sábado, 30 de outubro de 2010

YVY MARANE’Ÿ

O conceito de TERRA-SEM-MAL outorgou aos Guarani um caráter de modernidade notável. Do conceito, apropriaram-se não só os antropólogos, mas também ecologistas, filósofos, sociólogos, historiadores, poetas e teólogos. A Missa da terra-sem-males, de Dom Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra, é em si um poema admirável e apaixonado. Do guarani, foi amplamente divulgada a imagem de quem busca, incansável e profeticamente, essa terra-sem-mal. Falar de guarani se tornou quase sinônimo da busca da terra-sem-mal. Desse modo, uma experiência indígena se tornou exemplar e paradigmática para se pensar e trabalhar uma realidade mais ampla e geral, como é o projeto – a utopia – de uma sociedade mais solidária e humana. Segundo os versos de Casaldáliga (1980):

Os pobres desta terra
queremos inventar
essa Terra-sem-males
que vem cada manhã

E é verdade que as palavras “yvy marane’ÿ” – terra sem-mal – assim como “ka’a marane’ÿ” – selva sem-mal – constam já no “Tesoro”, de 1639, mas com um sentido mais ecológico e realista. Trata-se de um solo intacto, de um monte ou selva não trabalhado, de onde ainda não se tirou madeira. Por analogia, “kuña marane’ÿ” é mulher virgem, e o epíteto foi aplicado pelos missionários à Virgem Maria. O caminho à terra-sem-mal não desviaria do paraíso, mas, pelo contrário, faria começar aqui e agora essa utopia, em um caminhar esforçado e livre, sem alienação e sem opressão. A terra-sem-mal dos Guarani seria, nada mais e nada menos, “a terra da liberdade de todos os homens”, como entendeu também Casaldáliga.

A verdade é que os Guarani escolheram climas úmidos, com uma temperatura média entre 18 e 22º C, se localizaram preferencialmente nas orlas de rios e lagunas, em lugares que não excedem os 400 metros acima do nível do mar, habitando bosques e selvas típicas da região subtropical.

Mas a ecologia Guarani não é só natureza, nem se define pelo seu valor exclusivamente produtivo. Com uma expressão que lhe é muito característica, o guarani se refere ao seu território como “tekoha”. Pois bem, se o “teko” é o modo de ser, o sistema, a cultura, a lei e os costumes, o “tekoha” é o lugar e o meio em que se dão as condições de possibilidade do modo de ser guarani. Com os próprios dirigentes guarani, é preciso dizer que sem “tekoha” não há “teko”. O “tekoha” ideal é um monte preservado e pouco perturbado, reservado para a caça, a pesca e a coleta de mel e frutas silvestres. Além disso, há manchas de terra especialmente férteis para nelas se fazer as roças e os cultivos. E, por fim, um lugar onde será levantada a grande casa comunal, com um grande pátio aberto, ao redor do qual crescem alguns pés de banana, de tartago, de algodão e de urucu. São esses espaços: monte, roça e aldeia, que dão a medida da boa terra guarani.

Há até muito pouco tempo – antes que chegasse a rápida deterioração ecológica da região –, caminhar pelos caminhos de um “tekoha” Guarani e descansar em suas casas era ver um espetáculo e escutar uma sinfonia. Essa é a terra boa que o Guarani, caminhante, horticultor e aldeão, procurou incansavelmente para nela cultivar e viver.

Com boa produção agrícola, pode-se ter muita e abundante comida, e a possibilidade de fazer festa é muito maior. O fundamento da terra Guarani acaba sendo, desse modo, a festa, onde se compartilha a alegre bebida da chicha – “kaw” –, e onde há uma festa Guarani aí está, no fim das contas, o centro da terra e a terra boa e perfeita à qual se aspira.

Para o guarani, há uma relação direta entre terra-sem-mal e perfeição da pessoa. O caminho de uma leva à outra. E assim como a terra-sem-mal é real e está neste mundo, a perfeição, que, em seu grau de excelência, inclui o não-morrer – que não é simplesmente a imortalidade –, também é real na terra. A terra-sem-mal como terra nova e terra de festa, espaço de reciprocidade e de amor mútuo, produz também pessoas perfeitas, que não saberiam morrer.

Historicamente, o Guarani tem uma experiência inegável do mal na terra: é a festa impossível, a perfeição inalcançável. São numerosas as tradições que falam de catástrofes e cataclismos que já aconteceram e são sempre possíveis. As diversas metáforas da destruição da terra e de seus males podem receber uma leitura natural e desmitificada: se trataria de prolongadas secas, esgotamento do solo, diversas pragas de animais daninhos, eclipses do sol e da lua, inundações, ataques de inimigos... Não é essa, no entanto, a interpretação indígena. O mal na terra, essa “coisa deforme”, nunca é um fenômeno natural nem uma circunstância meramente ecológica. É algo que afeta e destrói o modo de ser guarani.

Os Paÿ e Kaiowá contemporâneos assinalam como causas que podem provocar a destruição da terra a violência e, em especial, o homicídio, as faltas cometidas contra a ordem moral, quando são negados a colaboração e o amor mútuo, e também a ofensa moral, quando não há reconciliação.

O mal atual consiste nos montes, nas cercas das fazendas que cortam os caminhos e reduzem a nada as terras indígenas, no egoísmo dos brancos e na falta de religião destes mesmos. É por isso que os cataclismos de sempre estão à espreita para se abater sobre o mundo: ventos de furacão, tempestades, incêndios, inundações, desgraças de todo o tipo, em forma de mortes repentinas, enfermidades incuráveis, fomes e mal-estar social.

O mal da terra não é de agora. Não há dúvida de que foi com a entrada do sistema colonial que o mal irrompeu com força inusitada e formas inéditas. Pestes, escravidão, cativeiro e perseguições foram os quatro cavaleiros do apocalipse colonial. A história colonial é, para o guarani, uma progressão de males que parece não ter fim nem limite. O pior de todos os males coloniais será simplesmente negar a terra aos Guarani. Ir aonde? Desaparecem as selvas e os montes, tudo se torna campo, e o campo é exigido pelo branco para as suas vacas. Toda a terra se torna mal. O “mba’e meguã” – a coisa ruim – cobre tudo.

Migrante e, portanto, frequentemente “trans-terrado”, o guarani, nunca antes havia sido tão des-terrado. Agora, em busca da terra-sem-mal, ele só teme o dia em que só haverá mal sem terra. Então, não haverá nem terra nem palavra.

Estive com frequência em assembléias e em rituais em que os discursos e as rezas expressam a dramática busca do povo guarani, em vista à recuperação da terra-sem-mal. Certamente, se apresentam dificuldades enormes, principalmente para reconstituir um território guarani, que, por outro lado, seria de grande valor para o Brasil inteiro e para toda a região do Rio da Prata. Os Guarani continuam lutando nessa busca. Isso lhes dá um sentido de ser, eles mesmos, profecias vivas e de ser, para todos nós, memória de futuro.

Entrevista de Bartomeu Melià ao IHU On-Line

terça-feira, 5 de outubro de 2010

AYMARAS

A história dos AYMARAS está intimamente ligada ao Titicaca, na região conhecida como Altiplano, a 3.812 metros de altitude. Por estar situado em clima árido, o Titicaca sempre atraiu às sua margens, uma infinidade de grupos que vagavam em busca de melhores condições para sua sobrevivência.

Não podemos afirmar com segurança que os aymaras constituíram um único grupo migratório. Antes deles, haviam-se fixado grandes nações como a Chiripa (1350 aC - 100 dC), Pucara (1100 aC - 100 dC) e Tiwanaku (1580 aC - 1200 dC) - que atingiu o grau de civilização, estabelecendo os futuros padrões regionais para a agricultura, arte, arquitetura e religião, usados depois por outras nações, como os incas. Com a fragmentação dos Tiwanakus em 1200 dC, diferentes grupos aymaras passaram a ocupar às margens férteis do Titicaca, assimilando parte do conhecimento deste grande império extinto.

Por este motivo, não é exagero afirmar que a cultura aymara tem na língua, o seu mais precioso bem. Na verdade, é ela que determina quem faz parte ou não desse grupo social. Embora tivessem herdado um rico legado, não conseguiram em sua curta existência de domínio regional (1200-1400 dC) fixar padrões sociais sólidos. Viviam ainda uma fase de assentamento, quando da invasão incaica, de língua quéchua.

Os aymaras sobreviveram, portanto, a duas grandes invasões: a dos incas e espanhóis. Mas da forma como os invasores chegaram, se foram. E os aymaras ficaram, isolados no Altiplano, em meio ao caos social. Aceitaram a contra gosto as novas imposições político-religiosas, mantendo suas crenças de forma quase clandestina, numa resistência silenciosa.

Muito das crenças aymaras são provenientes de tempos mais remotos. Quando de sua chegada, em 1200 dC., diversos povos já haviam estabelecido suas HUACAS na região, ou seja, seus locais e objetos sagrados. Seu conceito é complexo e abrangente. Ela pode ser uma rocha, árvore de formato estranho, uma montanha, ilha, caverna ou o próprio Titicaca. Uma huaca sempre guarda ligação com algum Espírito protetor de uma família ou comunidade.

Esse conceito ainda hoje é utilizado. Muitas vezes, nem os próprios camponeses sabiam me explicar o motivo dessa adoração. O vulcão Kapía (4809 m), próximo a Yunguyo, é um deles. A cidade (50 mil hab) é tipicamente católica, mas discute ainda os perigos de quem se aventura nos vales próximos ao vulcão. Muitos acreditam que aquela seja uma das regiões habitadas pelo Nakaq (ou Kjarisiri), um anão degolador que vive soturnamente atrás de vítimas para delas extrair sua gordura, utilizada na confecção de velas, lubrificantes e operações hospitalares. Esta lenda encontra ecos em tradições da conquista espanhola e revela como os aymaras vivem mergulhados num mundo mítico que os cerca.


O vulcão Kapía é uma huaca, e como tal, visitada pelos camponeses. É comum encontrar, nas encostas da montanha, pequenos grupos em direção a alguma encosta para depositarem suas oferendas (folhas de coca, velas, grãos e aguardente) em pequenos casulos de pedra, na esperança de dias melhores.

Na margem oposta do Titicaca, na Península de Huata, pode-se ver monólitos: estátuas de pedra lapidadas com motivos variados. Alguns deles cercados por pequenos muros de pedra, tornaram-se locais depositários de oferendas. Infelizmente, muitas dessas antigas estátuas estão sendo roubadas por huaqueros (traficantes arqueológicos), que as vendem a estrangeiros.

Em todo o Titicaca, com os primeiros raios solares, podemos presenciar comunidades camponesas que antes de iniciarem as tarefas diárias, reúnem-se em círculo para mascar coca e conversar. Essas ações comunitárias são frequentes entre eles. Ainda podemos encontrar, embora de forma cada vez mais rara, a tradição da Zafa-Casa, onde a comunidade se reúne durante alguns dias em festa, enquanto ergue a casa de moradores que irão se unir em matrimônio. Os laços comunitários quase nunca envolvem dinheiro, mas a garantia de auxílio e a segurança de poder sempre contar com alguém. A educação comunitária ensina aos jovens que para sobreviver no mundo hostil do Altiplano, precisa existir união. Não apenas a união proveniente da zafa-casa, mas a deles mesmos, enquanto indivíduos, com o mundo mítico do Titicaca. Os jovens compreendem que fazem parte de um todo, uno e indivisível, marcado pela presença de forças antagônicas.


Desta forma, o conceito de sagrado entre os aymaras não se restringe a um culto específico ou deus em particular. Podemos dizer que se aproximam muito de um culto animista - reforçado por suas tradições comunitárias - dedicado às forças da natureza e as Espíritos diversos que vagam pelo Altiplano, interferindo de alguma forma em suas vidas diárias, de acordo com as oferendas que lhes são prestadas.

Pachamama, a "Mãe Terra", é provavelmente o maior símbolo desse culto. A palavra "Mãe" significa apenas o termo ocidental mais próximo que foi encontrado por tentarmos compreendê-la. Não existe uma terminologia moderna que possa, ou sequer consiga, expressar seu vasto significado. Ela é o próprio tempo em movimento, o espaço indivisível e onipresente. É o solo divinizado, possuidor da vida. Algo por demais global para ser traduzido em palavras. Tanto, que não existe um dia comemorativo para Pachamama: ela tornou-se inseparável do cotidiano! Mas se ela é tão importante, não deveriam existir imagens para sua adoração? Isso não ocorre. O aymara não precisa recorrer a esse tipo de artifício para falar com seus Espíritos, pois eles estão ao seu lado, como estão as árvores, pedras, rios, animais e tudo o mais, integrados e expostos às intempéries da vida.

Então, como podemos crer na imagem de um aymara carregando a cruz durante uma procissão católica? Cena comum em Copacabana, a "capital" católica do Altiplano. Devemos encarar isso como uma corrupção de suas antigas tradições? O povo aymara convive num mundo cheio de dualidades e sincretismo. Conseguem de forma absolutamente natural, participar de uma missa e no momento seguinte, prestar culto a seu Espirito familiar representado por uma montanha. Os padres de Copacabana aprenderam a aceitar a postura nativa. A repressão a tais tradições milenares dificilmente obterá resultados.

Não longe dali surge a Ilha do Sol, imponente e misteriosa, guardiã de uma das mais antigas rotas sagradas da América: o Kapac Nan. No período pré-incaico, diversos grupos peregrinavam em busca deste local, controlado por diversas nações. A última a administrá-la foram os incas, que iniciaram até mesmo a construção de um gigantesco muro para isolar o local, tamanha sua importância. Manipular o sagrado significava exercer um vasto poder perante as demais nações. Hoje restam poucos vestígios desse passado na ilha. A maioria dos templos foi demolida pelos espanhóis, que não compreendiam a cosmovisão nativa. A construção de uma catedral católica em Copacabana não é portanto, casual. Representa o controle do sagrado, agora em mãos dos de língua espanhola.

Recentemente, os Aymaras obtiveram um avanço significativo na educação de seu povo, ao elevarem o dialeto aymara à condição de língua nacional. Reconhecidos, podem agora praticá-la com maior liberdade nas escolas comunitárias, reforçando seus laços com as antigas tradições. As novas gerações vivem com um pé no mundo mítico do Titicaca e outro na dura realidade camponesa. Dividem-se entre as maravilhas tecnológicas mostradas pela TV e a falta de estrutura de suas cabanas. Contudo, ao olharem diariamente para a paisagem, continuam a sentir a força da terra, o vento gelado e cortante em seus rostos e o sol que queima a pele a 4000 metros de altitude. E quando precisarem recorrer ao auxílio para sua sobrevivência, certamente olharão para as montanhas, para suas huacas e para os laços de sua própria coletividade.

Baseado em texto de Dalton Delfini Maziero

domingo, 3 de outubro de 2010

COCAR... signo violentado


A mídia seqüelada de Manaus publicou, hoje dia 5, com ostentação, as imagens do presidente da CBF, Ricardo Teixeira, e de um representante da FIFA, cada um com um cocar na cabeça. Lógico, que alguém do governo estadual deve ter realizado a violenta prática, já que as duas figuras não iriam por livre e espontânea decisão configurar as imagens violentadoras. Não que ambas sejam antropologicamente cônscias da violência, mas por que executando tal ato estariam, de uma certa forma, mostrando claramente tendência à favor de Manaus como sede escolhida para copa de 2014. O que implicaria atrito com as outras duas capitais: Belém, forte concorrente, e Rio Branco, também disparada em relação à Manaus. E como Ricardo Teixeira se mantém na presidência da CBF por conluios com presidentes de Federações, não jogaria contra si mesmo.

O que evidencia a estupidez de uma sujeito é sua limitação para discernir o que existe além de sua realidade. Para este sujeito o mundo fora de si é pura abstração: não se concretiza como autônomo, independente. E quando trata-se de relações culturais aí que a impossibilidade de discernimento se mostra mais real.

O não estúpido sabe que a cultura de uma povo é o produto das experiências deste povo transformadas em sentidos e representações como expressões de sua identidade. Todos os corpos matérias e imateriais que compõem sua cultura foram produzidos nos processuais de seus percursos empíricos. Nenhum objeto material ou imaterial nasceu como supérfluo, como ocorre na sociedade da opulência do capitalismo consumista, como fala o filósofo Marcuse.

O colere, o signo etimológico latino de onde se origina a palavra cultura, demonstra que toda produção é um ato de cultivar a vida como afirmação para a habitação do homem. Assim o índio não criou nenhum objeto fora de sua realidade ontológica. Todos os objetos de seu inventário cultural carregam a força afirmadora de seu habitat como vida. Por isso, ao contrário do que imagina, e exibe, a estúpida consciência branca, um cocar é um signo transportador de força afirmativa da cultura indígena. Nunca um adereço alienado de sua realidade como quer a consciência branca que o reificou em peça de museu-turístico para ser usado como mercadoria de sedução para tocar o capitalismo, no caso, a FIFA e a CBF. Um cocar não é signo desativado da vida, como qualquer bijuteria da cultura fetichista branca que serve aos seus propósitos vazios. Um cocar é real atuação indígena. Nunca glamour sem causa social.

Desta maneira, o que se depreende desta violência cultural é que um governo que faz uso e abuso desta discriminação não pode jamais enunciar que está preocupado com a cultura indígena como é alardeado. Mormente, agora que o governo federal põe em prática uma política ligada a preservação não só dos territórios indígenas como também a valoração de sua cultura.

Com a palavra contestatória os próprios índios e os antropólogos das instituições, principalmente da UFAM. Mas nada dos ‘antropólogos’ saudosistas da hippielândia. Estes são tão branquelos como o “funcionário” do governo que usou o cocar como signo violento de sedução.

E mais, o futebol que o índio sempre jogou não tem semelhança com o da FIFA,CBF, mídia, e muitos menos dos governos telúricos.


Texto publicado no blog AFINSOPHIA – Associação Filosófica Itinerante.