terça-feira, 20 de janeiro de 2009

INICIAÇÃO


Iniciação...
Do beiral,
o pombo novo
perscruta o horizonte.

A liberdade assusta
seu dom recente de alar-se.

Helena Kolody

domingo, 18 de janeiro de 2009

DECLARAÇÃO DA BAHIA

CÚPULA DOS PAÍSES DO SUL

Representantes de organizações e movimentos sociais da América Latina e Caribe, reunidos em Salvador, Bahia, dando seqüência aos cinco encontros anteriores, unindo presidentes da América Latina e Caribe, Mercosul, UNASUL, ALADI, Grupo do Rio;
Assumindo o rumo que marcou o resultado da Cúpula dos Povos realizadas em Posadas em 2008; Lima, 2008; Santiago do Chile, 2007; Cochabamba, 2006 e Mar del Plata, 2005;
Reafirmando que homens e mulheres da América Latina e Caribe estamos construindo a integração a partir do povo, avançando na transformação profunda do modelo produtivo atual numa perspectiva soberana, sustentável e justa;
Tendo em vista as transformações que estão acontecendo no cenário mundial com o desencadeamento da crise econômica do sistema capitalista, produzida pelas políticas neoliberais da globalização, que vêm colocando a humanidade numa profunda crise energética, alimentar, climática e social, e que agora se expressam na crise econômica e financeira;
Notando que, sob a liderança do atual governo dos Estados Unidos, pretende-se dividir a região, reeditar a fracassada proposta da ALCA e aprofundar os esquemas do livre comércio, abertura de investimento, endividamento e militarização de diversos países e que a União Europeia visa promover políticas semelhantes em nossa região;
Reconhecendo que alguns governos da região já começaram caminhos alternativos de desenvolvimento e novas formas de organização econômica, mas ainda constatamos a perpetuação das políticas neoliberais que têm levado muitos povos, a nível global, ao aprofundamento da pobreza, da discriminação e o abandono da capacidade dos Estados para promover o desenvolvimento econômico e social,

Declaramos:

Assumir o compromisso de aprofundar a integração dos povos, nesse momento histórico de luta e mobilização da América Latina e Caribe, construindo a soberania popular.
Por isso, consideramos que a saída da crise econômica global deve ter como resposta estratégica a integração soberana dos países da região e a construição de uma nova ordem econômica e financiera internacional, baseda na solidariedade, na justiça e no respeito à natureza, que valorize o trabalho e que incentive o direito ao desenvolvimento sustentavel dos países da América do Sul, que a querem constru fundamentando-se nos valores da solidariedade, na superação do patriarcado e, particularmente, contra o racismo, respeitando a cultura dos povos originais e a diversidade como um valor a ser defendido. Nesse sentido, saudamos e nos solidarizamos com os processos constitucionais em curso na Bolivia e no Equador. Vemos com satisfação que na região se incentiva a autonomia, o fortalecimento do mercado interno, o abandono do dólar como referência no comércio internacional, o fortalecimento de uma capacidade financeira própria e a rejeição dos esquemas ilegítimos de endividamento, como ilustra o caso da auditoria no Equador. Vemos também o fortalecimento da democracia e da autodeterminação, na ingerência nos assuntos de outros Estados e na busca de uma relação respeitosa e fraterna entre as nações.
Verificamos com satisfação que estão surgindo propostas de integração que refletem o sentimento popular de aumentar os laços de solidariedade, a cooperação, os intercâmbios mutuamente benéficos e superar as desigualdades.
Ao mesmo tempo, vemos com preocupação que em grande parte se mantem o modelo neoliberal e o esquema predatório da monocultura, voltado para a exportação dos recursos naturais e baseado na construção de mega-projetos que visam a consolidação deste modelo que produz prejuízos incalculáveis para povos, as mulheres, as comunidades rurais, os recursos hídricos, o meio ambiente e o desenvolvimento social, assim como mantem um modelo energético não-sustentável.
Notamos que a manutenção das políticas de livre comércio são obstáculos para a integração dos povos, a justiça social, a soberania e a democracia, e todos os esforços para retomar as negociações de liberalização na OMC vai contribuir para manter a injusta ordem internacional, contribuindo para aprofundar a crise alimentar e climática, bem como o TLC e o ASPAN que precisam de ser rejeitada para que a integração possa avançar.
Por essas razões, propomos como alternativas para os povos:
1º. Associar o processo de integração à mudança no modelo de produção para garantir a soberania alimentar, que só se pode conseguir com uma reforma agrária que permita planejar e monitorar a produção de alimentos para atender as necessidades do povo, revalorizando sua cultura agroalimentar, por uma nova organização de vida e das relações entre o campo e a cidade. A integração deve incluir, também, a complementariedade das economias e do incentivo à produção sustentável. A biodiversidade e o conhecimento tradicional são patrimônio de nossos povos, por isso exigimos o cumprimento do Convênio 169 da OIT e da Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas. Assegurar que a utilização humana e a preservação das fontes e aquíferos vitais ao abastecimento público está em primeiro lugar na ordem jurídica e administrativa de nossos países, que seja criado um Comitê Latino-Americano e Caribenho para monitorar e abordar as causas e consequências da aquecimento global, e para garantir os povos indígenas originais e tradicionais, respeito nos processos de desenvolvimento e prioridade na aplicação de fundos para reparar as injustiças causadas pelas alterações climáticas.
2º. Garantir a soberania dos países sobre seus recursos naturais e fontes de energia, que não pode ser alcançada em detrimento da soberania alimentar e do meio ambiente, e que permita alcançar o bem-estar dos seus povos. Exortamos os governos da região para encontrar soluções no quadro da justiça e da solidariedade, frente à demanda do povo do Paraguai sobre a renegociação do tratado de Itaipu e Yaciretá.
3º. Assegurar a primazia dos direitos humanos, a vigência e aplicabilidade de direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais, adotando os instrumentos legais para fazê-lo. Exigimos garantia dos direitos dos migrantes e a livre circulação de pessoas e não apenas o fluxo de capital e mercadorias. Exigimos o compromisso dos governos para ratificar as Convenções 97 e 143 da OIT e da Convenção da ONU sobre os Direitos dos Trabalhadores Migrantes e suas famílias.
4º. Considerando que os trabalhadores e trabalhadoras são severamente afetados pela atual crise do capitalismo, com demissões em massa, redução de salários e flexibilização dos direitos, exigimos medidas que protejam os interesses do trabalhador e faça com que os ricos paguem o preço da crise. Defendemos a diminuição da jornada de trabalho sem redução de salários, condicionar a libertação de recursos públicos para empresas em dificuldades à manutenção dos níveis de emprego, ampliar o seguro desemprego, ratificar e implementar a Convenção 158 da OIT, e proibir a demissão em massa.
5º. Denunciar a criminalização das mulheres na sua luta pela autonomia e o direito de decidir sobre seus corpos e suas vidas na luta pela legalização do aborto.
6º. Por entender que o acesso à saúde pública de qualidade é um direito para todos, reivindicamos que os medicamentos e propriedade intelectual não sejam incluídos na agenda da OMC. Esperamos que os países tenham a possibilidade de construir um modelo alternativo de patentes, que sirva a seus povos, e mecanismos de transferência de tecnologia a serviço da soberania popular.
7º. Visto que o atual modelo de capitalismo não é capaz de fornecer terra urbana e habitação em local seguro para os trabalhadores, denunciamos que o financiamento do Banco Mundial e do BID nas cidades atinge o direito das pessoas ao meio ambiente. Temos de democratizar os espaços públicos das cidades, com políticas de saneamento, desportivas e recreativas, bem como redefinição das prioridades de despesa pública orientada para uma política de redistribuição.
8º. É necessário fortalecer a educação como um bem público, social, um direito universal e um dever do Estado. Exigimos a retirada da educação dos acordos da OMC. Reafirmamos a necessidade de cooperação e integração científica e tecnológica, com base nos valores da solidariedade, justiça e soberania.
9º. Exigimos a democratização dos meios de comunicação da América Latina e Caribe.
10º. Advertimos sobre o perigo da IV Frota (imperial) dos Estados Unidos, que ameaça a paz da região; por isso, expressamos nossa mais categórica rejeição à presença do Comando Sul em nosso continente. Nós unimos ao povo haitiano no apelo para o imediato processo de retirada de todas as forças armadas estrangeiras. Ratificamos o pedido do Equador para a retirada definitiva da Base de Manta e sua auditoria, e exigimos que não desloque a base do Equador para o Peru. Denunciamos a crescente criminalização e repressão do protesto social, bem como a implementação da chamada lei anti-terrorismo e advertimos, ao mesmo tempo, uma nova ofensiva dos Estados Unidos para homologar nosso marco jurídico regional com a Lei Patriota norte-americana.
11º. As instituições financeiras multilaterais são as principais responsáveis pela atual crise econômica, climática, alimentar e energética Os povos precisam de outras instituições; só sua reforma significará o aprofundamento da crise e resultar em uma nova etapa de endividamento ilegítimo de nossos países. Exigimos dos governos da América Latina e do Caribe que retirem essas instituições, incluindo o CIADI; uma simples reforma do sistema de poder de decisão não irá superar a sua lógica. As dívidas ilegítimas que se reclamaram de nossos países já foram pagas várias vezes, e representam um mecanismo de dominação. Exigimos o reconhecimento do direito de não-pagamento e o compromisso dos governos de priorizar os direitos dos povos e da natureza sobre o pagamento de uma dívida ilegítima. Solidarizamo-nos com o governo equatoriano pela decisão do não-pagamento da dívida, respaldado pelo processo de auditoria, e com a intenção de iniciar novos processos no Paraguai, Bolívia, Venezuela e da criação da CPI da dívida no Brasil. Conclamamos aos demais governos da região e do mundo para apoiar a ação soberana do governo do Equador, a emprender iniciativas similares e avançar na criação de novas instituições como o Banco del Sur, que pode contribuir para a construção de uma nova arquitetura financeira regional e global.
12º. Exigimos que os governos reconheçam a dívida ecológica e que destinem recursos para a necessária reparação ambiental.
13º. Reforçar e fornecer ferramentas eficazes e equitativas para os processos de integração em curso, buscando sua convergência e superar as deficiências, especialmente no que se refere a dotá-los de uma institucionalidade operacional, garantias da superação das assimetrias, resolução de conflitos através do diálogo e tendo em vista o permanente benefício da população.
14º. Exigimos a total reintegração de Cuba à comunidade latino-americana e caribenha e a eliminação do bloqueio à ilha, e liberdade para os cinco patriotas cubanos presos injustamente em cárceres dos EUA.
15º. Exigimos liberdade e o fim da perseguição das feministas nicaragüense presas po defender os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.
16º. Exigimos o fim da criminalização dos movimentos sociais em nossa região.
Convocamos os povos da América Latina e do Caribe à mobilização para avançar na integração regional e a preservação das conquistas realizadas e da democracia, construindo alternativas de mudanças sociais que nos permitam a realização de uma sociedade mais justa, equitativa e soberana.

Salvador, Bahia, Brasil
14 de Dezembro de 2008

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

NANAZCA


Exatamente à hora onde, nos trópicos, o dia declina bruscamente, numa tarde pré-colombiana, Nanazca, um velho sacerdote da magnífica cidade sagrada de Kawachi, sobe lentamente a rampa de acesso que o conduz ao topo chato de uma pequena pirâmide construída no deserto, com blocos de areia compactada. Em breves instantes, lá longe, o Sol embarcará na jangada da noite, rebocada por peixes mitológicos, que o conduzirão ao seio das águas calmas de Ni, o Grande Mar do Sul.

Coberto com um longa capa de algodão branco, suntuosamente revestida com plumas cintilantes de colibris, Nanazca observa atentamente o pôr-do-sol. O grande sacerdote pertence à nobre linhagem dos Cabeças Longas, que vivem nos pampas, encerados entre a montanha andina e o Pacífico, há pelo menos 5.000 anos. Seus cabelos negros e lisos emolduram um rosto bronzeado, tatuado com símbolos sagrados. O perfil é curioso, marcado ao longo das faces, com o oma, o turbante cruzado sobre sua testa. Graças a este símbolo de união divina entre a terra dos homens e o céu dos deuses, Nanazca pode se comunicar intimamente com eles. Usa também, pinçando a membrana nasal, o ornamento sagrado em forma de falsos bigodes felinos, de ouro cinzelado. E o canto de seus olhos acha-se pintado por um glifo em asa de falcão.

Do alto da pirâmide, Nanazca espreita a queda quase vertical do Sol sobre o horizonte. Se ele foi correto no imponderável cálculo do tempo, este dia será o mais curto do ano e o sol desaparecerá precisamente na extremidade de uma linha muito longa e larga de pedras oxidadas, que os sacerdotes alinham em direção a Ni, sobre suas indicações... Como que seguro ali por uma mão invisível de gigante, o Sol se põe pontualmente, de um só golpe, na extremidade do alinhamento!

Quase imediatamente, os olhos das divindades celestes iluminam-se e brilham sobre o cenário violeta da noite austral. Evadindo-se de sua morada enregelada das altas Cordilheiras, Si, a Lua, ilumina a imensidão triste dos pampas. Em uníssono, a alegria ilumina as feições do velho. Da mesma forma que o sol seguiu o caminho de pedras tramadas que parecia direcioná-lo ao seu repouso noturno, à hora prevista, a lua vaga acima do grandioso planalto desértico. Surge exatamente onde se acha a ponta afilada do grande Triângulo de Si, desenhado por Nanazca.

O teatro animado do céu fascina o homem, que preside o destino dos altivos Nazcas. Com voz extasiada, ele fala a cada estrela, saúda os planetas, dialoga com o fascinante Cruzeiro do Sul. Ele não se iludiu. Os segredos do cosmos lhe pertencem! Amanhã e no futuro, tanto quanto viver o povo das areias, outras linhas, outros signos marcarão sobre o solo, em dimensões cósmicas, os movimentos perpétuos e a marcha inalterável dos astros, que orquestrarão o bem-estar e a vida quotidiana dos seus.

A bordo de um pequeno avião da “Faucett Line”, mais exatamente a 22 de junho de 1939, por uma feliz coincidência, o astrônomo americano Paul Kosok, especialista em paleo-irrigação, sobrevoa os mesmos locais onde, vinte ou trinta séculos antes, o Ancião dos Nazcas meditava, planificando a noite das eras pré-incas.

O Prof. Kosok foi em missão ao Peru, através da Univesidade de Long Island, para estudar as famosas obras hidráulicas dos antigos peruanos. Todavia, seria outra coisa que ele descobriria. Não acreditando em seus olhos, ele distingue em “um dos desertos mais secos do mundo”, a monumental criptografia dos Nazcas.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

INKARI e QOYARI

Durante a época em que o Sol não existia, vivia um povo na terra cujo poder era tão grande que podia fazer as pedras caminharem ou converter montanhas em pradarias com um simples despacho de sua lança. A Lua irradiava seu mundo-sombrio, iluminando debilmente as atividades dessas pessoas, conhecidas como NYAUWPA MACHU – os Anciães.

Certo dia Roal, o Grande Espírito e chefe dos Apus (Espírito das Montanhas), perguntou aos Nyauwpa Machu se gostariam que ele lhes legasse parte de seu poder. Cheios de arrogância, eles responderam que já tinham poder e não precisavam de mais. Irritado com a resposta, Roal criou o Sol e ordenou que brilhasse no mundo. Terrificados e quase cegos pelo brilho do Sol, os Nyauwpa Machu buscaram refúgio em pequenas casas; a maioria das quais tinha suas portas voltadas para ao nascente. O calor do sol os desidratou, fazendo com que seus músculos aos poucos se tornassem nada mais do que carne seca, presa aos ossos. No entanto, eles não morreram e, então, viraram os SOQ’AS (espíritos perigosos), que saem de tarde, durante o anoitecer, ou na noite de lua nova.

A terra ficou inativa e os Espíritos das Montanhas – os Apus – decidiram forjar novos seres. Eles criaram INKARI e QOYARI, homem e mulher com pleno conhecimento. Eles deram a Inkari um bastão de ouro e a Qoyari uma varinha, como símbolos de poder e zelo. Inkari recebeu a ordem de fundar uma cidade no local onde seu bastão de ouro cravasse na terra, em pé. Ele tentou o primeiro arremesso, mas o bastão apenas caiu no chão. Na segunda tentativa, o bastão entrou na terra em um ângulo oblíquo, entre montanhas negras e as margens de um rio. Apesar de o bastão ter caído em perpendicular, Inkari decidiu fundar a cidade ali mesmo, chamada Q’EROS. As condições não eram muito propícias e por isso achou conveniente construir sua capital ali próximo, na mesma região, começando a trabalhar pesado em Tampu. Cansado desse trabalho, Inkari desejou se banhar, mas o frio era muito intenso. Por isso, ele decidiu trazer as águas termais de Upis, construindo ali os banhos que ainda hoje existem.

Inkari construiu sua cidade apesar da orientação diferente dada pelos Apus, o que fez com que esses, para fazê-lo compreender seu erro, permitissem que os Nyauwpa Machu, que observavam Inkari cheios de inveja e rancor, tomassem nova vida. O primeiro desejo dos Nyauwpa Machu foi exterminar o filho dos Espíritos das Montanhas e, para isso, pegaram gigantescos blocos de pedras e os fizeram rolar pela encosta na direção onde Inkari estava trabalhando. Amedrontado, Inkari fugiu para a direção do lago Titicaca, onde a tranqüilidade do local permitiu que meditasse. Ele voltou uma vez mais em direção ao Rio Willkañust’a. Divertiu-se, primeiro, nos picos de La Raya e de lá lançou seu bastão de ouro pela terceira vez... e este caiu direto em um fértil vale. Ali ele fundou a cidade de CUZCO, onde viveu por muito tempo. Q’eros não podia ficar esquecida, e por isso Inkari mandou seu primogênito ir lá para povoar a cidade. Seus outros descendentes foram mandados para vários locais onde fizeram surgir as linhagens reais dos incas.

Tendo completado seu trabalho, Inkari decidiu partir novamente na companhia de Qoyari, para ensinar seu conhecimento ao povo. Passando novamente por Q’erro, ele desapareceu na floresta, mas não sem antes deixar a pista de suas pegadas, que ainda podem ser vistas nas ruínas de Mujurumi e Inkap Yupin, até o dia em que o inca retornar.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

O PRINCIPEZINHO

Estava o principezinho sentado, com as mãos e a cabeça sobre os joelhos... e dormia. A seu lado, brinquedos esperavam: boneca de plumas, o lhama, a bolsa contendo pequeninas coisas. O sono era tão mineral que o principezinho se deixou carregar por dois estranhos e se naquela postura estava, naquela postura ficou. Desceram-no e depositaram-no com seus objetos ao pé da escarpa.
 
Pessoas experimentadas interferiram que ele se perdera na montanha e adormecera com fome. Outros deslumbraram no rosto semi-descoberto uma expressão de medo, como a de menino que presenciasse um bombardeiro aéreo. E sua atitude seria de quem se protege contra perigo eminente.

 
Mas observando bem, sentia-se a paz daquele sono... Que nem a picareta dos homens batendo na rocha viera a perturbar. Aquele sono que envolvia todo o menino em peculiar camada de silêncio, e o tornava indiferente ao desconforto da posição e ao frio da altura.

 
Sua condição de príncipe ressaltava das veste e adornos, que eram nobres. E se confirmava no lavor de ouro dos brinquedos. Cingia-lhe o pescoço um colar de pérolas. A boneca, tinha o ombro transpassado por um grande alfinete de prata.

 
Alçaram de novo o principezinho e levaram-no para a cidade grande, onde é hoje objeto de pasmo geral. Continua dormindo. Todo barulho da Terra não faria essa criança acordar. Dorme há 500 anos. Desde o dia que os pais a colocaram a uma altura de 5.000 metros, protegendo-lhe o sono com amuletos. É um príncipe da nação dos Incas.

 
Que maravilhoso acaso foi esse, de gente rústica, há trinta anos a procura de um tesouro, deparar com seu pequeno túmulo congelado. O gelo conservara, pois, por sua simples virtude, no alto de um pico chileno, a criança nascida quando não existiam nem Pizarro, nem Chile, nem Brasil, nem América...

 
Foi-se o glorioso império dos incas com sua pompa, e nos deixou apenas formas artísticas, modeladas por arquitetos, escultores, joalheiros e tecelões. Mas o menininho, acocorado e dormindo o mesmo sono iniciado há 5 séculos, ai está agora a cativar-nos com seu mistério.

Envelhecemos depressa... No tempo de uma criança dormindo, o império espanhol na América se inaugura e se faz escombro... e o português também. Ela ainda não acordou e já nasceram e morrem Camões, Cervantes, Shakespeare, Hassine, São Vicente de Paula, Newton.. E vem os direitos dos homens, e surgem teorias novas e novas guerras.

 
Em seu sono infinito, o menino passou pelos homens e suas obras, por instituições, idéias, sonhos, vidas e mortes, sempre dormindo em postura humilde, cercado de ídolos, cachos de cabelos, dentes de leite. Nada mudou para ele. O mundo é, talvez, um sonhar acordado.

Dorme menininho... dorme...



Carlos Drummond de Andrade