segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

ÑE'E PORÃ TENONDE

As palavras em guarani não se acrescenta nenhuma marca específica para designar o plural - como nosso "s" habitual. O plural é inferido pelo sentido da frase.

É pertinente assinalar também que, em guarani, um único termo pode ser verbo, substantivo ou adjetivo, dependendo do modo como é utilizado na frase. Um único termo transmite uma ação, converte-se em qualificativo ou significante de um objeto.

Outro traço marcante do idioma guarani é a ausência de conjugaçaões que especifiquem os tempos dos verbos. O sentido passado ou futuro está embutido no sentido da frase, já que a ação sempre se diz no presente:
todo o domínio semântico guarani comprova sua extrema riqueza; seu linguajar não tem declinações passadas ou futuras. Todo o falar guarani é no presente: a ação reflete a realidade eterna do ser. O tempo presente é a única expressão plausível da realidade que é captada na sua espontaneidade imediata, a emanar aos borbotões, qual córregos cantarolantes, refrescando as matas.

O ritmo do linguajar guarani possui uma toada típica, uma cadência comparável ao ir e vir das ondas, repetindo, às vezes, alguma palavra ou nome para melhor ressaltá-lo no contexto da frase. Semelhante aos poetas, o guarani serve-se das formas para atingir o imperceptível, ascendendo pelas tramas impalpáveis dos espíritos silenciosos imanentes na mata, onde impera a ação do invisível. E no seu mundo mágico, o espírito age por duas vias: uma direta, a do sopro, a via intangível do além; outra indireta, a da forma, a via da concretude terrestre. Sopro e forma interagem em estreita união. E o Ñanderu é quem melhor conhece o poder reparador do espírito entrelaçado nas malhas da música-silêncio da natureza.

As Ñe'e Porã Tenonde - as "Primeiras Belas Palavras-Almas - são divulgadas apenas entre os membros da tribo, ou entre os que gozam de sua total confiança.

Ñe'e é a voz humana, sua eloquência e seu dizer, reflexo e eco imediato da alma a ressoar nos Cantos Sagrados que permeiam a humanidade da mata. Este vocábulo designa a fala da alma, como sinônimos e expressão única, natural do ser humano que a pronuncia, pois ALMA e FALA provêm da mesma origem divina: Nossa palavra é a manifestação da nossa alma, que não morre.

Porã significa, simultaneamente, o belo e o querido. Pois na linguagem guarani, toda ela poesia, o carinho é inextricavelmente entrelaçado à beleza.

Ñe'e Porã seria, então, tentando traduzir à fala tão mais rude a que estamos acostumados, a Palavra-Alma envolta em Beleza-Ternura. Sobre essa Alma-da-Fala a eclodir a carícia-da-sua-beleza, se enraíza o sagrado na tradição guarani. O germe das suas palavras remonta ao tempo das origens, à percepção das vozes da naturezas, ao eco perene do cosmos.

Ñe'e Porã Tenonde - as Primeiras Palavras Formosas - contêm os ensinamentos secretos das matas do sul, relatam os seus mitos arcaicos numa linguagem sagrada bem diversa da que vigora no seu falar profano. Eis o esplendoroso caudal de sabedoria que o selvícola entesoura em sua alma! Pela sua admirável poesia, envolveu em perplexidade os jesuítas que a conheceram mais de perto. As poucas frases que, no decorrer dos séculos, passaram a espessa barreira na qual ocultam o seu saber, constituíram o assombro dos raríssimos eruditos que vivenciaram essa ínfiima parcela da cosmogonia guarani.

Avañe'e, o dizer da alma humana, o guarani o "recebe" em sonho, ou em algum momento de rara inspiração. Além das preces e cantos tradicionais, comuns às diversas etnias espalhadas pelos bosques, cada ser tem o seu próprio cantar, a Fala-da-sua-Alma, veículo capaz de conduzi-lo à esfera dos seus ancentrais divinos.

Os reinos habitados por essas divindades encontram-se numa outra dimensão, e é preciso que o ser humano se eleve para alcançá-la. No universo guarani, a dignidade humana emana do seu cantar. Sem o seu ñe'e porã a mantê-lo erguido, a humanidade não se distinguiria dos animais: a possibilidade de elevar-se é a condição decisiva, pois o elemento sagrado da sua cultura repousa na sua verticalidadse. Sua força reside no poder de sua Fala e toda a poesia penetra pelo apyté - o cume da sua cabeça - lá onde se infunde o saber no corpo humano, através do vértice central mais alto. Este é o ponto em que também as palmeiras jorram as suas ramagens.

Sua sabedoria se exprime na meiguice de sua alma-canto, transmitida oralmente de geração em geração, desde épocas imemoriais, a desabrochar cuidadosamente oculta na poesia dos Ñe'e Porã: nosso primeiro sopro nos é legado por nossos ancestrais.

Esta é a cultura visceral do nosso continente.

Para se poeta, basta falar guarani. Muitas das suas palavras são frases, belíssimas metáforas que encerram postulados metafísicos do mais alto teor. A palavra guarani constitui um micro-universo de conceitos que, de tão belos, são quase intraduzíveis em outros idiomas. E seus conteúdos conceptuais eclodem ao ser ela pronunciada. Pois neste fabuloso linguajar, os vocábulos são sentenças concatenadas que vão moldando um inestimável acervo de Beleza-Carícia-Sabedoria. Jóias espirituais ocultas nas matas há milênios.

A não ser nos seu circulo mais íntimo ou durante os rituais, o guarani nunca pronuncia a sua linguagem sagrada.

Nosso Primeiro Pai nos reveste da Palavra Bem-aventurada.

Texto de Iara Miowa, antropóloga

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