Admite-se que o povo brasileiro tem em suas raízes o branco, o negro e
índio, porém, quanto à real participação na história e cultura brasileiras, a
presença indígena é apagada ao máximo e, quando muito, vista como algo
genérico. Resulta deste apagamento que, ainda no século XXI, se difunde a idéia
de que o Brasil é um país monolíngüe e de cultura única. Após 500 anos de
penoso contato, violências e discriminações, sobrevivem mais de duzentos povos
indígenas, com suas crenças, costumes, organização social e visão de mundo
próprios, falantes de umas 180 línguas distintas.
As línguas ameríndias, assim como outras línguas nativas, receberam os
qualificativos de “primitivas” ou “exóticas”. Esse preconceito está relacionado
ao fenômeno do etnocentrismo: os indivíduos tendem a encarar as demais culturas
pelo prisma de sua própria, considerando como anormal, estranho ou exótico tudo
o que dela diverge. Afirma Mattoso Câmara: “Em
relação à língua o etnocentrismo ainda é maior, porque a língua se integra no
indivíduo e fica sendo o meio permanente do seu contato com o mundo extralingüístico,
com o universo cultural que o envolve, de tal sorte que se cria uma associação
íntima entre o símbolo lingüístico e aquilo que ele representa”.
A afirmativa, válida para qualquer língua, aplica-se mais às línguas
indígenas, de culturas distintas da ocidental. Acresce que são línguas de
tradição oral, o que parece implicar diferenciação em relação às ocidentais,
pela importância da língua escrita nessas últimas.
Entretanto, como qualquer outra das cerca de seis mil línguas naturais
existentes, as línguas indígenas são organizadas segundo princípios gerais
comuns e constituem manifestações da capacidade humana da linguagem. Cada uma
constitui um sistema complexo, com um conjunto específico de sons, categorias e
regras de estruturação, perfeitamente adequada a cumprir as funções de
comunicação, expressão e transmissão. Cada uma reflete em seu vocabulário “as distinções e equivalências que são de
intenção na cultura da sociedade na qual ela opera” (Lyons). E se as
línguas indígenas apresentam propriedades diferentes de línguas indo-européias,
isto implica simplesmente que elas são distintas do ponto de vista tipológico.
Desde a chegada dos portugueses ao Brasil a existência de povos
indígenas e de suas línguas tornou-se conhecida, mas não completamente. O primeiro
contato ocorreu com povos tupi da costa brasileira e, exceto o kariri, a língua
por eles falada foi a única estudada nos primeiros trezentos anos de colonização.
Os materiais lingüísticos foram produzidos sobretudo por missionários jesuítas
portugueses, entre os quais se destacam o padre José de Anchieta, que em 1595
publicou uma gramática tupi, e do padre Luis Figueira, de 1621, sobre a mesma
língua. Há materiais produzidos por não missionários, destacando-se o francês Jean
de Léry, que deixou observações sobre aspectos do tupi (o ava-nheeng, literalmente “língua
da gente” – de “ava”: gente e “nhe’eng”: fala, língua).
As demais línguas, faladas por povos considerados do grupo “tapúya” (tupi: “bárbaro, inimigo”) eram
denominadas de “travadas”, de difícil entendimento, em contraste com o tupi
jesuítico, o nheengatu (tupi, “nhe’eng”:
língua + “katu”, bom) – a “língua boa”. Este desenvolveu-se como “língua geral”
da colônia e ainda sobrevive na região do Rio Negro.
Já apontadas por Câmara Jr., as características principais dos
materiais lingüísticos desse época são:
1 – referência somente à língua tupi, uma generalização de variantes
próximas, também chamada de “brasílica” nos séculos XVI e XVII, e de “tupinambá”,
após o século XVIII, ou de “tupi-guarani”;
2 – focalização da língua não como objeto de estudo, mas para
estabelecer comunicação com os falantes nativos e promover sua catequese; e
3 – abordagem da língua com base no aparato conceitual então
disponível – o de descrição das gramáticas clássicas, particularmente a latina.
A ênfase dada ao estudo do tupi no Brasil colônia continuaria
posteriormente pelo desenvolvimento de uma “filologia tupi”: o estudo de
materiais escritos em tupi, legados em especial por missionários, focalizando
também a influência da língua no português, e o nheengatu, foi em grande parte
responsável pela idéia, ainda hoje difundida, de que no Brasil havia o tupi, ou
tupi-guarani, língua extinta da qual se fala no passado, apagando-se a
existência das demais línguas.
Informações sobre línguas não tupi começaram a surgir no século XIX,
pelo trabalho de missionários e de estudiosos que mantiveram contato direto com
falantes nativos, por força de pesquisas voltadas para suas áreas particulares
de interesse. Incluem-se europeus (geógrafos, naturalistas, etnólocos), como
von den Steine, Wied-Neuwied, Martius, Castelnau, Koch-Grümberg, Manizer;
brasileiros: Couto Magalhães, Capistrano de Abreu, Visconde de Taunay, e
missionários como Val Floriana, A. Giaconi, Fidélis de Alviano, A. Kruse.
Os trabalhos desse período não tinham como objetivo central a língua
em si, mas eram voltados à catequese, no caso de missionários, ou aos
interesses específicos de cada pesquisador. Os estudos consistem, via de regra,
de listas lexicais, sendo raras as tentativas de descrição de aspectos
gramaticais, e as transcrições eram, com poucas exceções, predarias,
impressionísticas. No período, foi dada atenção a línguas não tupi, e os
materiais produzidos permitiram análises comparativas que basearam o trabalho de
classificação inicial de nossas línguas e, muitas vezes, são a única informação
existente sobre as hoje extintas. Quanto aos materiais sobre línguas indígenas
brasileiras produzidos até a primeira metade do século XX, cumpre notar que
alguns trabalhos, como o de Anchieta, sobre o tupi, o de Steinen sobre os
bakairi e o de Capistrado sobre o kaxinawá, são reconhecidos como mais
elucidativos do que muitos produzidos por lingüistas contemporâneos.
A preocupação com estudo científico das línguas indígenas brasileiras
aparece nos anos 1930, como os de José Oiticica, nos quais se criticava a
orientação existente e se preconizava a necessidade de proceder à documentação
sistemática dessas línguas. Na época, embora a lingüística estivesse em fase de
grande desenvolvimento no exterior, inexistia no Brasil. O quadro institucional
de nossas universidades só previa o ensino de línguas clássicas e literárias
modernas, numa orientação profissionalizante que excluía a pesquisa. O processo
de implementação da lingüística somente ocorreria a partir dos anos 1960 e, na
disciplina, o desenvolvimento de estudos das línguas indígenas foi retardado
por vários fatores, entre eles a vinda para o Brasil do Summer Institute of Linguistics (SIL), conhecido como Instituto
Linguístico de Verão, ou “Summer”, instituição missionária que usou o trabalho lingüístico
como roupagem e meio de desenvolver a catequese.
O ingresso do SIL no país ocorreu em fins dos anos 1950, através de
convênio com o Museu Nacional, e recebeu apoio no meio antropológico, pois
esperava-se que os lingüistas do Summer tomassem a si a tarefa de descrever as
línguas indígenas, “salvando-as” para a posteridade, e contribuindo para a
formação de lingüistas brasileiros. A última expectativa não se confirmou: os lingüistas
brasileiros que trabalham com línguas indígenas receberam formação no exterior
ou aqui, sob a orientação de brasileiros. Somente no início lingüistas do SIL
prestaram alguma colaboração, conduzindo cursos nas instituições a que o
Instituto esteve ligado – o Museu Nacional e a UnB – e participaram de outras
atividades acadêmicas, porém a tendência foi de afastamento em relação aos lingüistas
brasileiros. Quanto à documentação lingüística, houve contribuição do SIL, mas,
apesar de significativo, o material produzido ficou aquém do esperado,
considerando-se o período abrangido, as excelentes condições de pesquisa e o
tempo desprendido por seus lingüistas junto às comunidades falantes das
línguas. Embora a qualidade da produção seja variável, os resultados deixam a
desejar.
A partir da década de 1980 a lingüística indígena experimentou grande
desenvolvimento, com crescente número de lingüistas brasileiros engajados no
estudo de nossas línguas e na formação de especialistas, com aumento
quantitativo e qualitativo na produção de trabalhos. Grande parte os
especialistas estão envolvidos na formação de professores indígenas, incluindo
o treinamento em lingüística.
Atualmente, cerca de 180 línguas indígenas são faladas no Brasil, mas
não há absoluta certeza quanto ao número, devido às dificuldades inerentes à
definição técnica do que seja propriamente uma língua (em relação a dialeto,
formas antigas e modernas, etc.), agravadas pela carência de informações sobre
as línguas e seus falantes.
Estima-se que, nos 500 anos de colonização, umas mil línguas se
perderam pelo desaparecimento dos falantes, por epidemias, extermínio direto,
escravização, redução de territórios, destruição das condições de sobrevivência
e aculturação forçada, entre outros fatores que acompanham as frentes de
expansão do Brasil colônia até hoje. Exemplo atual é o avanço sobre a área Terra
do Sol, em Roraima, habitada por indígenas makuxi, wapixana, ingarikó e
taurepang. A extensão da perda pode ser visualizada pela localização atual de
grupos e línguas indígenas: estão concentrados no Amazonas, Acre, Pará,
Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Rondônia, Roraima, Tocantins
e, em menor proporção, noutros estados, tendo desparecido praticamente de toda
parte leste, de norte a sul do país, até em parte da Amazônia. Por exemplo, a
família lingüística botocudo, uma das mais extensas do Brasil, cujos falantes
ocupavam no passado a área entre o Rio Pardo, na Bahia, e o Rio Doce, em Minas
Gerais e Espírito Santo, está hoje reduzida a um único grupo, o krenak-nakrehé.
As sobreviventes línguas indígenas brasileiras apresentam grande
diversidade lingüística. A despeito de materiais muito deficitários, foi
possível estabelecer uma classificação genética dessas línguas, agrupando-as em
famílias e troncos lingüísticos.
O tronco tupi, estabelecido bem claramente, é um dos grandes agrupamentos,
ao lado do tronco macro-jê e das famílias aruák, karíb e pano. É constituído
por sete famílias genéticas: tupi-guarani (com 33 línguas e dialetos no
Brasil), monde (com 7 línguas), tuparí (com 3 línguas), juruna, mundurukú e
ramarána (cada uma com 2 línguas), incluindo ainda três línguas isoladas no
nível de família: awetí, sateré-mawé e puruborá. A família tupi-guarani
caracteriza-se por grande dispersão: suas línguas são faladas em diferentes
regiões do Brasil e em outros países da América do Sul (Bolívia, Peru,
Venezuela, Guiana Francesa, Colômbia, Paraguai e Argentina). As demais famílias
do tronco tupi estão todas localizadas no Brasil, ao sul do Rio Amazonas.
No tronco macro-jê, definido com base em evidências menos claras, são
incluídas cinco famílias genéticas: jê (com 27 línguas e dialetos), bororo (com
2 línguas), botocudo (com 1 língua), karajá e maxakali (com 3 línguas cada), e
ainda quatro línguas: guató, ofayé, rikbaktsá e yatê ou fulinô. As línguas (e
dialetos) filiadas a esse tronco, exclusivamente brasileiro, são faladas em
particular em áreas de campos e cerrados, do sul do Maranhão e do Pará, e
estados do Centro-Oeste e do Sul do país.
A família karib é representada no Brasil por 20 línguas, distribuídas
no norte do Rio Amazonas – Amapá, Roraima, Pará e Amazonas, e ao sul, ao longo
do Rio Xingu. Outras línguas dessa família soa faladas nas Guianas e na
Venezuela.
Dezessete línguas representam a família aruák (ou arawák) no Brasil,
sendo faladas nos estados de Amapá, Roraima, Acre, Amazonas, Mato Grosso e Mato
Grosso do Sul. A família inclui outras línguas faladas fora do Brasil.
A família pano abrange 13 línguas faladas no Brasil – Acre, Rondônia e
Amazonas –, ainda pouco estudadas, além das faladas no Peru e na Bolívia.
Outras famílias lingüísticas são: o tucano, com 11 línguas e vários
dialetos; arawá, com 7 línguas; maku, com 6 línguas, katukina e yanomámi, cada
uma com 4 línguas; txapakura e nambikwára, com 3 línguas cada; mura, com 2
línguas e gaikuru, com 1 língua falada no Brasil.
Há ainda 10 línguas indígenas classificadas como isoladas, isto é,
como constituindo tipos lingüísticos únicos: tikuna, irantxé/münku, trumái,
aikaná, arikapu, jabuti, kanoê e koaia ou kwazá.
Este rápido panorama sobre as línguas indígenas brasileiras que
sobreviveram ao século XX suscita a relevância de estudá-las e pesquisá-las,
considerando-se que a lingüística busca compreender a natureza da linguagem
humana, caracterizada pela unidade na diversidade, manifesta em cada língua de
forma particular.
Texto de Lucy Seki
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