domingo, 13 de fevereiro de 2011

SARODE - canto de cura ayoreo

Os AYOREO são um povo indígena do Gran Chaco e vivem de ambos os lados da fronteira que separa o Paraguai e a Bolívia. Falam uma língua pertencente à família zamuco. De acordo com os últimos censos, os Ayoreo são de 4.000 a 5.000 pessoas, com mais de 2.000 residentes no Paraguai.

Até a década de 1950, os Ayoreo evitavam contato com as sociedades nacionais ou outros povos indígenas, e as relações entre diferentes grupos territoriais ayoreo eram freqüentemente hostis, especialmente entre os Ayoreo do
norte e os do sul - os Guidaigosode e os Direquedejnaigosode. Mesmo hoje, os Ayoreo são extraordinariamente diferenciado, mantendo sua língua e muito de sua cultura. Muitos falam pouco ou nenhum espanhol ou guarani; e, diferente de vários outros povos indígenas do Chaco, raramente se casam com povos de outras sociedades indígenas, se é que alguma vez o fazem, e muito menos com povos não indígenas. Na Bolívia, os Ayoreo foram contatados pela primeira vez na década de 1950; no Paraguai, apenas em 1962. As últimas e poucas famílias de Totobiegosode só foram contatadas em 2003, após várias tentativas, incluindo uma desastrosa expedição em 1986 que levou à morte cinco dos Ayoreo. Nos últimos anos, algumas comunidades menores, independentes, tais como Tunucujai, Ebetogue, Jesudi e Jogasui, separaram-se das duas comunidades principais no Paraguai e adquiriram o direito a ter suas próprias áreas pequenas de terras.

Os SARODE – ou “cantos de cura” são muito perigosos. Se eles fossem cantados sem nenhum bom motivo, podem de fato trazer a condição que deveriam curar. Por exemplo, se um canto para curar mordida de cobra for cantado à-toa, pode realmente fazer com que alguém na comunidade seja mordido por cobra. Existe sarode para curar dor de dentes, dor nas pernas, convulsões, exaustão, feridas causadas por uma onça, etc.

É importante observar que os sarode são apenas um de uma série de diversas técnicas de cura. Eles podem ser usados por q
ualquer um que conheça os cantos, não só por pessoas consideradas xamãs. No entanto, devido ao perigo potencial associado aos cantos, não são amplamente conhecidos e, na verdade, videntes e xamãs geralmente têm um repertório mais amplo. Xamãs ayoreo também usam outras técnicas, principalmente a sucção, para remover dores ou objetos patogênicos considerados causadores de doenças; e alguns xamãs são também especializados em assoprar ou utilizam uma técnica que implica passar as mãos pelas partes do corpo afetadas pela doença. Sebag explica isso como sendo o OREGATÉ – o "espírito" das mãos do xamã – entrando no corpo do paciente para remover o objeto ofensor. Em Jogasui - uma comunidade que se estabeleceu perto do local de Faro Moro -, conta-se de um velho parteiro, Ñaine, que mora em Tunucujai e usa sopro e passar as mãos para evitar que mulheres – especialmente aquelas que passaram por cesarianas - tenham mais filhos. Os Ayoreo insistiram que seu método é eficaz e citaram os nomes de duas pacientes que não tiveram mais filhos desde que foram tratadas por ele.



Algumas das canções de cura são acompanhadas por sucção para remover a dor. A sucção e o sopro são técnicas usadas pelos xamãs, conhecidas por DAIJNAME (no singular, daijnai). O sopro geralmente é usado para curar doenças menores, enquanto a sucção é usada para curar doenças mais sérias ou crônicas e pode envolver a remoção de objetos grandes. Há diferentes tipos de daijnane: alguns se comunicam ou recebem seus poderes de espíritos de peixes ou de criaturas aquáticas, outros de animais terrestres e alguns de pássaros e outras criaturas do ar.

Os Ayoreo também reconhecem uma categoria à parte de xamãs, os JNAJAPODE, que podem ser definidos como “videntes” ou “homem da sabedoria”. Por meio de seus sonhos e visões, eles apren
dem canções que os espíritos lhes ensinam e podem prever perigos, tais como epidemias e ataques de inimigos. Um dos homens mais velhos que mora em Jogasui é Cojñoque; ele relata que seu pai era jnajapode, que cantava suas revelações: por exemplo, numa ocasião ele sonhou que um espírito (dicore) o preveniu de um ataque iminente pelos Direquedejnaigosode, os Ayoreo da Bolívia. Os jnajapode geralmente não são daijnane, mas há exceções notáveis, tais como Uejai, líder dos Guidaigosode, que era um daijnai e vidente bem-sucedido. Aparentemente, em certa ocasião, Uejai sonhou que um tamanduá gigante perseguiu seu povo - isso foi um sinal de que o mal afetaria o grupo. Ele sempre os alertara de não comer animais defeituosos, mas parece que alguns Ayoreo de sua comunidade tinham matado e comido um tamanduá cego sem informá-lo. Isso foi em 1986, quando os Ayoreo de Campo Loro estavam se preparando para fazer contato com Totobiegosode; em poucos dias chegaram as notícias a Campo Loro de que cinco Ayoreo do grupo tinham sido mortos no encontro.

Os cantos de cura em si, os sarode, são recitais curtos que podem ser repetidos conforme a necessidade. A maioria tem uma estrutura semelhante: começam com o cantador se identificando com um animal ou planta que costumava sofrer a condição que o canto pretende curar, e o canto então explica que o animal ou planta tem o poder de curar a si mesmo e pode explorar seu poder de curar outros. Os mesmos temas se repetem, daí expressos de uma forma um pouco diferente, e se repetem novamente e assim por diante. Exatamente como acontece com todo canto xamanístico, o sarode geralmente revive a experiência do paciente. Talvez a melhor maneira de transmitir o sentimento do sarode é apresentar alguns exemplos. Um canto para curar infecção de ouvido é assim:

Eu sou Digorocoi [uma espécie de pica-pau].
Eu faço buracos nas árvores: a sujeira entra nos meus ouvidos, deixando-me totalmente surdo.
Eu não consigo ouvir nada...
Mas agora, eu posso, com isto...
Eu não consigo me levantar, eu estou deitado no chão, mas agora eu sugo meu ouvido...
Eu me salvo, eu me salvo.
Meu ouvido está bem, eu posso ouvir de novo.
Eu me curei, eu me curei.
Meu ouvido está curado.
Meu
ouvido está como novo, eu sou Digorocoi.
Yo chi, yo chi, yo chi [sons da dor de ouvido].

Eu posso curar outros.
Eu sugo outros que sofrem de dor de ouvido.

Eu posso abrir os ouvidos de outros...
Eu posso curar dor de ouvido...
Eu posso abrir a audição de outros...
Eu posso sugar o ouvido daqueles que estão com dor de ouvido,
a dor os deixa e eles ficam felizes.
Porque eu posso... com isto...

Eu sou Digorocoi, eu sou Digorocoi.
Eu posso também curar outros…
Que sofrem de dor no ouvido Meu ouvido foi bloqueado...
Mas eu sugo outros, eu os curo.
Agora eles se sentem bem novamente.
Eu abri a sua audição…
Yo tidi, tidi, tidi Yo che, yo che, che, che [sons da dor de ouvido].

Eu sou Toroi [outro pica-pau].
Eu também posso curar aqueles cujo ouvido está bloqueado.
Eu também posso abrir os ouvidos daqueles que ficaram surdos.
Eu também posso sugar aqueles que têm dor de ouvido e abrir sua audição.
Eu os salvo, eu os salvo, eu os salvo.
Eu posso abrir seus ouvidos...
Eles estão felizes novamente
Porque eu abri seus ouvidos.
Eles estão felizes de novo.
Porque eu suguei seus ouvidos.
Eu abri seu ouvido.
E eu os salvei…
Yo che, Yo che, che, che Yo tidi, tidi, tidi… [Sons da dor de ouvido.

Em alguns sarode, o cantor começa por identificar o órgão infectado, usando onomatopéia para expressar a dor sentida pelo paciente, e só depois identifica o animal que tem o poder de curar a doença. Um sarode para curar dor de estômago é assim

Eu sou o estômago.
Yo oooh, oooh, oooh Yo oooh, oooh… [Barulho da dor de estômago.]
Minha dor que eu sofro é terrível, ii, iii [barulho da dor de estômago].
Quando a dor de estômago pega alguém, ela não deixa a pessoa comer.
A dor faz a pessoa sofrer... sou o estômago, eu faço a pessoa sofrer!
Aieee…


Eu sou o Aruco [um pequeno tatu].
Eu sou Aruco, se eu sugo, se eu sugo o estômago, dor vai embora imediatamente.
Quando eu sugo, a dor me toma, a dor entra em mim, teri, teri [barulho da dor].
A dor entra em mim até que o meu sangue sai, até que o meu sangue sai.
Eu sou grande, grande, grande...
Quando a dor entra em mim, eu sugo meu estômago até que a dor passa.

Neste canto. o cantor suga o estômago do paciente e depois canta de novo. Darei outro exemplo, desta vez de um canto para curar infecção dos olhos que envolve dois animais semelhantes, Capomira, um pequeno sapo que mora na areia e sai e canta quando chove, e Ugobedai, descrito como um tipo de geco espinhoso:

Eu sou Capomira [um pequeno sapo], eu sou, eu sou...
Eu tenho boa visão, boa visão, boa visão...
Eu entro na terra, eu entro na terra.
Quando eu saio, não há nada de errado com a minha visão.
Eu me enterro na areia, nada acontece com minha visão.
Nada acontece com minha visão, nada...
Eu curo outras pessoas.
Eu sugo a dor das infecções nos olhos, e a dor vai embora.
Eu faço a dor ir embora, ela vai embora...
Eu tenho boa visão.
Boa visão...
Nada acontece com meus olhos.
Yo tidi, tidi. Yo cha, cha… [Sons da dor de infecção nos olhos]

Eu sou Ugobedai [uma espécie de geco].
Eu tenho uma cabeça feia.
Eu posso fazer a dor nos olhos passar.
Tori, tori, tori, torii, torii… [Som da infecção sendo curada.]
Eu também sofro de dor nos meus olhos.
Eu saio da areia, mas meus olhos são saudáveis.
Meus olhos são saudáveis, meus olhos são saudáveis.
Eu sou ótimo. Eu curo a dor nos olhos.
Eu tenho boa visão, boa visão...

A condição, ou a doença, às vezes é personificada. Um canto para curar queimaduras - deve ser observado que as queimaduras às vezes são auto-infligidas para demonstrar tristeza pela morte de um amigo próximo ou parente, ou em algumas ocasiões simplesmente para demonstrar coragem - descreve o poder das chamas, enquanto o canto para curar diarréia descreve a contorção do estômago, a defecação e a sensação de queimação no reto. De forma semelhante, um canto para curar dor de cabeça inclui os seguintes versos:

Eu queria ser uma grande [séria] doença...
Mas eu vou ser uma dor de cabeça.
Eu vou ser uma dor de cabeça.
Eu vou fazer uma dor de cabeça.
Eu vou fazer uma dor de cabeça e vou doer muito.
Eu vou doer muito.
Eu vou doer a cabeça...
Eu realmente vou doer muito.

Eu vou ser uma dor de cabeça realmente dolorosa.
Eu vou doer.
Eu bato a cabeça no chão.
Eu sou a dor de cabeça.
Yo, to, to, to, to, to Ye, ca, ca, ca, ca, ca [sons da dor de cabeça].

A falha de um sarode não significa que a técnica seja questionada. Em geral, leva a uma reavaliação do diagnóstico ou, mais provavelmente, a uma reavaliação da gravidade do caso. De fato, a maioria dos sarode destinam-se a condições que são aparentemente simples ou óbvias: infecções nos olhos, dores de cabeça, dores de estômago, queimaduras, feridas ou parto prolongado, etc. Se o sarode fracassa em alcançar a cura, isso pode significar que a condição se deva na verdade a alguma causa subjacente. Se um Ayoreo corta o pé com um machado ao cortar madeira, é um acidente, no entanto, se a ferida infecciona e não é sanada, o paciente e seus parentes podem começar a procurar outras explicações. Os Ayoreo são pouco propensos a interpretar isso como feitiçaria, embora haja essa possibilidade mas, então, geralmente é atribuída a forasteiros mais do que de pessoas da própria comunidade. Os Ayoreo talvez tendam mais a interpretar doenças graves e infortúnio em termos de infrações, chamadas de PUYAC. Esta palavra significa "perigo" ou "sujeira" e se refere a um complexo conjunto de regras que define dieta, caminhadas na floresta em certas épocas e perturbar animais que hibernam durante o inverno, particularmente poji, o iguana e asonjá, um pássaro noturno do gênero dos Caprimulgidae, talvez bacurau-da-telha. O caso do tamanduá cego, mencionado acima, é bastante típico dessa categoria: observe-se que a pessoa que comete o ato não é necessariamente a mesma pessoa que sofre a doença ou o infortúnio.

Os cantos de cura ayoreo são eficazes da mesma forma que os tratamentos médicos ocidentais de primeira linha - já que o paciente geralmente se sente melhor e eventualmente se recupera. Exatamente como ocorre com os procedimentos ocidentais, eles não são infalíveis: em alguns casos, exige-se uma revisão do diagnóstico ou um tratamento mais radical, em outros, o paciente fica permanentemente incapacitado ou morre.
Baseado em texto de John Renshaw

domingo, 6 de fevereiro de 2011

A PALAVRA GUARANI


Os pajés guarani dizem que o ser humano é, em sua origem, uma palavra sonhada. Quando chega a hora de dar a luz, o Verdadeiro Pai e a Verdadeira Mãe das palavras-alma dizem pra a que está por nascer: “Vá à terra. Eu farei que minha palavra circule por teus ossos e que tu lembres de mim no teu ser erguido”. Por um lado, esta palavra fundamenta a convicção guarani de que os seres humanos se constituem de uma porção divina e divinizadora, que mantém o ser humano na posição vertical. Ela é representada no nome ITUPARERA. Por outro lado, essa palavra integra os humanos ao cosmos e marca neles a sua condição de seres dependentes, representado no seu nome “selvagem”, nome do mato, HERAKA’AGUY. É digno de nota que a palavra não é recebida pronta, completa. Ela é um impulso inicial que deve ser desenvolvido ao longo da vida, por meio da dedicação e do esforço pessoais.

Mas esta tarefa de desenvolver a palavra divina em si e desenvolver-se nela coexiste com a tendência de descuido com a palavra divina. Então, o ser humano se divide, fica encurvado. Sobrevêm confusão, enfermidade, tristeza, inimizade, etc. Bifurca-se a palavra. De modo que a vida é marcada pela inestabilidade. De um lado, o otimismo de erguer-se como alguém por cujos ossos flui a Palavra, de crer poder adquirir-se grandeza de coração (PY’A GUASU), de plenificar-se na Palavra (ÑE’E AGYUJE), de alcançar a Palavra sem Mal (ÑE’E MARANE’Y). De outro, o pessimismo decorrente da ignorância, da ira e do ato de ofender.

Assim, na antropologia guarani, a Palavra é, por um lado, um numem, a alma, o próprio tornar-se pessoa. Por outro lado, ela é sua própria língua, o guarani.

A experiência com o português se impõe para muitos indígenas no âmbito da palavra lida e escrita. O Guarani domina no âmbito do falar e do escutar. Dos intelectuais da ciência guarani experimenta-se esse falar e escutar a palavra como ÑE’EENDU, enquanto que o ver a palavra como ÑE’EECHA, que, por sua vez, originam duas formas distintas de perceber, desenvolver e administrar a palavra. De modo que podem distinguir-se dois tipos de lideranças no âmbito da palavra. As OHENDUVA são as que alcançaram sua ciência por intermédio de outras pessoas (reconhecidas colmo ÑE’ENGATU: de boa palavra), seja ouvindo delas cantos, rezas, histórias ou mesmo as experiências do povo. As OHECHAVA são aquelas lideranças que fizeram uma experiência direta com a Palavra, contemplando-a num ato místico ou sendo inspiradas por ela, em sonhos.

Segundo a liderança intelectual guarani, é a maior ou menor predisposição e esforço para “ouvir” e “ver” a que permite à pessoa desenvolver-se na Palavra, que no fundo é desenvolver-se como pessoa. Via de regra, embora haja uma preferência teórica pelo “ver” como caminho para alcançar a Palavra e a maturidade, são raras as pessoas que se “esforçam” por alcançar “belas e boas palavras” por essa via. A maioria situa essa forma de conhecer no passado. Entende que esse caminho não é mais acessível, seja porque o meio ambiente – tão diferente do tradicional – o dificulta, seja porque os costumes adquiridos impedem que as pessoas desenvolvam sensibilidade para a contemplação.

O interessante é que tanto o “ver” como o “ouvir” convergem no “dizer” e no “dizer-se”. Assim, nas comunidades guarani, ainda que o “ver” pareça ser uma experiência mais individual, a pessoa que vê a Palavra é mais quando a comunica, quando faz do seu “nosso”, OÑOÑE’E. Isto é mais do que apenas “dizer”, um falar a respeito de, da Palavra; é um “dizer-se”, um falar onde quem fala é afetado pela Palavra que fala.

A experiência guarani de “ver” e “ouvir” a Palavra convergem ritualmente no ato de caminhar. Assim, numa das principais cerimônias guarani, homens recitam horas e horas a Palavra ouvida e aprendida de memória, enquanto caminham em círculo, seguindo os passos de um líder. Durante o andar, cada integrante rememora sua história pessoal e comunitária, ativa a memória coletiva, entra nela e mistura as histórias de sua vida com a dos seus antepassados. O guia declara versos de episódios míticos e aproxima o grupo de sua origem, ROGUATAMO ROÑEMBOYPY. O grupo de homens visualiza a terra pequenina. Ela vai crescendo adornada por um mando de neblina. Seres divinos e seres protetores fazem nela morada. Há dificuldades no lugar. Os celebrantes se tentam abrir caminhos no meio delas. Eles cruzam as diversas plataformas superpostas do universo e chegam ritualmente à morada de Nosso Pai e Nossa Mãe – Ñanderu e Ñandecy. Estes os recepcionam e lhes confia a tarefa de cultivar o bom modo de ser, celebrar as festas e proferir boas palavras.

Há nos grupos guarani quem diga que Ñanderu deu a eles a maracá e aos não-indígenas o kuatia jehaira (papel para escrever). Assim teriam ele estabelecido a diferença básica entre esses grupos: o mundo sonoro e musical dos guarani e o mundo da escrita dos não-indígenas.

Baseado em texto de Graciela Chamorro.