sábado, 23 de janeiro de 2010

CIDADES PERDIDAS DA AMAZÔNIA

Quando o Brasil criou o PARQUE INDÍGENA DO XINGU, em 1961, a reserva estava longe da civilização moderna, aninhada bem no limite ao sul da enorme floresta amazônica. As fronteiras do parque ainda ficavam dentro da mata densa, pouco mais que linhas sobre um mapa. Hoje o parque está cercado de retalhos de terras cultivadas, com as fronteiras frequentemente delimitadas por um muro de árvores. Para muitos forasteiros, essa barreira de torres verdes é um portal como os enormes portões do Parque Jurássico, separando o presente – o dinâmico mundo moderno de áreas cultivadas com soja, sistemas de irrigação e enormes caminhões de carga –; do passado – um mundo atemporal da Natureza e de sociedade primitivas.

A Amazônia sempre teve um lugar especial no imaginário ocidental: a mera menção de seu nome já evoca imagens de selva repleta de vegetação respingando água, de vida silvestre misteriosa, colorida e com frequência perigosa, de um entremeado de rios com infinitos meandros e de tribos da Idade da Pedra. Para os ocidentais, os povos da Amazônia são sociedades extremamente simples, pequenas tribos que mal sobrevivem com o que a Natureza lhes oferece. Têm conhecimento complexo sobre o mundo natural, mas lhes faltam os atributos da civilização: o governo centralizado, os agrupamentos urbanos e a produção econômica além da subsistência. Em 1690, John Locke proclamou as famosas palavras: “No início, todo o mundo era a América”. Mais de três séculos depois, a Amazônia ainda arrebata o imaginário popular como a Natureza em sua forma mais pura, e como lar de povos aborígines que, nas palavras de Sean Woods, editor da revista Rolling Stone, preservam “um estilo de vida inalterado desde o primórdio dos tempos”.

A aparência pode ser enganosa. Escondidos sob as copas das árvores da floresta estão os resquícios de uma complexa sociedade pré-colombiana: uma rede de cidades, aldeias e estradas ancestrais que já sustentou uma população talvez 20 vezes maior em tamanho que a atual. Áreas enormes de floresta cobriam os povoados antigos, seus jardins, campos cultivados e pomares que caíram em desuso quando as epidemias trazidas pelos exploradores e colonizadores europeus dizimaram as populações nativas. A rica biodiversidade da região reflete a intervenção humana do passado. Ao desenvolverem uma variedade de técnicas de uso da terra, de enriquecimento do solo e de longos ciclos de rotatividade de culturas, os povos ancestrais proliferaram na Amazônia, apesar de seu solo natural infértil. Suas conquistas poderiam atestar esforços para reconciliar as metas ambientais e de desenvolvimento dessa região e de outras partes da Amazônia.

Em 1894, o livro de Karl von den Steinen, “Unter den Naturvölkern Zentral Brasiliens” (Entre os aborígines do Brasil Central), descreveu os povos amazônicos como pequenos grupos isolados vivendo em delicado equilíbrio com a floresta tropical: “O povo da Natureza”. Mais tarde, frequentemente os antropólogos viram o ambiente florestal, em geral, como não propício à agricultura; a pouca fertilidade do solo parecia excluir os grandes assentamentos ou as densas populações regionais. Por esse motivo, a Amazônia do passado parece ter sido muito semelhante à Amazônia dos tempos atuais.

Essa visão começou a cair na década de 70, na medida em que os acadêmicos revisaram os relatos dos primeiros europeus sobre a região, que falavam não de tribos pequenas, mas de densas populações. Conforme o best seller de Charles Mann 1491 descreve com eloquência, as Américas eram densamente habitadas na véspera do desembarque dos europeus, e a Amazônia não era exceção. Gaspar de Carvajal, o missionário que escreveu as crônicas da primeira expedição espanhola rio abaixo, observou cidades fortificadas, estradas largas com boa manutenção e muitas pessoas. Carvajal escreveu em seu relato de 25 de junho de 1542: “Passamos entre algumas ilhas que pensávamos ser desabitadas, porém ao chegarmos por lá, tão numerosos eram os povoados que vieram à nossa vista... que nos afligiu... e, quando nos viram, saíram para nos encontrar no rio em mais de duas centenas de pirogas [canoas], carregando 20 a 30 índios em cada uma, e algumas até com 40... estavam enfeitados com cores e vários emblemas, e portavam várias cornetas e tambores... e em terra, uma coisa maravilhosa de ver foram as formações de grupos que ficavam nas aldeias, todos tocando instrumentos e dançando em toda parte, manifestando grande alegria ao nos ver passando pelas suas aldeias.”

A pesquisa arqueológica em várias áreas ao longo do rio Amazonas, como a ilha do Marajó na foz do rio e sítios próximos às modernas cidades de Santarém e Manaus, confirma esses relatos. Essas tribos interagiam em sistemas de comércio que se espalhavam até localidades remotas. Sabe-se menos das localidades mais próximas dos limites ao sul da Amazônia, mas um trabalho recente em Llanos de Mojos nas várzeas da Bolívia e no estado do Acre sugere que eles também apresentaram sociedades complexas. Em 1720, o guarda de fronteira Antonio Pires de Campos descreveu uma paisagem densamente habitada na cabeceira do rio Tapajós, pouco a oeste de Xingu: “Esses povos existem em um número tão enorme que não é possível contar seus povoados ou aldeias, [e] muitas vezes em um dia de marcha passa-se por 10 a 12 aldeias, e em cada uma há de 10 a 30 habitações, e dentre essas casas há algumas que medem 30 ou 40 passos de largura... até mesmo suas ruas, que eles fazem bem retas e largas são mantidas tão limpas que não se encontra nenhuma folha caída...”

Além do enorme centro monolítico se erguendo sobre as florestas tropicais, resquícios de algo mais elaborado que as aldeias ainda hoje existentes estavam em toda a parte, sugerindo que o estilo de vida organizado e a economia produtiva agrícola e pesqueira poderiam suprir comunidades muito mais substanciais, mil a 2 mil vezes maiores – várias vezes a população contemporânea de algumas centenas. Há evidências de que, na realidade, a área já teve um sítio pré-histórico (designado X11 em nossa pesquisa arqueológica) cercado de imensos fossos. Os irmãos Villas Boas – indianistas brasileiros indicados para o Prêmio Nobel da Paz pela sua participação na criação do Parque do Xingu – já tinham relatado esses trabalhos no solo perto de muitas aldeias.

O sítio X6, próximo ao rio Angahuku, é conhecido pelos Cuicuro como Nokugu – nome do espírito de onça que se pensa lá habitar. O fosso que envolve a antiga cidade, corre por mais de 2 km, com 2 a 3 metros de profundidade e mais de 10 metros de largura. Seguindo os contornos do fosso chega-se a uma ponte de terra, por onde passava uma antiga estrada de terra, totalmente reta, com largura de 10 a 20 metros de largura, que levava para outro sítio antigo, Heulugihïtï (X13), a cerca de 5 km de distância. Na direção da cidade, a estrada, margeada por meios-fios baixos de terra, abriu-se até 40 metros – largura das autoestradas modernas de quatro pistas. Percorridas algumas centenas de metros, chega-se ao fosso interno ladeada por uma base em forma de funil, para uma paliçada de tronco de árvore. Após alguns metros mais de trechos de floresta, arbustos e áreas desmatadas que agora cobrem o sítio, marcas de atividades variadas no passado, chega-se a uma clareira gramada margeada por enormes palmeiras que assinalam uma antiga praça, com a borda perfeitamente circular marcada por uma elevação de um metro de altura. Nas redondezas dessa praça, encontramos altos sambaquis (depósitos de restos), repletos de recipientes quebrados, utilizados para processar e cozinhar a mandioca. Em uma visita posterior, quando escavávamos uma casa pré-colombiana, o chefe curvou-se dentro da área central da cozinha e retirou um enorme fragmento de cerâmica.


As aldeias antigas são distribuídas pela região e interconectadas por uma rede de estradas alinhadas com precisão. No início de 2002, quando se começou a usar o GPS, descobriu-se um grau impressionante de integração regional: o planejamento parece determinado, com um lugar específico para tudo. No entanto, fundamentava-se nos mesmos princípios básicos das aldeias atuais: as estradas principais correm do leste para o oeste, as secundárias se irradiam para fora do norte e do sul e as menores proliferam em outras direções.

Os agrupamentos de povoados e aldeias também sequem uma estrutura padrão: um centro principal cerimonial e várias aldeias satélites grandes em posições precisas em relação ao centro. Essas cidades provavelmente tinham mil ou mais habitantes. As aldeias menores estavam localizadas mais longe do centro.

Nos dias de hoje, a maior parte da paisagem antiga está coberta por vegetação, mas a floresta nas áreas centrais tem uma concentração distinta de certas plantas, animais, solos e objetos arqueológicos, como muita cerâmica. O uso do solo foi mais intenso no passado, mas os vestígios sugerem que muitas práticas antigas eram semelhantes às dos Cuicuro: pequenas áreas de plantio de mandioca, pomares com árvores de pequi e campos de sapé – o material preferido para coberturas de choupanas. O campo era uma paisagem de retalhos, intercalada por áreas de floresta secundária que invadiram as áreas agrícolas não cultivadas. Zonas úmidas, agora infestadas de buritis, a mais importante cultura industrial, preservam diversas evidências de piscicultura, como lagos artificiais, calçadas elevadas e fundações de açudes. Fora das áreas centrais, existia um cinturão verde menos povoado e até uma densa faixa florestal entre as diversas aldeias. A floresta também tinha seu valor como fonte de animais, plantas medicinais e de certas árvores, além de ser considerada a morada de vários espíritos da floresta.

As áreas dentro e ao redor de sítios residenciais estão marcadas por terra escura (egepe segundo os Cuicuro), um solo extremamente fértil, enriquecido por lixo domiciliar e atividades especializadas de manejo de solo, como queimadas controladas da cobertura vegetal. Na Amazônia, essas mudanças do solo foi alterado (tornando mais escuro, mais argiloso e rico em certos minerais) foram especialmente importantes para a agricultura de muitas áreas, já que o solo natural é bem pobre. No Xingu, a terra escura é menos abundante em certas áreas, já que a população nativa depende principalmente do cultivo da mandioca e dos pomares, que não necessitam de solo muito fértil.

A identificação de grandes núcleos populacionais murados, espalhados numa área comparável à de Sergipe, sugere que havia, no mínimo, 15 agrupamentos espalhados pelo Alto Xingu. Entretanto, como a maior parte da região não foi estudada, a quantidade correta pode ter sido muito superior. A datação por radiocarbono dos sítios já escavados sugere que os ancestrais dos xinguanos chegaram à região, vindos do oeste, e começaram a modificar as florestas e a zona úmida a seu critério cerca de 1.500 anos atrás ou até antes disso. Nos séculos que antecederam a ocupação da América pelos europeus, os sítios foram reformados, passando a compor uma estrutura hierárquica. Os registros existentes chegam apenas até 1884, portanto os padrões de povoação acabam sendo a única forma de estimar a população pré-colombiana; a escala dos povoamentos sugere uma população muito superior à atual, chegando de 30 a 50 mil indivíduos.

Há um século, o livro Garden cities of tomorrow (Cidades-jardins do futuro), de Ebenezer Howard, propôs um modelo para um crescimento urbano sustentável de baixa densidade populacional. Um precursor do movimento ecológico atual, Howard idealizou cidades interligadas como uma alternativa para um mundo industrial, repleto de cidades com arranha-céus. Sugeria dez cidades com dezenas de milhares de habitantes, que teriam a mesma capacidade funcional e administrativa que uma só megacidade. Os antigos xinguanos parecem ter construído esse sistema: um tipo de urbanismo de estilo verde ou protourbanismo – uma incipiente cidade-jardim.



Baseado em texto de Michael J. Heckenberger

Um comentário:

  1. Comunico que localizei em Rondônia-Brasil
    Geoglifos com temática Pre-inca

    ajude a Divulgar para proteger
    Detalhes no meu Blog

    http://eldorado-paititi.blogspot.com/

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