento de demarcação é necessária para diminuir a crescente judicialização que vem retardando a efetividade das demarcações concluídas pelo Executivo, vulnerabilizando as comunidades frente à violência de grupos contrários ao reconhecimento das terras indígenas e à sua proteção pela União.

6. Que as lutas dos nossos povos pelos seus direitos territoriais não sejam criminalizadas, a exemplo do que vem ocorrendo com nossos líderes na Bahia, Pernambuco e Mato Grosso do Sul, que são perseguidos e criminalizados na maioria das vezes por agentes do poder público que deveriam exercer a função de proteger e zelar pelos direitos indígenas. Reivindicamos ainda que sejam punidos os mandantes e executores de crimes cometidos contra os nossos povos e comunidades.

7. Reivindicamos do excelentíssimo Senhor Ministro da Justiça uma reunião de trabalho com as nossas lideranças que compõem a CNPI e os dirigentes das nossas organizações regionais, que fazem parte da
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), para tratar destas e de outras demandas dos nossos povos e organizações.

8. Que o Governo garanta os recursos financeiros suficientes para a implementação da Secretaria Especial de Saúde Indígena e efetivação da autonomia política, financeira e administrativa dos
Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI`s), com a participação plena e controle social efetivo dos nossos povos e organizações nos distintos âmbitos, local e nacional, evitando a reprodução de práticas de corrupção, apadrinhamentos políticos, e o agravamento da situação de abandono e desassistência em que estão muitos povos e comunidades indígenas.

9. Demandamos da presidência da CNPI a convocação do Ministro da Saúde, Senhor Alexandre Padilha, para que compareça ao plenário desta Comissão, a fim de informar e fazer esclarecimentos a respeito da situação e das perspectivas da implementação da
Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), conforme o Termo de Pactuação acordado entre o Ministério da Saúde, a Funasa, trabalhadores da saúde e representantes dos nossos povos no final do ano de 2010.

10. Que a Funai conclua o processo de reestruturação, garantidos os recursos financeiros e humanos, para superar a situação de falta de direção e descontentamento que está generalizando-se nas distintas regiões do país, assegurando de fato a participação das organizações e lideranças indígenas no processo de discussão dos ajustes ao Decreto, na formulação do regimento interno da Funai, na composição e localização das coordenações regionais e coordenações técnicas locais, e em todo o processo de implementação e controle social da reestruturação.
Que os Seminários sobre a reestruturação não sejam simples repasses de informações ou de esclarecimentos, muito menos de anuência dos nossos povos às propostas da Funai, mas que possibilitem o levantamento das reais demandas para ajustar a reestruturação às realidades de cada povo ou região.

11. Que o Governo da Presidente Dilma normatize a institucionalização do direito dos nossos povos à consulta livre, prévia e informada, sobre os distintos assuntos que os afetam, tal como a implantação de grandes empreendimentos em suas terras (exemplo: hidrelétrica de Belo Monte, Hidrelétricas do Santo Antônio e Jirau, transposição do Rio São Francisco, Pequenas Centrais Hidrelétricas-PCHs) conforme estabelece a
Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que em 2004 foi incorporada à legislação nacional através do Decreto 5051.

12. Que o Ministério da Educação assegure a participação dos povos e organizações indígenas na implementação dos territórios etnoeducacionais e que cumpra as resoluções aprovadas pela
I Conferência Nacional de Educação Indígena de 2009.

Brasília, 31 de março de 2011.

sábado, 9 de abril de 2011

LENDA DO PIRAJURÚ

ORIGEM DOS POVOS AMERICANOS

Em suas viagens destinadas à Ásia, no final do século XV e início do XVI, Cristóvão Colombo chegara às Antilhas, que julgou fazerem parte das ilhas de vanguarda da sua almejada “Cypango” (Japão) e das Índias, com suas valiosas especiarias.

A notícia de terra firme e povoada a oeste do Mar Oceano chegou rápida ao conhecimento dos perplexos humanistas da Europa. E não tardaram as suposições concernentes à origem dos seus habitantes, de um tipo diferente dos europeus e africanos. Hipóteses inumeráveis foram lançadas por eruditos. A mais interessante surgiu da lembra
nça de uma história lendária, que viera do Egito, na Antiguidade, e expandira-se pela Grécia de Platão: a existência de Atlântida em pleno Mar Oceano – motivo pelo qual os gregos lhe deram o nome de Mar Atlântico. Seriam aqueles habitantes descendentes dos atlantes?

A
partir de 1800, com o progresso dos conhecimentos científicos, alguns estudiosos preocuparam-se com o problema da ocupação original da América. Já se sabia que não foram autóctones, e sim descendentes de migrações. No início do século XX, Hrdlilçka, elaborou uma teoria que prevaleceu, sobretudo nos Estados Unidos: os ocupantes seriam formados por uma única raça, do Alaska à Terra do Fogo, de origem mongolóide, que teriam chegado à América vindos das regiões setentrionais da Ásia oriental. O estreito de Behring fora o caminho utilizado pelos migrantes, que teria congelado durante a última era glacial tornando-se uma ponte entre os dois continentes há cerca de 10 mil anos atrás.

Meio século depois, tornou-se evidente que os grupos que migraram pelo estreito de Behring não ultrapassaram o Canadá. A maior parte do povoamento – de maior importância inclusive – foram resultantes de migrações oceânicas através do Pacífico, que consolidaram em alguns
milênios a ocupação ampla do continente. Desembarcaram ao longo de toda a costa ocidental da América, da Califórnia à Terra do Fogo, vindos da Austrália, Melanésia, Indonésia e Polinésia.



A menor dessas migrações, a mais meridional, viria do sul da Austrália, talvez da Ilha Tasmânia. Seria a origem dos agigantados índios Patagões e aos Fueginos, na Terra do Fogo, a extremidade sul do continente. Alguns traços culturais foram encontrados entre esses povos que se vinculam aos povos australianos: o manto de peles, as choças em colméia, o bote de cortiça, o bumerang, as técnicas de trançar cordões, etc.

O segundo grupo migratório importante partiu da Melanésia, através de balsas. Foram encontrados vários objetos tipicamente melanésios em povoamentos antigos desde o sul da Califórnia até Lagoa Santa, no Brasil.
O terceiro grupo veio da Indonésia. Hábeis navegadores, eles já dominavam o Pacífico antes que os europeus conseguissem atravessar o Atlântico. Faziam longas e perigosas viagens pela Oceania, usando as correntes marítimas e os ventos e tufões orientais que eles sabiam enfrentar. Sua arma típica é a sarabatana.
O último grupo migratório saiu da Polinésia, através de grandes jangadas feitas de junco, bambu, tábuas e velas de pele. As balsas duplas eram capazes de transportar mais gente e alimentos, navegando com segurança e indo mais longe. Wilhelm Schimidt lembra a tradição peruana “que teriam aprendido a arte de navegação à vela de Viracocha, o qual lhes viera do lado do mar em uma balsa veleira”, e que afirma que essa tradição deve dirigir nossa atenção imediatamente para os Polinésios. Além disso, há inúmeras provas etnológicas da concordância cultural entre polinésios e ameríndios: a rede, as danças rituais de máscaras, a técnica de pontes suspensas, a sarabatana, o propulsor de flechas, a massa feita de pedra anular ou em forma de estrela, os machados de cabo em cotovelo, as cabeças-troféus, a flauta de pan, o tambor de madeira, o tambor cilíndrico de membrana de pele, o arco musical, o charinga, o estojo de pênis, os vestidos de casca de árvore batida, muitos jogos de azar, as mutilações dentárias, as incrustações dos incisivos, a amputação de falanges como sinal de luto, a trepanação craniana, as habitações em palafitas, a cultura em terraço com irrigação, o processo de tintura de fibras, a fabricação de bebidas fermentadas, as cordas de nós como meio de numeração (kippu), os mitos funerários, escudos quadrangulares (encontrados tanto nos Andes quanto nos Tupi da Bahia). Também existem muitos elementos da espiritualidade americana que se aproxima dos polinésios: a mitologia solar, típica da Oceania.

Com todos aqueles séculos, milênios talvez, tornou-se bem amplo o número de migrantes desembarcados nas costas ocidentais americanas... além da multiplicação dos grupos dispersados já por essas terras. Alguns deles fixaram-se perto do litoral, mas a maioria penetrou a terra, de onde se avistava ao longe as altas montanhas coroadas de neve da Cordilheira dos Andes. Em sua maior parte, devem ter descido as encostas orientais dos Andes e seus planaltos, espalhando-se por milhares de léguas de norte a sul, mergulhando em florestas tropicais e rios de águas copiosas, nunca imaginadas por eles. E assim ocuparam todo o território da América do Sul.

Os povoadores oceânicos agruparam-se nas duas zonas continentais: a alta, dos Andes a oeste; e a baixa, a oriental, compreendendo principalmente o Brasil. Na área brasileira, estabeleceram-se dois tipos de indígenas. O menos culto, provavelmente os mais antigos, ambientaram-se a viver de caça, pesca e coleta de frutos e raízes, constituindo a FAMÍLIA GÊ. O segundo, originários da Polinésia, já possuíam um certo adiantamento cultural, praticando agricultura regularmente, abastecendo-se de milho e mandioca. São a origem da FAMÍLIA TUPI-GUARANI, que originalmente se organizaram no altiplano boliviano, às margens do Lago Titicaca, e só depois se dispersaram pelo Brasil, Paraguai e Uruguai.

Baseado em texto de MOACYR SOARES PEREIRA,
da Universidade Federal de Alagoas.