A imagem visual que nos ocorre mais espontaneamente quando pensamos em índio é a de figuras nuas empenadas. Ao lado dos arcos e flechas, esta nudez emplumada os tem caracterizado sempre como o atributo mais peculiar.
Toda a copiosa documentação iconográfica que se vem acumulando desde o século das descobertas, os representa assim, invariavelmente envoltos em mantos de plumas ou profusamente adornados com enfeites de pena.
É provável que essa imagem esteja muito próxima da que os índios fazem de si próprios, como idealização mais alta, a de figuras engalanadas com uma paramentália de penas multicolores.
Desde os primeiros encontros entre índios e europeus, os adornos plumários suscitaram o interesse e a admiração dos observadores mais sensíveis, como a arte indígena mais elaborada. Pode-se mesmo datar o início deste interesse, já que o primeiro objeto recebido pelo descobridor foi aquele “sombreiro de pennas d’auves” que um marujo de Cabral trocou por carapuças, segundo o testemunho de Pero Vaz de Caminha. Mais tarde, tantas destas peças foram levadas à Europa que a quase totalidade dos artefatos indígenas quinhentistas existentes em museus é constituída por coifas e mantos dos Tupinambá.
Apesar disso, os ornamentos plumários raras vezes foram objeto de estudos etnológicos ou artísticos e em poucos casos mereceram a atenção que deveriam impor, como uma das mais altas criações estéticas dos nossos índios. Nas monografias etnológicas eles figuram no capítulo das vestimentas e adornos, ao lado da pintura de corpo, da tatuagem e dos ornatos móveis, na forma de frias descrições ergológicas de artefatos de penas, sem transmitir a mensagem estética que contêm. Ao etnocentrismo da maioria dos viajantes, naturalistas e mesmo etnólogos que trataram do tema, a arte plumária se afigurou como simplesmente exótica. Quando muito seria uma “arte primitiva” no sentido de simplista, ingênua, rudimentar ou de primeira origem. E dentro de perspectiva tão estreita era impossível alcançar uma verdadeira compreensão do valor e significação destas criações indígenas.
Entretanto, é na plumária que encontramos a atividade mais eminentemente artística dos nossos índios, aquela em que revelam os mais elaborados impulsos estéticos e mais vigorosas características de criação própria e singular. E é natural que assim seja, porque a plumagem dos pássaros, com sua variedade de formas e riqueza de colorido, constitui o material mais precioso e mais acabado, por assim dizer, que a natureza oferece aos índios para se exprimirem artisticamente. O seu maior interesse estético, por outro lado, está voltado para o embelezamento do próprio corpo. Da combinação daqueles recursos e desta tendência, resultaria a elaboração de uma técnica requintada que, associando penas e plumas a diversos outros materiais, permitiria criar obras de arte capazes de competir em beleza com os mesmos pássaros.
Algumas tribos só se utilizam de plumagem na forma e acabamento com que se apresentam na natureza. Tomam chumaços de plumas e penas selecionadas pela forma e colorido atraentes para colar ao corpo, introduzir no furo das orelhas, nariz ou lábios, ou ainda, para dispor sobre a cabeleira, obtendo efeito de meros enfeites aos quais não é dada elaboração técnica que permita tratá-los como criações artísticas.
Entre esta utilização simplesmente apropriativa de elementos que em estado natural já se recomendam como adornos e o desenvolvimento de uma verdadeira arte, se impõe a elaboração de uma tecnologia adequada aos materiais plumários, de todo um saber complexo sobre a fauna ornitológica e, sobretudo, um apuramento de sensibilidade para as combinações de cores e os arranjos de formas que só se alcançam através do esforço continuado de gerações.
Assim, só é legítimo falar de “arte plumária”, quando o valor estético das penas é superado por um esforço de imaginação, sensibilidade e virtuosismo, que permite construir com elas obras que valham por si próprias. Quando da atividade tecnológica resultam criações singulares capazes de suscitar emoções estéticas, pela harmonia da forma, pela felicidade da combinação cromática e, ainda, por uma consistência táctil suave e atrativa.
Diversas tribos brasileiras alcançaram tão alto aprimoramento neste campo que, com referência a seus adornos plumários, se pode falar de uma verdadeira arte. Suas criações satisfazem as mesmas exigências de desenvolvimento técnico e impulso estético original bem-sucedido que, aplicados a outros materiais, deram lugar a todas as artes.
Exploraram com maestria a exuberância da fauna ornitológica das regiões em que viviam, tirando partido de sua riqueza de formato e colorido. Em suas obras se encontram exemplos magníficos de utilização da imponência das penas longas da ema e do jaburu, das cores vivas das araras, da alvura das graças, do matizado da plumagem dos gaviões e mutuns, da delicadeza de formato e colorido dos papos de tucano e dos galos da serra, dos efeitos iridescentes das plumas de saís, cotingas e pipras. Algumas tribos levaram adiante este requinte, provocando a mudança do colorido original das penas de certas aves para obter matizes mais claros e brilhantes.
A fragilidade do material plumário foi um desafio vencido galhardamente por prodígios de destreza no manuseio das penas, aliado ao completo domínio dos procedimentos técnicos mais meticulosos, cujas exigências começam na coleta das penas e se acentuam em cada etapa até a conclusão da obra.
As penas e plumas a utilizar em certos adornos devem ser colhidas uma a uma ou aos tufos, com rigorosa uniformidade e atendendo-se ao formato que terá a peça. O arranjo destes elementos ao longo de cordéis para formar as fieiras ou sua colagem a uma base, no caso dos mosaicos, tem requisitos de apuramento técnico e coordenação motora que só podem ser obtidos após longo treinamento. Atente-se, por exemplo, para a confecção de uma simples fieira de plumas de papo de tucano. Os minúsculos canhões devem ser desbastados do froxel em proporções iguais; cumpre dobrá-los com segurança empregando pressão uniforme para não partirem e ajustá-los ao cordel-base guardando distâncias exatas uns dos outros. O amarramento dos canhões deve fazer-se com nós diminutos e rigorosamente iguais. Só atendendo a estes e outros requisitos se pode obter as características de acabamento indispensáveis para que a fieira possa ser combinada a outras formando um adorno que se conforme ao corpo com a mesma leveza e naturalidade com que antes as plumas se assentavam no pássaro.
A arte plumária dos índios do Brasil apresenta certas uniformidades essenciais derivadas do uso dos mesmos materiais, de certas identidades tecnológicas e do caráter formalista que, em conjunto, a distinguem de outras, como a plumária predominantemente figurativa e altamente desenvolvida dos povos andinos e mexicanos. Sobrelevam, porém, a estas uniformidades, tão evidentes discrepâncias que não podemos falar legitimamente de um estilo plumário único dos índios brasileiros. O que se impõe à observação é, ao contrário, a presença de estilos diversos, cada um dos quais caracterizado por atributos tão peculiares que permitem identificar com bastante precisão a origem de uma peça qualquer.
Estes padrões estilísticos em alguns casos correspondem a uma única tribo, detentora de um estilo próprio dentro do qual conforma todas as suas criações. Outras vezes se difundem por áreas etnográficas inteiras, tornando-se comuns a tribos diferentes não só linguisticamente mas por outros característicos.
O que particulariza estes estilos são certas qualidades diacríticas, como modalidades de procedimento técnico, o uso de certas associações constantes de materiais, determinadas variantes de combinação cromática ou modos próprios de obter efeitos formais. Mas estes atributos, por si somente, não definem os estilos plumários. Cada um deles, além de uma combinação peculiar destas qualidades, tem de próprio uma individualidade de expressão que se imprime em cada peça e se deixa reconhecer quase fisionomicamente, mas que se não pode descrever com precisão.
A associação da plumária aos traçados ou aos tecidos lhe empresta características tão peculiares que pode servir de critério para distinguir duas famílias estilísticas diversas.
A primeira é representada principalmente por tribos do norte do Amazonas, como os Apalai, Galibi, Taulipung, Waiwai e outros que, montando seus adornos plumários em imponentes armações trançadas, conseguem efetio majestoso, mas não parecem sensíveis aos requintes de acabamento. Outros exemplos de estilo plumário voltado para a suntuosidade, na base da associação com traçados e varetas, se encontra entre os Borôro, Karajá e Tapirapé. Estas tribos manifestam uma tendência pronunciada para a utilização das penas longas montadas em armações rígidas, alcançando dimensões avantajadas, de magnífico efeito cênico. Seus diademas rotiformes ou seus largos leques de occipício sugerem, pela aparatosidade, a paramentália de grandes cerimônias de autoafirmação tribal.
Os mais altos representantes da segunda família estilística, baseada na associação da plumagem aos tecidos, são alguns grupos Tupi e, em particular, os Munduruku e os Urubu. Suas criações se distinguem pela flexibilidade que permite aplicá-las diretamente ao corpo, pelos requintes de acabamento e pela procura de efeitos cromáticos sutis em peças de dimensões diminutas. Enquanto os estilos anteriormente referidos parecem voltados para a suntuosidade e o esplendor, estes sugerem a delicadeza das filigranas e a sensibilidade e virtuosismo das iluminuras.
É tarefa difícil situar as criações estéticas de grupos tribais nas classificações das artes elaboradas originalmente para nossa sociedade, tão mais complexa. A arte plumária apresenta, por isso mesmo, tanto qualidades das chamadas artes menores, como o caráter ornamental e reiterativo, quando atributos geralmente conferidos às belas artes com sua natureza essencialmente suntuária.
Não é repetitiva no sentido mecânico das artes industriais, mas reiterativas, porque cumpre ao plumista performar sua obra dentro de padrões previamente estabelecidos e com pequena margem para inovações. Uma coifa de penas é semelhante numa infinidade de detalhes, todos rigidamente prescritos, a qualquer outra coifa da mesma tribo. Entretanto, na aldeia onde foi colhida ninguém teria dúvidas ou dificuldade para indicar a pessoa que a fez. O caráter reiterativo não impede, pois, nesse caso, que o artista se imprima em sua obra, fazendo dela uma criação original e única.
Participa da natureza das artes ornamentais porque é essencialmente um esforço para emprestar beleza e majestade ao corpo humano. Ao contrário de uma escultura, por exemplo, uma peça de plumária só alcança plena expressividade quando aplicada ao corpo, como um diadema aberto sobre a fronte ou um manto caído sobre o dorso.
A arte plumária se distingue das artes aplicadas, por seu caráter não utilitário. As técnicas em que se baseia e os esforços que coordena foram desenvolvidos e encontram realização como fins em si mesmos. Não são disciplinadas pelo respeito a uma utilidade prática imediata, como ocorre com a maioria das atividades artísticas tribais, neste nível de desenvolvimento. O oleiro que modela um vaso esforçando-se para exprimir com o barro suas emoções estéticas, jamais pode esquecer que sua obra deverá conter um líquido e, eventualmente, ir ao fogo. O cesteiro que trança uma esteira e procura emprestar-lhe maior beleza, não pode ignorar também sua finalidade de uso.
Enquanto naquelas atividades artísticas tribais a procura de beleza é o acessório, o dispensável em face da finalidade utilitária da obra, na arte plumária ela é o fundamental, o elemento imperativo. E seu caminho para alcançá-la é, na maioria dos casos, o dos arranjos puramente formais, despidos de intenção simbólica ou figurativa.
Embora frequentemente associada a diversas esferas da cultura, a plumária jamais perde seu caráter de pura expressão artística. Ao contrário, por ser a mais refinada criação estética de um povo é que pode servir de insígnia aos seus líderes religiosos, simbolizar o poder dos seus chefes ou constituir o apanágio dos heróis guerreiros. Nestes casos não passa a constituir mero item do cerimonial religioso, do simbolismo político ou guerreiro, simplesmente empresta a estes campos o seu prestígio de arte realizada que sintetiza os ideais estéticos de um povo.
Nesta linguagem muda de conteúdos manifestos mas tão altamente estéticos, é que os índios do Brasil exprimem mais vigorosamente sua alegria de viver, a grandiosidade de seus cerimoniais e, sobretudo, a oportunidade de realização estética de que gozam enquanto puderam manter sua autonomia cultural.
Texto de Darcy Ribeiro e Bertha Ribeiro
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