Há cerca de 20 anos
deu-se início o Projeto de Cadastramento dos sítios arqueológicos do Piauí,
pela Universidade Federal do Piauí. Desde então foram levantados mais de 700
sítios arqueológicos distribuídos em mais de 60 municípios de norte a sul do
Estado. A maioria deles é de arte rupestre, mas também foram identificados
sítios históricos, aldeias de agricultores ceramistas, oficinas líticas, sítios
paleontológicos e com enterramentos.
No ano de 2004, foi
encontrado o sítio arqueológico denominado MORRO
DOS OSSOS, no município de São Miguel do Tapuio, leste do Piauí, rica em
remanescentes pré-históricos. Apesar do difícil acesso, foi apropriado pela
população das áreas circunvizinhas que o utilizam como local de pagamento de promessas,
onde colocam cruzes, acendem velas, depositam ex-votos, soltam fogos de
artifícios. O Morro dos Ossos diferencia-se dos demais porque o material ósseo
ali existente foi pintado, utilizando-se pigmento de cor vermelha, na mesma
tonalidade que as pinturas realizadas na parede do abrigo.
O sítio Morro dos
Ossos é um pequeno abrigo sob rocha, localizado em alto de vertente, em cujo
solo rochoso acham-se dispersas ossadas humanas pintadas em vermelho, pertencentes
a vários indivíduos. Dentre os ossos observados ressaltamos a presença de:
mandíbulas, fêmur, tíbias, patela e vértebras.
A parede do abrigo
apresenta um painel pintado em vermelho com representações de segmentos
paralelos de reta pouco elaborados sugerindo a utilização de ocre na forma de
bastonete. A constituição arenítica do abrigo favorece o péssimo estado de
conservação da parede com a presença de inúmeros depósitos de alteração e
desplacamentos em diferentes espessuras. Ações antrópicas também têm contribuído
para a depredação do sítio, especialmente pelo lixo deixado pelos peregrinos e
prováveis ações vândalas de remoção de material arqueológico.
Apesar dos ossos
estarem expostos ao ar livre, depositados diretamente no solo rochoso, sem a
proteção de uma urna funerária, estão bem preservados, de uma maneira natural,
fato ocorrido provavelmente devido ao clima extremamente seco da região e ao
solo ácido que não favorece a proliferação de microorganismos. Também não há
evidência de nenhum tipo de marcas de agressão como cortes, perfurações ou
fraturas nas ossadas. No entanto, não correspondem a esqueletos humanos
completos, faltam alguns ossos, entre os quais os crânios, possivelmente em
decorrência de vandalismo ou a presença de animais que porventura tenham estado
no local.
A escolha de abrigos
como cemitérios deve-se a sua localização em pontos mais protegidos,
escondidos. Situação semelhante é observada na região amazônica, onde cavernas
e abrigos foram utilizados como necrópole. Neste caso, no entanto, os ossos
foram depositados em urna cerâmica (Guapindaia, 2001).
Pigmentos naturais
são utilizados pelos povos em vários continentes desde remotíssimo tempo. Ainda
no período dos Neandertais, os pigmentos tornaram-se muito frequentes, não
apenas nos depósitos de ocupação, mas também em enterramentos, os quais então
ocorreram pela primeira vez.
No Brasil, há
referências de vários sítios onde foi comprovado o uso de pigmento em
enterramentos pré-históricos, como na costa catarinense e em Pernambuco. Nesse
último Estado convém mencionar os sítios Pedra do Alexandre, onde os ossos
pintados em vermelho e cobertos de pigmento finamente peneirado pertenciam
especialmente a crianças, e a Gruta do Padre, onde fragmentos de ocre foram
encontrados junto à nuca e ao ventre de alguns esqueletos (Martin, 1992).
Diferentes
investigações mostram que os pigmentos minerais possuem numerosas propriedades.
A partir de estudos etnográficos ao redor do mundo, tem-se conhecimento que o
ocre é frequentemente utilizado no tratamento de pele de animais, por preservar
os tecidos orgânicos, protegendo-os da putrefação e de vermes, sendo usado
também para a decoração de peles de animais. O pigmento vermelho pode ter sido
aplicado em cadáveres, não apenas na crença sobre relação vida-sangue, como é
comumente acreditado, ou para restabelecer uma ilusão de saúde e vida em faces
mortas, mas de preferência para neutralizar odores e ajudar a preservar o corpo
(Bahn,1998).
De acordo ainda com
Bahn, a prática dos povos pré-históricos de pintarem seus corpos pode em alguns
casos ter sido puramente funcional, em vez de simbólica (como ocorre em ritos
da puberdade feminina), ou estética. O ocre, por exemplo, seria muito efetivo
em cauterização e limpezas de feridas, e ainda é usado pelos Barougas, da
África do Sul, para secar ferimentos ainda sangrando. Até o final do século
XIX, o ocre ainda era usado por médicos de lugarejos em muitas partes da
Europa, como um anti-séptico no tratamento de ferimentos infectados.
Outra função que deve
ter sido muito importante é a da proteção contra as intempéries e insetos. Povos
como os Tasmanianos, Polinésios, Melanésios e Hottentots (Khoikhoi) usaram pigmentos
para manter o corpo aquecido e repelir os efeitos do frio e da chuva. Tribos
norte-americanas como os Navaho, Walapai, Pima e outras, os usavam na forma de
uma mistura de ocre vermelho e gordura que era frequentemente aplicada na face
das mulheres e crianças como uma medida higiênica para proteger a pele contra o
sol e ventos secos.
Similarmente, certas
tribos sul-americanas, tais como os Karajá, do Brasil, ou os índios Warran, do
Orinoco, geralmente usavam pintura vermelha como proteção contra mosquitos,
enquanto os tasmanianos colocavam uma mistura de gordura e ocre em seus cabelos
como uma efetiva proteção contra os insetos nocivos. Os Walbiri, da Austrália,
ainda untam os seus torsos com gordura e pigmento vermelho em pó como um
isolante contra calor e frio, e como proteção contra as moscas.
As propriedades
medicinais atribuídas ao ocre podem ter levado à pintura do morto ou moribundo:
se membros da tribo australiana Arunta ficavam doentes, os corpos deles eram
esfregados com ocre vermelho, enquanto os Sioux Dakota costumavam pintar
mulheres e crianças antes que eles morressem.
No Brasil, os índios
Kraô, do Tocantins praticavam o enterramento secundário, pintando os ossos
depois de terem sido liberados da carne e tornavam a enterrá-los, mas os
pintavam de vermelho fazendo uso do urucum. Seria o mesmo princípio do ocre,
sendo que o mais importante nisso é a cor, pois entre muitos índios o vermelho
representa a cor da vida. Para os Kraô, o urucum é sempre bom para passar na
pele, contra picada de mosquito, pois apresenta uma ação antisséptica e repelente.
Outras tribos
indígenas também fizeram uso do urucum para pintura corporal e para a
preservação de alimentos. Até hoje este pigmento é largamente utilizado como
tempero na cozinha do norte e nordeste brasileiro.
A necessidade de
verificar a composição química do pigmento vermelho das ossadas humanas do
Morro dos Ossos de São Miguel do Tapuio é no sentido de situar no tempo os grupos
culturais autores dessa prática funerária. O uso do ocre é bem mais antiga que
a do urucum.
Baseado
em texto de Luis Carlos Duarte Cavalcante,
Maria Conceição Soares Meneses Lage,
Ana Clélia Barradas Correia Nascimento e Vilma Chiara
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