domingo, 15 de abril de 2012

MORRO DOS OSSOS - PIAUÍ


Há cerca de 20 anos deu-se início o Projeto de Cadastramento dos sítios arqueológicos do Piauí, pela Universidade Federal do Piauí. Desde então foram levantados mais de 700 sítios arqueológicos distribuídos em mais de 60 municípios de norte a sul do Estado. A maioria deles é de arte rupestre, mas também foram identificados sítios históricos, aldeias de agricultores ceramistas, oficinas líticas, sítios paleontológicos e com enterramentos.

No ano de 2004, foi encontrado o sítio arqueológico denominado MORRO DOS OSSOS, no município de São Miguel do Tapuio, leste do Piauí, rica em remanescentes pré-históricos. Apesar do difícil acesso, foi apropriado pela população das áreas circunvizinhas que o utilizam como local de pagamento de promessas, onde colocam cruzes, acendem velas, depositam ex-votos, soltam fogos de artifícios. O Morro dos Ossos diferencia-se dos demais porque o material ósseo ali existente foi pintado, utilizando-se pigmento de cor vermelha, na mesma tonalidade que as pinturas realizadas na parede do abrigo.

O sítio Morro dos Ossos é um pequeno abrigo sob rocha, localizado em alto de vertente, em cujo solo rochoso acham-se dispersas ossadas humanas pintadas em vermelho, pertencentes a vários indivíduos. Dentre os ossos observados ressaltamos a presença de: mandíbulas, fêmur, tíbias, patela e vértebras.

A parede do abrigo apresenta um painel pintado em vermelho com representações de segmentos paralelos de reta pouco elaborados sugerindo a utilização de ocre na forma de bastonete. A constituição arenítica do abrigo favorece o péssimo estado de conservação da parede com a presença de inúmeros depósitos de alteração e desplacamentos em diferentes espessuras. Ações antrópicas também têm contribuído para a depredação do sítio, especialmente pelo lixo deixado pelos peregrinos e prováveis ações vândalas de remoção de material arqueológico.

Apesar dos ossos estarem expostos ao ar livre, depositados diretamente no solo rochoso, sem a proteção de uma urna funerária, estão bem preservados, de uma maneira natural, fato ocorrido provavelmente devido ao clima extremamente seco da região e ao solo ácido que não favorece a proliferação de microorganismos. Também não há evidência de nenhum tipo de marcas de agressão como cortes, perfurações ou fraturas nas ossadas. No entanto, não correspondem a esqueletos humanos completos, faltam alguns ossos, entre os quais os crânios, possivelmente em decorrência de vandalismo ou a presença de animais que porventura tenham estado no local.

A escolha de abrigos como cemitérios deve-se a sua localização em pontos mais protegidos, escondidos. Situação semelhante é observada na região amazônica, onde cavernas e abrigos foram utilizados como necrópole. Neste caso, no entanto, os ossos foram depositados em urna cerâmica (Guapindaia, 2001).

Pigmentos naturais são utilizados pelos povos em vários continentes desde remotíssimo tempo. Ainda no período dos Neandertais, os pigmentos tornaram-se muito frequentes, não apenas nos depósitos de ocupação, mas também em enterramentos, os quais então ocorreram pela primeira vez.

No Brasil, há referências de vários sítios onde foi comprovado o uso de pigmento em enterramentos pré-históricos, como na costa catarinense e em Pernambuco. Nesse último Estado convém mencionar os sítios Pedra do Alexandre, onde os ossos pintados em vermelho e cobertos de pigmento finamente peneirado pertenciam especialmente a crianças, e a Gruta do Padre, onde fragmentos de ocre foram encontrados junto à nuca e ao ventre de alguns esqueletos (Martin, 1992).

Diferentes investigações mostram que os pigmentos minerais possuem numerosas propriedades. A partir de estudos etnográficos ao redor do mundo, tem-se conhecimento que o ocre é frequentemente utilizado no tratamento de pele de animais, por preservar os tecidos orgânicos, protegendo-os da putrefação e de vermes, sendo usado também para a decoração de peles de animais. O pigmento vermelho pode ter sido aplicado em cadáveres, não apenas na crença sobre relação vida-sangue, como é comumente acreditado, ou para restabelecer uma ilusão de saúde e vida em faces mortas, mas de preferência para neutralizar odores e ajudar a preservar o corpo (Bahn,1998).

De acordo ainda com Bahn, a prática dos povos pré-históricos de pintarem seus corpos pode em alguns casos ter sido puramente funcional, em vez de simbólica (como ocorre em ritos da puberdade feminina), ou estética. O ocre, por exemplo, seria muito efetivo em cauterização e limpezas de feridas, e ainda é usado pelos Barougas, da África do Sul, para secar ferimentos ainda sangrando. Até o final do século XIX, o ocre ainda era usado por médicos de lugarejos em muitas partes da Europa, como um anti-séptico no tratamento de ferimentos infectados.

Outra função que deve ter sido muito importante é a da proteção contra as intempéries e insetos. Povos como os Tasmanianos, Polinésios, Melanésios e Hottentots (Khoikhoi) usaram pigmentos para manter o corpo aquecido e repelir os efeitos do frio e da chuva. Tribos norte-americanas como os Navaho, Walapai, Pima e outras, os usavam na forma de uma mistura de ocre vermelho e gordura que era frequentemente aplicada na face das mulheres e crianças como uma medida higiênica para proteger a pele contra o sol e ventos secos.

Similarmente, certas tribos sul-americanas, tais como os Karajá, do Brasil, ou os índios Warran, do Orinoco, geralmente usavam pintura vermelha como proteção contra mosquitos, enquanto os tasmanianos colocavam uma mistura de gordura e ocre em seus cabelos como uma efetiva proteção contra os insetos nocivos. Os Walbiri, da Austrália, ainda untam os seus torsos com gordura e pigmento vermelho em pó como um isolante contra calor e frio, e como proteção contra as moscas.

As propriedades medicinais atribuídas ao ocre podem ter levado à pintura do morto ou moribundo: se membros da tribo australiana Arunta ficavam doentes, os corpos deles eram esfregados com ocre vermelho, enquanto os Sioux Dakota costumavam pintar mulheres e crianças antes que eles morressem.

No Brasil, os índios Kraô, do Tocantins praticavam o enterramento secundário, pintando os ossos depois de terem sido liberados da carne e tornavam a enterrá-los, mas os pintavam de vermelho fazendo uso do urucum. Seria o mesmo princípio do ocre, sendo que o mais importante nisso é a cor, pois entre muitos índios o vermelho representa a cor da vida. Para os Kraô, o urucum é sempre bom para passar na pele, contra picada de mosquito, pois apresenta uma ação antisséptica e repelente.

Outras tribos indígenas também fizeram uso do urucum para pintura corporal e para a preservação de alimentos. Até hoje este pigmento é largamente utilizado como tempero na cozinha do norte e nordeste brasileiro.

A necessidade de verificar a composição química do pigmento vermelho das ossadas humanas do Morro dos Ossos de São Miguel do Tapuio é no sentido de situar no tempo os grupos culturais autores dessa prática funerária. O uso do ocre é bem mais antiga que a do urucum.

Baseado em texto de Luis Carlos Duarte Cavalcante,
Maria Conceição Soares Meneses Lage,
Ana Clélia Barradas Correia Nascimento e Vilma Chiara

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