Há pelo
menos 11 mil anos – data bem antiga para a América do Sul – a Amazônia
brasileira passou a ter ocupação humana. Ao longo dos milênios, os primitivos
habitantes adquiriram um conhecimento profundo daquele ambiente inóspito e
selvagem; e diversas culturas, ricas e originais, foram despontando na
floresta.
Foi na
Amazônia, mais especificamente na região de Santarém, no Pará, que surgiu, há 8
mil anos, a mais antiga cerâmica do continente, também das mais antigas do
mundo. Foi também na Amazônia que se compôs, na mesma região, um dos mais
antigos e belos painéis da arte rupestre americana. Foi na Amazônia que uma
grande variedade de plantas foi domesticada – entre as quais, a mandioca, cuja
manipulação vem de uns 4 mil anos. E foi na Amazônia que emergiram, no início da
Era Cristã, a legendária civilização Marajoara e sua típica cerâmica
policromática.
Há
muitos indícios de que os povos da floresta influenciaram profundamente a vida
de outras populações ameríndias, estendendo sua penetração intelectual até os
Andes, antes que surgissem as “evoluídas” civilizações andinas.
Numa
época ainda muito difícil de identificar, por razões ainda também ignoradas, um
desses povos abandonou sua região nativa para iniciar um dos maiores processos
migratórios das Américas. Falo dos tupi-guarani.
Os
antepassados dos povos que falariam línguas tupi-guarani viviam provavelmente
em torno do alto rio Madeira, em Rondônia – porque é lá que se concentra o
maior número de idiomas geneticamente ligados à família tupi-guarani.
Embora
as pesquisas arqueológicas sejam ainda incipientes, não é difícil imaginar que
tomaram o sentido norte-sul, em direção às bacias do Paraguai e do Paraná,
alcançando mais tarde o litoral sul do Brasil, para voltar a se expandir no
sentido sul-norte, até o Ceará – sempre fugindo do cerrado e preferindo as
matas mais fechadas.
Esta é,
evidentemente, apenas uma das hipóteses. O que se sabe é que os estilos
cerâmicos atribuídos aos tupi-guarani estão bem documentados no sul do Brasil e
no Rio de Janeiro desde pelo menos o segundo século da nossa Era. E que foram os
Tupi (subgrupo dos tupi-guarani) importantes difusores do cultivo da mandioca.
Talvez
não seja coincidência que a cerâmica tupi-guarani seja policromática, como a
marajoara; e que se localize precisamente na bacia do rio Madeira a região onde
a mandioca foi domesticada pela primeira vez.
Nos
tempos históricos, vamos encontrar os Guarani distribuídos desde o Rio Grande do
Sul até São Paulo; e os tupi, de São Paulo ao Ceará; e depois no Maranhão. As
tribos tupi – entre as quais os Tupinambá – plantavam mandioca e dela extraíam a
farinha, sua fonte fundamental de carboidratos. Fabricavam cerâmica
policromática. Conheciam de memória o mapa completo do céu visível e sabiam
medir o tempo e prever fenômenos naturais através das estrelas. Eram grandes
canoeiros, capazes de formar uma armada de até duzentas canoas, com vinte
guerreiros em cada uma. Eram mestres da arte plumária. Tinham uma organização
social praticamente anárquica, pois seus “comandantes” não tinham poder de
instituir leis, não tinham poder de julgar, não tinham poder de mandar – eram
apenas respeitados, admirados, seguidos como exemplo, porque tinham mulheres e
prestígio, que obtinham em função do talento individual.
As
tribos Tupi se dividiam em aliadas e inimigas. Faziam guerras constantes,
anuais. Os vencedores não tomavam o território dos vencidos, não cobravam
tributos, não faziam escravos, não saqueavam riquezas, não buscavam obter
nenhuma vantagem econômica. Capturavam inimigos apenas para matar e comer.
Os Tamoio,
como eram conhecidos os tupinambá da banda ocidental da baía de Guanabara (mas
que povoavam um vasto litoral, de Cabo Frio até Angra dos Reis), eram inimigos
irreconciliáveis dos temiminó, que viviam na região de Niterói e no interior do
atual Estado do Rio; dos Maracajá, habitantes da Ilha do Governador; e dos Tupiniquim,
senhores do litoral e de vastas zonas do interior de São Paulo.
Esses
índios também combatiam tribos Tapuia – inimigos que não pertenciam às etnias
tupi-guarani e falavam línguas que alguns especialistas arriscam filiar ao
tronco macro-jê: como os Goitacá, da foz do rio Paraíba do Sul; e os Aimoré,
que viviam entre o norte do Espírito Santo e o sul da Bahia.
Os Tamoio
– certamente antes da chegada de Tomé de Sousa, em 1549 – haviam feito uma
aliança com os franceses, que tentavam estabelecer uma colônia no Brasil, a
França Antártica. Por isso, se tornaram inimigos mortais dos portugueses, aliados
dos Tupiniquim e Temiminó.
As duas
cidades do Rio de Janeiro – tanto a extinta, nascida na Urca em 1º de março de
1565, quanto a atual, plantada no saudoso morro do Castelo em 20 de janeiro de
1567 – só foram fundadas por causa da aliança entre tamoios e franceses – alicerce
militar da malograda França Antártica.
Muito se
escreveu sobre o extermínio dos índios brasileiros. A idéia imediata é a de que
os portugueses promoveram um imenso genocídio. Isso é apenas parcialmente
verdadeiro, pelo menos no que tange ao século 16 e à extinção dos Tupinambá.
É
verdade que os Tupinambá foram definitivamente derrotados na batalha de
Uruçumirim (atual praia do Flamengo); é verdade que a grande maioria se
embrenhou pelos sertões (por isso crêem alguns que os Tupinambá do Maranhão
eram originariamente “cariocas”); é verdade que grande número de tamoios, particularmente
de tamoias, foi escravizado pelos portugueses (e uma referência a isso aparece,
por exemplo, nas Memórias da rua do Ouvidor, de Joaquim Manuel de
Macedo); só não é verdade que essa guerra foi perdida para os colonizadores.
Embora
houvesse interesse e participação dos europeus, as guerras do século 16 foram
essencialmente de índios contra índios. Os Tamoio foram derrotados pelos Temiminó.
Por isso ergueram em Niterói uma estátua de Araribóia, herói da resistência aos
franceses. Por isso nunca o Rio de Janeiro homenageou Cunhambebe, Aimberê ou
Pindobuçu – considerados, injustamente, traidores da pátria.
Mas o que
matou os Tupi não foram as guerras – e sim as epidemias de gripe e varíola,
contra as quais os indígenas não estavam biologicamente preparados, não
possuíam resistências orgânicas capazes de combatê-las. Essa foi a razão
principal da extinção de índios, no século 16. Se não me engano, Anchieta chega
a mencionar uma baixa de 60 mil indivíduos, num único surto desses. Nenhuma
guerra indígena matava 10% desse contingente.
Fica,
assim, uma estranha sensação: a de que nós, brasileiros, não temos nada a ver
com os Tamoio, nem com os Tupiniquim, nem com os Temiminó, Caeté ou Potiguara;
e muito menos com os Tapuia – Goitacá, Puri, Aimoré, Pataxó, Tremembé, Charrua,
Mongoió, Tarairiú, Cariri, Carajá, Guaicuru, Jaicó, e muitos outros.
É uma ilusão.
Porque as fontes históricas são pródigas, explícitas e enfáticas em demonstrar
que houve uma intensa miscigenação entre homens portugueses e mulheres índias –
relação que, em geral, envolvia alguma forma de violência. Aliás, Caramuru e
Paraguaçu – casal mítico de quem descendem quase todos os baianos e, em consequência,
quase todos os brasileiros – são o símbolo por excelência desse Brasil mestiço,
a quem pouco depois se somariam os africanos.
Mas
esses fatos não são apenas mitológicos. Estudos genéticos muito recentes,
comandados por Sérgio Danilo Pena, demonstraram que cerca de 33% dos
brasileiros autodenominados “brancos” descendem diretamente de uma antepassada indígena,
por linha materna. Entre os classificáveis como “negros”, esse percentual é de
12%.
Dados os
percentuais médios de “brancos” e “negros” na população brasileira, pode-se
afirmar que não menos de um quinto, ou 20%, dos brasileiros possui antepassados
indígenas.
Esses
números, aparentemente óbvios, são uma ilusão. Vou tentar explicar por quê.
Toda
mulher deixa nas células de seus filhos uma certa marca genética, idêntica à
que sua mãe deixou nela, marca essa que será retransmitida aos netos, através e
unicamente de suas filhas.
Os pais
não deixam essa marca nos filhos, mas têm neles as marcas de suas respectivas
mães.
Ora,
pelo menos 20% dos brasileiros têm linhagens maternas indígenas. Mas isso não
quer dizer que apenas 20% descendam de
índios.
Porque,
se o pai de um indivíduo descender de índios, seus filhos também descenderão,
embora não necessariamente possuam a marca genética específica que identifica
isso, que só se herda da mãe.
Assim,
estatisticamente, considerados pai e mãe, 36% dos brasileiros descendem de
índios, mesmo que parte desse grupo não possua a referida marca genética, por
descender de indígenas apenas por via paterna.
Mas esse
número também é falso. Porque cada indivíduo tem, necessariamente, além de pai
e mãe, quatro avós. Se, como eu disse, a probabilidade de alguém ter marca
genética que indique linhagem materna indígena é de 20%, considerados os quatro
avós – se forem brasileiros –, são 59% os que descendem de índios.
No mesmo
passo, considerados os bisavós, o percentual de descendentes indígenas atinge
cerca de 83%.
Mesmo
com todas as aproximações que os especialistas saberão que fiz, não são
necessárias mais contas para que se possa afirmar que, no Brasil, a
probabilidade de alguém ser descendente de índios é muito alta, talvez muito
próxima de 100% – já que o processo miscigenatório que deu origem ao fenômeno começou
no século 16, bem antes da geração dos nossos bisavós.
Ou seja,
no
Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é – para concluir, roubando
a frase clássica de Eduardo Viveiros de Castro.
É
evidente que, dada a antiguidade e a intensidade dos contatos, os Tupinambá
entraram de forma maciça nesse processo. Logo, não estão extintos. O que se
extinguiu foi a cultura tupinambá, tal como existia no século 16. Do ponto de
vista biológico, tanto os tupinambá como outras centenas de etnias indígenas sobrevivem
nos brasileiros modernos, seus descendentes imediatos.
Não sei
o que ainda é necessário fazer para que as pessoas compreendam isso – que não
estamos aqui faz apenas cinco séculos, mas há uns 15 mil anos.
Há 15
mil anos somos brasileiros; e não sabemos nada do Brasil.
Texto de
Alberto Mussa
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