segunda-feira, 9 de abril de 2012

LAGOA SANTA: OS PRIMEIROS AMERICANOS


Memórias deixadas por naturalistas viajantes já assinalavam a presença de vestígios pré-históricos nas regiões do interior de Minas Gerais, mas foi somente em 1834, quando Peter Willelm Lund iniciou trabalhos sistemáticos no Vale do Rio da Velhas, que a região tornou-se notoriamente de interesse arqueológico.

Este dinamarquês fixou residência em Lagoa Santa, onde fez pesquisas paleontológicas. Registrando também a presença de sítios arqueológicos, chegou a retirar ossos humanos dos depósitos que julgara inicialmente apenas fossilíferos, e registrou a presença de sítios arqueológicos, sempre que pode reconhecê-los. Entre tais registros estão inclusive sinalações rupestres como as da Lapa das Poções, em Cerca Grande, e da Pedra dos Índios.

A primeira escavação que propiciou o achado de ossos humanos foi realizada em 1840, durante os trabalhos de pesquisa paleontológica feitos na lagoa existente no fundo da gruta do Sumidouro. Lá foram encontrados ossos humanos secundariamente depositados, misturados a fósseis de animais pleistocênicos extintos.

O achado de restos de mais de 30 indivíduos, e sua associação com a megafauna, estendeu a polêmica existente sobre o porque da extinção de algumas espécies e não de outras, passando a incluir também o homem. Lund refere achar pouco provável que a humanidade não fosse tão antiga no Brasil quanto os animais extintos, e menciona curiosamente em suas Memórias que questão semelhante ainda era motivo de investigação também na Europa.

Falando de seus achados, o naturalista é o primeiro a reconhecer como, ao cabo de muito trabalho, acabara por mudar de opinião, passando a aceitar a contemporaneidade do homem com a fauna extinta, baseada na cuidadosa análise do processo pelo qual se dera a deposição dos materiais, a qual excluía a partir de evidências empíricas a hipótese de mistura posterior das ossadas.

(....) quando inesperadamente, depois de sete anos de baldadas pesquisas, tive a fortuna de encontrar os primeiros restos de indivíduos da espécie humana sob circunstâncias que admitiam pelo menos a possibilidade de uma solução contrária da questão
Achei esses restos humanos numa caverna que continha, misturados com eles, ossos de vários animais de espécies decididamente extintas (Platyonyx Buklandii, Chlamidotherium Humboldtii, C. majus, Dasypus sulcatus, Hydrochoerus sulcidens etc.) circunstância que devia chamar toda atenção para as interessantes relíquias.
Apresentavam eles, além disso, todos os caracteres físicos de ossos realmente fósseis. Estavam em parte petrificados em parte impregnados de partículas férreas, o que dava a alguns deles um brilho metálico semelhante ao bronze, assim como um peso extraordinário.

Tendo sido antecedidos de apenas alguns anos pelos dois primeiros achados de crânios Neandertal na Europa (Lazareto, em Nice, na França, em 1826 e Engis, na Bélgica, em 1829), os achados de Lund foram, como ele mesmo acentuou, precursores, dando-se num momento em que ainda não se havia acumulado conhecimentos paleontológicos sobre o surgimento do homem, e a própria discussão do paradigma evolucionista estava por firmar-se.

Com sua publicação sucedida por dois outros achados – o de Forbe Quarry, em Gibraltar, em 1848, e o de La Chaise, também na França, em 1850 – os achados do Sumidouro se deram, obviamente, no contexto inicial de descobrimento de fósseis humanos, alimentando a efervescência das controvérsias entre as teorias evolutivas e os dogmas religiosos.

A aceitação por Lund, da antiguidade do chamado “Homem de Lagoa Santa” e sua convivência com animais extintos, foi informada em correspondência pessoal ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tal como refere Mendonça de Souza:

À vista dos fatos que acabo de referir, não pode, pois, restar dúvida alguma de quea existência do homem neste continente data de tempos anteriores à época em que acabaram de existir as últimas raças de animais gigantescos (....)

Tais achados apresentam como pano de fundo a discussão sobre o povoamento do continente Americano. Num cenário em que ainda se discutia se os povos indígenas americanos realmente teriam origem no Velho Mundo ou seriam autóctones, e que os achados na Europa e na Ásia despontavam timidamente, discutia-se a aparente contradição entre o que fora encontrado no Brasil e as teorias vigentes, como no trecho que se segue:

Vemos, pois, que a América já era habitada em tempo em que os primeiros raios da história não tinham ainda apontado no horizonte do Velho Mundo, e que os povos daquela época, que aqui habitavam, eram da mesma raça que os habitantes desta região nos tempos do descobrimento. Estes dois resultados, na verdade, pouco harmonizavam com as idéias geralmente aceitas sobre a origem dos habitantes desta parte do mundo (...)
(...) se considerarmos que a natureza procede do imperfeito para o perfeito; que esta parte do mundo é, do ponto de vista geológico, considerada antiga; enfim, que o exame da caverna em questão nos leva a admitir a habitação desta parte do mundo desde os tempos mais remotos, devemos convir, segundo creio, que temos boas razões para emitir, ao lado de conjecturas ainda menos firmes, uma opinião que causaria a modificação total da relação cronológica que se estabeleceu até hoje entre as duas raças de que falamos.

O trabalho feito em Lagoa Santa na primeira metade do século XIX teve destaque mundial, e o pensamento do dinamarquês, suas idéias sobre a extinção da megafauna, e sobre a formação das jazidas paleontológicas e arqueológicas, influenciou internacionalmente. Com o envio da coleção pré-histórica de Lagoa Santa para a Dinamarca, no final do século XIX, o material passa a ser acessível a pesquisadores internacionais, que passarão a descrevê-la e a publicar.

Entretanto, após Lund, o primeiro arqueólogo a testar em campo a proposição da contemporaneidade do homem com a fauna extinta, foi Padberg-Drenkpohl, que somente cerca de um século depois viajou em missões de pesquisas do Museu Nacional (1926 e 1934), para trabalhar na região de Cerca Grande. Deste trabalho, infelizmente, ficaram apenas relatórios sucintos.

Tendo realizado uma proporção pequena de trabalhos de campo, mas concentrando-se nos achados arqueológicos, este autor partiu com o objetivo explícito de contestar as conclusões de seu antecessor, razão pela qual foi veementemente combatido por outro grupo de aficcionados, que começavam a reunir-se na mesma época, o grupo da Academia de Ciências de Minas Gerais. Em relatório da viagem, diz Padberg:

Achando nessa lapa, que batizei de Lapa Mortuária, relíquias de uns 80 indivíduos humanos e muitos restos, especialmente dentes de animais extintos, mormente grandes, como de mastodonte, cavalos indígenas, Macharuchenia etc., a escavação foi feita sistematicamente, com auxílio de mais de meia dúzia de operários, durante todo o mês de outubro, acompanhando tudo com apontamentos, desenhos, photographias etc. Verificou-se que os restos humanos (entre os quais um ou outro esqueleto quase completo: os primeiros conhecidos da ‘raça de Lagoa Santa’! – meia dúzia de crânios bem mensuráveis, mais de 50 mandíbulas, inúmeros dentes e especialmente muitos ‘rochedos’, i.e., as partes petrosas do osso temporal, muitas vezes a única testemunha dum indivíduo, estavam sem ordem, às vezes debaixo de grandes lajes ou blocos calcáreos (...).

Missão subseqüente foi empreendida por Bastos de Ávila, Rui de Lima e Silva e Ney Vidal, também enviados pelo Museu Nacional, em 1937. Estes, com base no achado de um sítio que continha sepultamentos em situação primária, sob lajes de pedra, limitariam-se a dizer pouco dos mesmos, não chegando a contribuir para a discussão.

Outras missões de pesquisa se seguiram, conduzidas pela Academia de Ciências de Minas Gerais, onde Harold Walter, Arnaldo Cathoud e Anibal  Matos iniciariam seus trabalhos em 1933, escavando numerosas grutas e abrigos e publicando até a década de 70. A coleção formada na época, hoje sob guarda da Universidade Federal de Minas Gerais, ainda é estudada, apesar dos problemas representados pela falta de informações de campo que satisfaçam as exigências metodológicas atuais.

Depois de Lund, este foi o grupo que realizou a mais intensiva e extensiva escavação das grutas de Lagoa Santa, reunindo um vasto acervo. Sua busca exaustiva, entretanto, não tinha o cuidado de preservar testemunhos dos depósitos arqueológicos pesquisados, o que impossibilitou a volta aos sítios com novas abordagens técnicas, para verificar suas afirmativas.

Segundo Prous, os trabalhos de Walter, principalmente o achado do chamado “Homem de Confins”, representaram um esforço para divulgar internacionalmente os achados de Lagoa Santa, levantando nova polêmica e motivando a vinda da missão arqueológica americana no Brasil. Convencido da contemporaneidade entre os grupos primevos de Lagoa Santa e a megafauna, afirmaria Walter:

Durante 15 anos de exploração e escavação dos depósitos em lapas e abrigos o autor tem conseguido uma coleção relativamente boa da fauna pleistocênica, algum material indígena e em alguns lugares separados revelou dois esqueletos humanos junto com animais extintos.
Na Lapa de Confins foram encontrados em 1935 um crânio e outros ossos humanos numa profundidade de dois metros abaixo de uma camada de estalagmite. O depósito desta caverna produziu, durante três anos de escavações uma variedade de animais extintos como urso, preguiça terrestre, lhama, mastodonte etc. Talvez o Homem de Confins tenha chegado nessa localidade no fim do pleistoceno, quando muitos mamíferos que hoje estão extintos ainda existiam na região.

Com o intuito de demonstrar cientificamente suas interpretações, Walter investiu em verificações científicas objetivas, tais como análises químicas, na tentativa de provar a antiguidade e a condição de fossilização dos ossos, humanos e animais. Através das análises químicas comparativas entre ossos animais e do Homem de Confins, logrou por algum tempo a aceitação de sua tese de contemporaneidade entre os homens e a fauna pleistocênica extinta.

Tendo a preocupação em editar em livros bilíngües – inglês/português – suas idéias, Walter voltou a colocar internacionalmente a questão de Lagoa Santa.

Uma missão americana viria ao Brasil na década de 1950, liderada por Wesley Hurt, que encontrou e descreveu um conjunto funerário numeroso com datação que chegou aos 10 mil anos.
Seguiu-se outra grande missão estrangeira em Lagoa Santa, a missão franco-brasileira, inicia-se em 1971 sob a liderança de Annette Laming-Emperaire. Dela participam nomes de arqueólogos como Águeda Vilhena, hoje Vialou, Maria Beltrão, André Prous e Niède Guidon, de paleontólogos como Fausto Cunha, além de vários outros pesquisadores nacionais e estrangeiros. Após numerosas sondagens, uma grande escavação é finalmente iniciada na Lapa Vermelha IV. Se, por um lado, não são encontrados cemitérios ou estruturas de habitação que proporcionassem reconstruções seguras, essa missão traz à luz um conhecimento muito detalhado da gênese de um sítio de Lagoa Santa e, tal como já visto anteriormente, dos riscos e dificuldades de sua interpretação.
Um crânio admiravelmente bem conservado, semelhante a tantos outros retirados dos sítios de Lagoa Santa, acabou por tornar-se o produto mais destacado deste trabalho. Sua datação, que antes era relativa e conflituosa, só recentemente pôde ser feita a partir do exame de um pequeno fragmento ósseo. Esse crânio, que passou a ser conhecido na mídia como Luzia, é ainda um dos mais bem conservados exemplares de Lagoa Santa, mostrando sua morfologia craniana mais característica.

Embora o achado da Lapa Vermelha IV tenha sido considerado para muitos como não conclusivo da contemporaneidade do homem com a fauna extinta, esta interpretação não foi consensual, e outra das velhas polêmicas se reacendeu.

O tema da antiguidade e contemporaneidade do homem com a fauna extinta foi tratado por Prous ao descrever ossos, modificados de maneira que sugeria ação humana, encontrados em Lagoa Santa e também de Brejões, na Bahia. Embora lembrando que a megafauna parece ter persistido até o Holoceno no Brasil, este autor argumenta também com o achado de materiais líticos em níveis pleistocênicos, dizendo:

Todos estes vestígios não podem, em hipótese alguma, ser atribuídos a causas naturais, ao contrário do que acontece com as marcas de dentes de roedores, que formam numerosas estrias paralelas ao final da crista. Estas últimas foram feitas pelos animais depois do abandono do osso pelo Homem, mas antes dele ter sido levado pelas águas.
Portanto não temos mais dúvidas sobre a contemporaneidade do Homem com a megafauna no Brasil, sem que os contactos tenham de ser atribuídos, ipso facto, ao período pleistocênico. O aproveitamento alimentar nos parece inquestionável, e a utilização do osso como instrumento, bastante provável (Haplomastodon de Borges).
(...)
Concluindo esta apresentação, lembraremos que há tempo que se podia esperar indícios concretos de relacionamento entre paleoíndio e megafauna: mesmo se o significado das datações mais antigas da Lapa Vermelha (22.410 e 25.000 AP) é discutível, como explicamos no ano passado em Goiânia, a existência de instrumentos retocados há mais de 15.400 anos neste sítio, de várias datações também antigas tanto em Minas Gerais quanto em outros estados do Brasil, fazem com que tenhamos certeza de que durante os milênios de convívio, pelo menos a caça devia ter existido. Portanto os ossos trabalhados que apresentamos não nos parece ser revolucionários; mas, pelo menos trazem uma prova concreta.

Nas últimas décadas, pesquisas sistemáticas da equipe do Museu de História Natural da Universidade Federal de Minas Gerais, lideradas por André Prous, seguiram trabalhando metodicamente nos sítios. Hoje o trabalho está concentrado na região a nordeste do Planalto de Lagoa Santa, local em que, ao contrário do que ocorre com os sítios de Pedro Leopoldo, Confins e outros a sudoeste do Planalto, ainda há sítios preservados permitindo melhores pesquisas.

Recentemente, foi possível a comprovação da contemporaneidade do Homem de Lagoa Santa e a fauna extinta, por Walter Neves (veja artigo de Neves, neste volume), através da datação direta de um osso de Catonyx cuvieri proveniente da Gruta Cuvieri, cuja idade medida a partir do colágeno foi de 9.990 +- 40AP (Beta 165398), aproximando definitivamente os achados de ossos humanos e de animais extintos na região, o que responde a uma velha dúvida da arqueologia e da paleontologia brasileira.

Texto de Sheila M. F. Mendonça de Souza, Claudia Rodrigues-Carvalho,
Hilton P. Silva ,Martha Locks


Nenhum comentário:

Postar um comentário