sábado, 7 de abril de 2012

NO RASTRO DOS TUPINAMBÁ


 
Há pelo menos 11 mil anos – data bem antiga para a América do Sul – a Amazônia brasileira passou a ter ocupação humana. Ao longo dos milênios, os primitivos habitantes adquiriram um conhecimento profundo daquele ambiente inóspito e selvagem; e diversas culturas, ricas e originais, foram despontando na floresta.

Foi na Amazônia, mais especificamente na região de Santarém, no Pará, que surgiu, há 8 mil anos, a mais antiga cerâmica do continente, também das mais antigas do mundo. Foi também na Amazônia que se compôs, na mesma região, um dos mais antigos e belos painéis da arte rupestre americana. Foi na Amazônia que uma grande variedade de plantas foi domesticada – entre as quais, a mandioca, cuja manipulação vem de uns 4 mil anos. E foi na Amazônia que emergiram, no início da Era Cristã, a legendária civilização Marajoara e sua típica cerâmica policromática.

Há muitos indícios de que os povos da floresta influenciaram profundamente a vida de outras populações ameríndias, estendendo sua penetração intelectual até os Andes, antes que surgissem as “evoluídas” civilizações andinas.

Numa época ainda muito difícil de identificar, por razões ainda também ignoradas, um desses povos abandonou sua região nativa para iniciar um dos maiores processos migratórios das Américas. Falo dos tupi-guarani.

Os antepassados dos povos que falariam línguas tupi-guarani viviam provavelmente em torno do alto rio Madeira, em Rondônia – porque é lá que se concentra o maior número de idiomas geneticamente ligados à família tupi-guarani.

Embora as pesquisas arqueológicas sejam ainda incipientes, não é difícil imaginar que tomaram o sentido norte-sul, em direção às bacias do Paraguai e do Paraná, alcançando mais tarde o litoral sul do Brasil, para voltar a se expandir no sentido sul-norte, até o Ceará – sempre fugindo do cerrado e preferindo as matas mais fechadas.

Esta é, evidentemente, apenas uma das hipóteses. O que se sabe é que os estilos cerâmicos atribuídos aos tupi-guarani estão bem documentados no sul do Brasil e no Rio de Janeiro desde pelo menos o segundo século da nossa Era. E que foram os Tupi (subgrupo dos tupi-guarani) importantes difusores do cultivo da mandioca.

Talvez não seja coincidência que a cerâmica tupi-guarani seja policromática, como a marajoara; e que se localize precisamente na bacia do rio Madeira a região onde a mandioca foi domesticada pela primeira vez.

Nos tempos históricos, vamos encontrar os Guarani distribuídos desde o Rio Grande do Sul até São Paulo; e os tupi, de São Paulo ao Ceará; e depois no Maranhão. As tribos tupi – entre as quais os Tupinambá – plantavam mandioca e dela extraíam a farinha, sua fonte fundamental de carboidratos. Fabricavam cerâmica policromática. Conheciam de memória o mapa completo do céu visível e sabiam medir o tempo e prever fenômenos naturais através das estrelas. Eram grandes canoeiros, capazes de formar uma armada de até duzentas canoas, com vinte guerreiros em cada uma. Eram mestres da arte plumária. Tinham uma organização social praticamente anárquica, pois seus “comandantes” não tinham poder de instituir leis, não tinham poder de julgar, não tinham poder de mandar – eram apenas respeitados, admirados, seguidos como exemplo, porque tinham mulheres e prestígio, que obtinham em função do talento individual.

As tribos Tupi se dividiam em aliadas e inimigas. Faziam guerras constantes, anuais. Os vencedores não tomavam o território dos vencidos, não cobravam tributos, não faziam escravos, não saqueavam riquezas, não buscavam obter nenhuma vantagem econômica. Capturavam inimigos apenas para matar e comer.

Os Tamoio, como eram conhecidos os tupinambá da banda ocidental da baía de Guanabara (mas que povoavam um vasto litoral, de Cabo Frio até Angra dos Reis), eram inimigos irreconciliáveis dos temiminó, que viviam na região de Niterói e no interior do atual Estado do Rio; dos Maracajá, habitantes da Ilha do Governador; e dos Tupiniquim, senhores do litoral e de vastas zonas do interior de São Paulo.


Esses índios também combatiam tribos Tapuia – inimigos que não pertenciam às etnias tupi-guarani e falavam línguas que alguns especialistas arriscam filiar ao tronco macro-jê: como os Goitacá, da foz do rio Paraíba do Sul; e os Aimoré, que viviam entre o norte do Espírito Santo e o sul da Bahia.

Os Tamoio – certamente antes da chegada de Tomé de Sousa, em 1549 – haviam feito uma aliança com os franceses, que tentavam estabelecer uma colônia no Brasil, a França Antártica. Por isso, se tornaram inimigos mortais dos portugueses, aliados dos Tupiniquim e Temiminó.

As duas cidades do Rio de Janeiro – tanto a extinta, nascida na Urca em 1º de março de 1565, quanto a atual, plantada no saudoso morro do Castelo em 20 de janeiro de 1567 – só foram fundadas por causa da aliança entre tamoios e franceses – alicerce militar da malograda França Antártica.

Muito se escreveu sobre o extermínio dos índios brasileiros. A idéia imediata é a de que os portugueses promoveram um imenso genocídio. Isso é apenas parcialmente verdadeiro, pelo menos no que tange ao século 16 e à extinção dos Tupinambá.

É verdade que os Tupinambá foram definitivamente derrotados na batalha de Uruçumirim (atual praia do Flamengo); é verdade que a grande maioria se embrenhou pelos sertões (por isso crêem alguns que os Tupinambá do Maranhão eram originariamente “cariocas”); é verdade que grande número de tamoios, particularmente de tamoias, foi escravizado pelos portugueses (e uma referência a isso aparece, por exemplo, nas Memórias da rua do Ouvidor, de Joaquim Manuel de Macedo); só não é verdade que essa guerra foi perdida para os colonizadores.

Embora houvesse interesse e participação dos europeus, as guerras do século 16 foram essencialmente de índios contra índios. Os Tamoio foram derrotados pelos Temiminó. Por isso ergueram em Niterói uma estátua de Araribóia, herói da resistência aos franceses. Por isso nunca o Rio de Janeiro homenageou Cunhambebe, Aimberê ou Pindobuçu – considerados, injustamente, traidores da pátria.

Mas o que matou os Tupi não foram as guerras – e sim as epidemias de gripe e varíola, contra as quais os indígenas não estavam biologicamente preparados, não possuíam resistências orgânicas capazes de combatê-las. Essa foi a razão principal da extinção de índios, no século 16. Se não me engano, Anchieta chega a mencionar uma baixa de 60 mil indivíduos, num único surto desses. Nenhuma guerra indígena matava 10% desse contingente.

Fica, assim, uma estranha sensação: a de que nós, brasileiros, não temos nada a ver com os Tamoio, nem com os Tupiniquim, nem com os Temiminó, Caeté ou Potiguara; e muito menos com os Tapuia – Goitacá, Puri, Aimoré, Pataxó, Tremembé, Charrua, Mongoió, Tarairiú, Cariri, Carajá, Guaicuru, Jaicó, e muitos outros.

É uma ilusão. Porque as fontes históricas são pródigas, explícitas e enfáticas em demonstrar que houve uma intensa miscigenação entre homens portugueses e mulheres índias – relação que, em geral, envolvia alguma forma de violência. Aliás, Caramuru e Paraguaçu – casal mítico de quem descendem quase todos os baianos e, em consequência, quase todos os brasileiros – são o símbolo por excelência desse Brasil mestiço, a quem pouco depois se somariam os africanos.

Mas esses fatos não são apenas mitológicos. Estudos genéticos muito recentes, comandados por Sérgio Danilo Pena, demonstraram que cerca de 33% dos brasileiros autodenominados “brancos” descendem diretamente de uma antepassada indígena, por linha materna. Entre os classificáveis como “negros”, esse percentual é de 12%.

Dados os percentuais médios de “brancos” e “negros” na população brasileira, pode-se afirmar que não menos de um quinto, ou 20%, dos brasileiros possui antepassados indígenas.

Esses números, aparentemente óbvios, são uma ilusão. Vou tentar explicar por quê.

Toda mulher deixa nas células de seus filhos uma certa marca genética, idêntica à que sua mãe deixou nela, marca essa que será retransmitida aos netos, através e unicamente de suas filhas.

Os pais não deixam essa marca nos filhos, mas têm neles as marcas de suas respectivas mães.

Ora, pelo menos 20% dos brasileiros têm linhagens maternas indígenas. Mas isso não quer dizer que apenas 20% descendam de índios.

Porque, se o pai de um indivíduo descender de índios, seus filhos também descenderão, embora não necessariamente possuam a marca genética específica que identifica isso, que só se herda da mãe.

Assim, estatisticamente, considerados pai e mãe, 36% dos brasileiros descendem de índios, mesmo que parte desse grupo não possua a referida marca genética, por descender de indígenas apenas por via paterna.

Mas esse número também é falso. Porque cada indivíduo tem, necessariamente, além de pai e mãe, quatro avós. Se, como eu disse, a probabilidade de alguém ter marca genética que indique linhagem materna indígena é de 20%, considerados os quatro avós – se forem brasileiros –, são 59% os que descendem de índios.

No mesmo passo, considerados os bisavós, o percentual de descendentes indígenas atinge cerca de 83%.

Mesmo com todas as aproximações que os especialistas saberão que fiz, não são necessárias mais contas para que se possa afirmar que, no Brasil, a probabilidade de alguém ser descendente de índios é muito alta, talvez muito próxima de 100% – já que o processo miscigenatório que deu origem ao fenômeno começou no século 16, bem antes da geração dos nossos bisavós.

Ou seja, no Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é – para concluir, roubando a frase clássica de Eduardo Viveiros de Castro.

É evidente que, dada a antiguidade e a intensidade dos contatos, os Tupinambá entraram de forma maciça nesse processo. Logo, não estão extintos. O que se extinguiu foi a cultura tupinambá, tal como existia no século 16. Do ponto de vista biológico, tanto os tupinambá como outras centenas de etnias indígenas sobrevivem nos brasileiros modernos, seus descendentes imediatos.

Não sei o que ainda é necessário fazer para que as pessoas compreendam isso – que não estamos aqui faz apenas cinco séculos, mas há uns 15 mil anos.

Há 15 mil anos somos brasileiros; e não sabemos nada do Brasil.

Texto de Alberto Mussa

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