O padre capuchinho Claude D’Abbeville chegou ao Maranhão em 26
de Julho de 1612 e retornou à Europa em 1º de Dezembro do mesmo ano. Foi um dos
missionários encarregados da catequese na França Equinocial, a segunda
tentativa de colonização francesa no Brasil, terminada em 1616. Viveu apenas
entre os Tupinambá, que teriam chegado à região fugindo dos portugueses, desde
o Rio de Janeiro.
A
maioria dos autores dos primeiros séculos da colonização do Brasil teve contato
com os tupinambás - grupos tribais com unidade linguística e cultural -, que se
localizavam nas áreas em que os contatos com os brancos foram mais intensos e
regulares. Os Tupinambá não existem mais, em consequência de guerras (com
europeus e outros grupos indígenas), escravidão, fome, epidemias causadas pelo
convívio com os portugueses. De acordo com o Mapa etno-histórico de Curt
Nimuendajú, que mostra a localização de mais de 1.400 grupos indígenas no
Brasil, os Tupinambá, que pertenciam à família linguística tupi-guarani, viviam
ao longo da costa brasileira.
No
século XVII, o frade capuchinho francês Claude D’Abbeville escreveu uma
importante obra sobre os tupis do Maranhão. Em Histoire de la mission des pères capucins en l’isle de Marignan et
terres circonvoisines où est traicté des singularitez admirables & des
moeurs merveilleuses des indiens habitans de ce pais, de 1614, D’Abbeville
nos apresenta, no capítulo 51, uma relevante descrição da astronomia tupi. E mostra
admiração ao se referir aos tupinambás em várias passagens da obra, como, por
exemplo:
São grandes discursadores e mostram grande prazer em falar.
Fazem-no às vezes durante duas a três horas seguidas, sem hesitações,
revelando-se muito hábeis em deduzir dos argumentos que lhes apresentam as necessárias
consequências. São bons raciocinadores e só se deixam levar pela razão e jamais
sem conhecimento de causa. Estudam tudo o que dizem e suas censuras são sempre
baseadas na razão. Por isso mesmo querem que lhes retribuam na mesma moeda.
E se
surpreende com a acuidade visual dos índios:
Durante nossa viagem de regresso os índios que trazíamos conosco
muito antes de qualquer tripulante percebiam os navios no horizonte graças à
sua vista maravilhosa. E quando os mais hábeis marujos pensavam ter descoberto terra
trepados no alto do grande mastro, os índios sem sair do tombadilho facilmente
verificavam não se tratar de terra, porém de acidentes de horizonte ou de
simples nuvens escuras. E assim tendo os marujos se enganado várias vezes,
apesar de sua experiência, zombaram deles os índios dizendo: “caraíbes osapucai
tenhe terre, terre euvac com assupinhé”, isto é, “esses franceses gritam terra
terra e no entanto não é terra, mas somente céu preto”. Em verdade, foram os
primeiros a descobrir a terra por ocasião de nossa chegada, e muito antes que
qualquer um de nós a pudesse ver, e embora muitos na nossa tripulação tivessem
excelente vista. Assim como a vista têm eles os outros sentidos do ouvido, do
paladar e do tato.
Sobre a
observação do céu pelos Tupinambá do Maranhão, D’Abbeville escreve: “Il y en a sort peu entr’eux qui ne
connoisse la pluspart des astres & Estoiles de leur hemisphere & qui ne
les appelle par leur nom propre que leurs predecesseurs ont inventé &
imposé à chacune d’icelles” ou, de acordo com a edição de 1945, “Poucos entre eles desconhecem a maioria
dos astros e estrelas de seu hemisfério; chamam-nos todos por seus nomes
próprios, inventados por seus antepassados [...]”.
O
planeta Vênus é conhecido popularmente como “Estrela da Tarde”, ou como “Estrela
da Manhã”, dependendo da época do ano em que aparece no céu: de manhãzinha, ou
de tardinha. Os tupis deram o nome de Yasseuhtata
Ouässou (iaceí-tatá-uaçu) à “Estrela da Manhã” e de Pirapaném à “Estrela da Tarde”,
segundo D’Abbeville. Mas, segundo Rodolfo Garcia, os guaranis chamavam Pira-pané ao planeta Mercúrio,
que assim como Vênus aparece no céu à tarde próximo ao ponto do horizonte onde
o Sol se põe. Como a “Estrela da Tarde” é um astro muito brilhante, de fácil
identificação e muito popular, é difícil crer que D’Abbeville tenha se enganado
em sua identificação. José Vieira Couto de Magalhães, em seu Curso de Língua
Tupi Viva, diz que entre os tupis o planeta Vênus se chama iaci-tatá-uaçú, confirmando D’Abbeville.
Os
comentários de Rodolfo Garcia sobre aspectos astronômicos devem ser analisados
com cautela. Ele parece não saber que a “Estrela da Tarde” e o planeta Vênus
são o mesmo corpo celeste, conforme transparece em seus comentários sobre Januare e Iapuicã. O autor associa Januare
à Estrela da Tarde, ou Vésper, mas pela definição de D’Abbeville
para Januare – “Elle est fort rouge & ordinairement elle suit la Lune
de sort pres” – não pode ser o planeta Vênus, pois este não tem o brilho
vermelho. Marte estaria mais próximo dessa definição do que Vênus.
Além
disso, Rodolfo Garcia sugere a associação da constelação Potim com a de Câncer (que em nada se parece
com um caranguejo e não tem nenhuma estrela muito brilhante), da constelação Urubu com o Corvo e
da constelação de Tapiti com
a Lebre, sem nenhum argumento que corrobore tais afirmações. Rodolfo
Garcia, assim como outros autores, têm a visão etnocêntrica de que as constelações
indígenas terão correspondência exata com as nossas, o que não é verdade. Uma constelação
indígena às vezes corresponde a pedaços de várias das nossas, ou vice-versa.
Além do mais, alguns povos da América pré-colombiana conceituam constelações
negras, e não de estrela a estrela, como as que herdamos da astronomia
ocidental, inclusive os guaranis, que têm uma origem comum com os Tupinambá.
Os
comentários de Rodolfo Garcia têm uma importância linguística inquestionável,
porém, suas tentativas de identificar planetas, estrelas e constelações se
revelaram duvidosas.
Quanto
às identificações de D’Abbeville, chama a atenção o seguinte trecho: “Eles têm também uma estrela extremamente
brilhante que se chama Yaseuh Tatá Oué, sobre a qual eles cantam um canto em
louvor de sua beleza e de seu movimento”. A alusão ao movimento dessa “estrela”
que chamou a atenção dos Tupinambá pode indicar que se trata de um planeta e
não de uma estrela.
Yäpouykan,
a “estrela que se acha sempre diante do Sol” poderia ser o planeta Mercúrio ou
Vênus, pois estes aparecem no céu sempre próximos ao Sol: um pouco depois do
pôr-do-sol ou um pouco antes do nascer do Sol. Porém, D’Abbeville diz que Jaceí-tatá-uaçu
é a “Estrela da Manhã” (Vênus), então Mercúrio se torna mais provável.
D’Abbeville
também relata que os Tupinambá identificam muitas outras estrelas, não
mencionadas por ele no livro, e que sabiam distinguir perfeitamente uma estrela
da outra, e observar “o Oriente e o Ocidente das que se levantam e se deitam no
horizonte”.
D’Abbeville
nos informa, ainda, a respeito dos conhecimentos dos Tupinambá sobre a Lua: “É certo que não conhecem a Epacta, nem as
Idades da Lua; porém, em virtude de longa prática, conhecem seu crescente e
minguante, o plenilúnio e a Lua nova e muitas outras coisas sobre o seu curso”.
Como D’Abbeville era um frade capuchinho, conhecia bem a epacta e a idade
da Lua, pois eram usadas para se calcular as datas no Calendário
Eclesiástico. Estas são meras definições, que só apresentam utilidade para calendários
lunares ou lunissolares. Acreditamos que os Tupinambá tinham o conhecimento
prático, embora não definissem da mesma forma que os europeus. Ou talvez não
dessem muita importância, uma vez que utilizavam um calendário solar,
como relata D’Abbeville:
Observam também o curso do Sol, a rota que segue entre os dois
trópicos, como seus limites e suas fronteiras que ele jamais ultrapassa; e
sabem que quando o Sol vem do polo ártico traz-lhes ventos e brisas e que, ao
contrário, traz chuvas quando vem do outro lado em sua ascensão para nós. Contam
perfeitamente os anos com doze meses como nós fazemos, pelo curso do Sol indo e
vindo de um trópico a outro. Eles os reconhecem também pela estação das chuvas
e pela estação das brisas e dos ventos. Eles os reconhecem, ainda, pela
colheita dos cajus [...] assim como nós saberíamos aqui pela época da vindima.
Figura
1: O curso do Sol nos dias dos solstícios (junho e dezembro) e equinócios
(março e setembro).
A
Figura 1 mostra o caminho diário do Sol em dias diferentes do ano. Nos
equinócios, o Sol nasce no Leste e se põe no Oeste. À medida que vamos nos
afastando das datas dos equinócios, os pontos de nascer e ocaso do Sol vão se
afastando dos pontos Leste e Oeste. Nos solstícios, o afastamento dos pontos de
nascer e pôr do Sol, em relação aos pontos cardeais Leste e Oeste,
respectivamente, é máximo. Essa é a rota que o Sol segue entre os dois
trópicos, à qual se refere D’Abbeville.
A
divisão do ano em doze meses pode ser uma dedução etnocêntrica de D’Abbeville,
pois há estudos sobre calendários de grupos tupi-guaranis atuais que não
utilizam divisão em meses como os nossos.
Para
finalizar, D’Abbeville nos explica como os tupinambás utilizam também um
calendário estelar (sideral):
Além do mais a estrela Seichu começa a aparecer alguns dias
antes das chuvas e desaparece no fim das mesmas; ela reaparece acima do
horizonte no começo das chuvas do ano seguinte, de onde os maranhenses
reconhecem perfeitamente bem o interstício e o tempo de um ano inteiro.
D’Abbeville
diz que seichu é a “Poussinière”,
as Plêiades, um aglomerado de estrelas muito bonito e conspícuo, facilmente
visível a olho nu, na constelação ocidental do Touro: “Temos entre nós a ‘Poussinière’ que muito bem conhecem e que denominam
seichu. Começa a ser vista, em seu hemisfério, em meados de janeiro, e mal a
enxergam afirmam que as chuvas vão chegar, como chegam efetivamente pouco
depois”.
O
centro-norte do estado do Maranhão tem duas estações: a seca, quando os totais
de chuva apresentam pequenos valores (junho a novembro) e a chuvosa, quando os
totais apresentam valores significativos (dezembro a maio). O período chuvoso é
subdividido em pré-estação (dezembro e janeiro) e a estação chuvosa
propriamente dita (fevereiro a maio).
D’Abbeville
diz que seichu “começa a aparecer alguns dias antes das
chuvas”. A expressão “começa a
aparecer” pode se referir ao Nascer Helíaco desse aglomerado de estrelas,
ou ao seu Nascer Cósmico (anti-helíaco). O Nascer Helíaco das Plêiades é
a primeira aparição das Plêiades, depois de sua invisibilidade devido a sua conjunção
com o Sol, do lado Leste, pouco antes do nascer do Sol. Isso ocorre no
início do mês de junho. O Nascer Cósmico é o primeiro dia em que uma estrela ou
constelação é visível no horizonte Leste ao pôr-do-sol. O Nascer Cósmico das
Plêiades ocorre em meados do mês de novembro.
D’Abbeville,
porém, diz que seichu começa a ser vista em janeiro, época que não
corresponde ao seu Nascer Helíaco, e que também não corresponde ao seu Nascer
Cósmico. Como as chuvas começam em dezembro, é mais provável que D’Abbeville
esteja se referindo ao Nascer Cósmico. O Nascer Helíaco das Plêiades, em junho,
corresponde ao início da época seca no Norte do Brasil.
Por sua
vez, Germano Afonso afirma que, para os guaranis, que pertencem à mesma família
linguística e possuem sistema astronômico parecido com o dos Tupinambá, o
Nascer Helíaco das Plêiades, na primeira quinzena de junho, marca o início do
ano.
As
Plêiades ficam aproximadamente um mês sem possibilidade de serem observadas
devido à proximidade com o Sol. Seu Ocaso Helíaco (último dia em que podem ser
vistas, do lado Oeste, logo após o pôr-do-sol) ocorre próximo a 30 de abril,
voltando a aparecerem (Nascer Helíaco) próximo a 5 de junho. D’Abbeville diz
que seichu “desaparece” no fim das chuvas, o que provavelmente se refere
ao seu Ocaso Helíaco. De fato, a estação chuvosa termina em maio.
A
relação entre a Lua e as marés também é descrita por D’Abbeville: “Eles atribuem à Lua o fluxo e o refluxo do
mar e distinguem muito bem as duas marés cheias que se verificam na Lua cheia e
na Lua nova ou poucos dias depois”.
Essa
citação tem um significado importante, pois, na época em que D’Abbeville
escreveu o livro, as causas das marés ainda não eram conhecidas. Galileu
Galilei escreveu o Discorso del flusso e reflusso del maré, em 1616, e
uma expansão do Discorso em Dialogo sopra i due massimi sistemi del
mondo Tolemaico e Copernicano, escrito em 1632. No Discorso, Galileu
diz que “La prima e più semplice delle quali è la determinata accelerazzione e
ritardamento delle parti della Terra, dependente dal componimento dei due moti,
annuo e diurno”, e que, portanto, não precisa recorrer à “vã quimera do movimento
da Lua” para explicar as marés. No Dialogo, Galileu tenta mostrar que
apenas pela combinação da rotação axial da Terra com sua revolução orbital – os
dois movimentos que Copérnico atribuiu à Terra – os movimentos de maré que
observamos podem surgir. Mas a causa das marés é a atração gravitacional da Lua
e do Sol, e Newton foi o primeiro a mostrar corretamente como as forças
geradoras da maré funcionam.
Baseado em texto de Flávia Pedroza Lima e Ildeu de Castro Moreira
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