Sem dúvida alguma, Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade, permeia
a mente de muitos brasileiros. O autor, após colher material necessário sobre o
folclore brasileiro e mitos indígenas, escreveu a “rapsódia”, em apenas duas
semanas no final de 1926, numa fazenda de sua família em Araraquara – SP,
publicando-o em 1928.
Com liberdade poética, inspirou-se no
personagem principal dos povos indígenas Taurepang, Arekuna, Wapichana, Macuxi,
Ingarikó e Pemon, entre outros. Mas Mário nunca teve contato direto com nenhum
desses povos indígenas, sua fonte foi importada diretamente da Alemanha e em
alemão, que mesclou a outras de Capistrano de Abreu, Couto Magalhães, Pereira
da Costa e relatos orais.
Makunaima foi apresentado aos não-indígenas pelo etnólogo alemão
Theodor Koch-Grünberg, que viajou, entre 1911 e 1913, pela região da tríplice
fronteira entre Brasil, Venezuela e Guiana, no monte Roraima, seguindo até o rio
Orenoco, na Venezuela, Grünberg colheu músicas, artefatos, imagens e muitas
histórias. Estas, narradas pelos indígenas Akúli, do povo Arekuná (Yekuana) e
Mayuluaipu, do povo Taulipanque (Taurepang), foram descritas no volume II de
uma coletânea de 5, com o título: “Von Roraima zum Orinoco” (Do Roraina ao
Orenoco), publicado em 1916, em Berlim.
É fato que Mário de Andrade foi um gênio
da literatura brasileira e Macunaíma
um ícone para o modernismo no Brasil, mas acredito que se ele tivesse conhecido
parte da cultura dos povos de onde o mito se originou, a história talvez teria
seguido outro rumo, quem sabe até com o mesmo sucesso.
Reescrevo pequeno resumo da história de
Macunaíma, usando palavras de Mário e, claro, a mesma liberdade poética que ele
usou.
Nasceu de parto normal no fundo da mata
virgem no Amazonas, Macunaíma, filho de uma índia Tapanhunas (da Silva) com o
senhor Medo da Noite (da Silva). Este curumim veio ao mundo numa noite escura e
silenciosa, à beira do rio Uraricuera (em Roraima). Ao amanhecer, Tapanhunas
inspecionou minuciosamente sua cria enquanto ele dormia grudado no peito. Que susto
quando viu a cor do curumim! Era preto retinto, com pernas tortas e cabeça
rombuda. Isto de imediato a preocupou, pois segundo as tradições indígenas, uma
criança defeituosa traria problemas para o povo numa batalha.
A mãe ficou triste imaginando o que
sucederia caso o curumim fosse cego. Ansiosa, resolveu acordar o menino. Ao ele
abrir os olhos, a mãe surpreendeu-se mais uma vez: o menino possuía um belo par
de olhos azuis. Que alívio! Aqueles lindos olhos azuis, indubitavelmente o
salvariam das formigas assassinas.
O herói subnutrido de nossa gente
precisava de poderes especiais para compensar a falta de sorte e poder
sobreviver neste mundão desconhecido. Sua mãe pendurou logo o muiraquitã da
tribo das amazonas (talismã talhado em rocha esverdeada, na forma de animais ou
pessoas) no pescoço do menino. Depois, Macunaíma pôs o pé na estrada, viveu
peripécias e seus feitos se fizeram conhecidos. Recebeu, então, atributos de
trapaceiro, malandro, preguiçoso, individualista, matreiro, mulherengo e
mentiroso.
O herói de Mário viajou por muitos
lugares, conseguindo tudo o que desejava. Já satisfeito, retornou ao Amazonas e
transformou-se na constelação Ursa Maior...
Mas o verdadeiro Makunaíma indígena está
muito além das façanhas do Macunaíma de Mário, pois Makunaíma pertence a outro
mundo, bem diferente do de Macunaíma. Makunaíma faz parte do tempo, do espaço,
do nosso universo mítico e cultural desde o início do mundo: é a figura mais
importante quando se trata da nossa ancestralidade. Foi ele que, depois do
grande fogo que destruiu tudo, refez os indígenas e lhes devolveu a vida.
Nosso grande guerreiro protetor ainda
habita o monte Roraima e podemos ver seus feito sem muitos lugares por onde
passou – seja por benevolência, brincadeira ou capricho seu.
É importante que o povo brasileiro
conheça mais o próprio país, tão imenso, com uma diversidade maior ainda. Existem
mais de 230 povos indígenas espelhados em quase todos os Estados da Federação,
cada um deles com suas histórias, língua, pintura e traços fisionômicos diferentes.
Diferenças que devem ser respeitadas, afinal são elas que nos fazem tão ricos.
É preciso compreender que cada povo
indígena tem seu universo peculiar e que suas histórias, personagens ou o
criador de todas as coisas recebe nosso respeito, assim como Jesus e os santos
do mundo cristão.
Não desrespeitamos ou menosprezamos o
sagrado e a crença dos outros povos, mesmo daqueles que não conhecemos. O sagrado
é parte integral da cultura indígena durante toda a vida, e a vemos em tudo o
que vive. A terra, o rio, as florestas, os campos naturais, os animais, tudo
tem a presença do Criador. Nossas histórias tradicionais estão carregadas de
símbolos e significados, fazendo parte de nossa educação e formação como seres
inseridos no mundo. Essa ligação íntima, necessária ao equilíbrio da vida,
funde o mundo físico e o espiritual de forma tão homogênea que nos torna seres
completos.
Makunaíma é o pajé que nos trouxe o
peixe e a farinha, tristezas e alegrias, uma terra linda e um universo cheio de
significados. É o guerreiro que vive no topo do monte Roraima com suas armas,
vigiando o mundo e o universo celeste, e protegendo os povos que ele conhece.
Texto de Cristino Wapichana
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