domingo, 11 de dezembro de 2011

PERSPECTIVISMO AMERÍNDIO


Se pudéssemos caracterizar em poucas palavras uma atitude básica das culturas indígenas, diríamos que as relações entre a sociedade humana e os componentes de seu ambiente são pensadas e vividas como relações sociais, isto é, relações entre pessoas. O saber indígena, se está fundado como o nosso próprio em uma teoria instrumental das relações de causalidade, está associado à imagem de um universo comandado pelas categorias de agência e da intencionalidade, isto é, depende de uma experiência sociomórfica do cosmo: a “física” e a “semântica” indígenas são ontologicamente coextensivas e epistemologicamente co-intensivas. A natureza não é “natural”, isto é, passiva, objetiva, neutra e muda – os humanos não têm o monopólio da posição de agente e sujeito, não são o único foco da voz ativa no discurso cosmológico.

Se a categoria que comanda as relações entre homem e natureza é, para a modernidade, a categoria da produção, concebida como ato prometeico de subordinação da matéria ao desígnio humano, para as sociedades amazônicas a categoria paradigmática é a de reciprocidade, isto é, a comunicação entre sujeitos que se interconstituem no e pelo ato da troca – troca que pode ser violenta e mortal, mas que não pode deixar de ser social.

A “reprodução” das sociedades indígenas é assim concebida e vivida sob o signo de uma circulação de propriedades simbólicas entre os humanos e os demais habitantes do cosmos, e não por analogia com a produção de bens materiais a partir de uma natureza informe. Se as ideologias modernas tendem a ver as sociedades indígenas, para bem ou para mal, como parte da natureza – mas isto é verdade para toda a sociedade humana –, podemos então dizer que as culturas indígenas tendem a ver a natureza como parte da sociedade, ou antes, mergulhada, tanto quanto o mundo humano, em um meio universalmente social – o que não é menos universalmente verdadeiro.

O verdadeiro problema, portanto, não é determinar a relação das sociedades indígenas com a nossa Natureza; o problema é saber como as sociedades indígenas, ao se auto-determinarem conceitualmente, constituem suas próprias dimensões de exterioridade. Cabe, então, indagar: como a questão se coloca para os índios?

Tomei emprestado ao vocabulário filosófico um termo para qualificar aspecto marcante de várias, talvez de todas as culturas nativas do Novo Mundo: seu PERPECTIVISMO COSMOLÓGICO. Trata-se da noção de que o mundo é povoado de um número indefinitamente grande de espécies dotadas de consciência e cultura. Isso está associado à idéia de que a forma manifesta de cada espécie é envoltório a esconder uma forma interna humana, normalmente visível apenas aos olhos da própria espécie ou de certos seres transespecíficos, como os xamãs. Essa forma interna é o espírito do animal: uma intencionalidade formalmente idêntica à consciência humana, materializada em esquema corporal humano oculto sob a máscara animal.

Até aqui, nada de muito característico: a idéia de que a espécie humana não é um caso à parte dentro do mundo, e de que há mais pessoas no céu e na terra do que sonham nossas antropologias, é muito difundida entre as culturas tradicionais de todo o planeta. O que distingue as cosmologias ameríndias é um desenvolvimento sui generis desta idéia, a saber, a afirmação de cada uma dessas espécies é dotada de um ponto de vista singular, ou melhor, é constituída como um ponto de vista singular.

Assim, o modo como os seres humanos vêem os animais e outras subjetividades que povoam o universo – deuses, espíritos, mortos, habitantes de outros níveis cósmicos, plantas, fenômenos meteorológicos, acidentes geográficos, objetos e artefatos –, é diverso do modo como esses seres vêem os humanos e vêem a si mesmos. Cada espécie de ser, a começar pela nossa própria, vê-se a si mesma como humana. Assim, as onças se vêem como gente: cada onça individual vê a si mesma e a seus semelhantes como seres humanos, isto é, como organismos anatômica e funcionalmente idênticos aos nossos. Além disso, cada espécie ou tipo de ser vê certos elementos-chave de seu ambiente como se fossem objetos culturalmente elaborados, como suportes de uma visada humana: o sangue dos animais que matam é visto pelas onças como cerveja de mandioca, o barreiro em que se espojam as antas é visto como uma grande casa cerimonial, os grilos que os espectros os mortos comem são vistos por estes como peixes assados, etc.

Em contrapartida, os animais não vêem os humanos como humanos. As onças, assim, nos vêem como animais de presa: porcos selvagens, por exemplo. É por isso que as onças nos atacam e devoram, pois todo ser humano que se preza aprecia a carne de porco selvagem. Quanto aos porcos selvagens (isto é, aqueles seres que vemos como porcos selvagens), esses também se vêem como humanos, olhando, por exemplo, as frutas silvestres que comem como plantas cultivadas, enquanto a nós humanos como espíritos canibais – pois os matamos e comemos. Em suma: os humanos, em condições normais, vêem os humanos como humanos e os animais como animais (e os espíritos como espíritos, ou melhor, não os vêem; ver estes seres usualmente invisíveis é um signo seguro de que as “condições” não são normais). Os animais predadores e os espíritos, de seu lado, vêem os humanos como animais de presa, ao passo que os animais de presa vêem os humanos como espíritos ou como animais predadores.

Essas idéias possuem fundamento na mitologia. Se há uma noção virtualmente universal no pensamento ameríndio, é aquela de um estado originário de co-acessibilidade entre os humanos e os animais. As narrativas míticas são povoadas de seres cuja forma, nome e comportamento misturam inextricavelmente atributos humanos e não-humanos, em contexto comum de intercomunicabilidade idêntica ao que define o mundo intra-humano atual.

O propósito da mitologia, com efeito, é narrar o fim desse estado pré-cosmológico: trata-se da célebre separação entre “cultura” e “natureza” analisada na monumental tetralogia Mitológicas de Lévi-Strauss. Mas não se trata aqui de uma diferenciação do humano a partir do animal, como é o caso em nossa mitologia evolucionista moderna. A condição original, comum aos humanos e animais, não é a animalidade mas a humanidade. A grande divisão mítica mostra menos a cultura se distinguindo da natureza que a natureza se afastando da cultura: os mitos contam como os animais perderam os atributos herdados ou mantidos pelos humanos; os animais são ex-humanos, e não os humanos ex-animais. Se nossa antropologia popular vê a humanidade como erguida sobre alicerces animais, normalmente ocultos pela cultura – tendo outrora sido “completamente” animais, permanecendo, “no fundo”, animais –, o pensamento indígena conclui ao contrário que, tendo outrora sido humanos, os animais e outros seres do cosmos continuam a ser humanos, mesmo que de modo não-evidente.

Mas isso suscita uma questão crucial. Se os seres não-humanos são pessoas e têm almas, em que se distinguem dos humanos? E por que, se são gente, não nos vêem como gente? Por que seus pontos de vista são diversos do nosso?

A idéia de mundo que compreende uma multiplicidade de posições subjetivas traz logo à mente a noção de “relativismo cultural”. E de fato, menções diretas ou indiretas ao relativismo são freqüentes nas descrições antropológicas das cosmologias ameríndias. Como os antropólogos, os índios seriam relativistas culturais, só que estenderiam “animisticamente” este relativismo a outras espécies além da nossa: cada espécie veria o mundo à sua maneira, exatamente como, para os antropólogos, cada cultura humana vê o mundo à sua. (Não deixa de ser curioso que cada um, espécie ou cultura, veja o mundo a seu próprio modo, mas que os antropólogos e os índios o vejam do mesmo modo...)

Mas há aqui um mal-entendido do qual se pode tirar lições interessantes. O relativismo cultural moderno, ao supor a equivalência entre uma multiplicidade de representações sobre o mundo, pressupõe um mesmo mundo subjacente a esta multiplicidade: uma natureza “sob” várias culturas. Mas basta considerar o que dizem as etnografias para perceber que é o exato inverso que se passa no caso ameríndio: todo os seres vêem ou “representam” o mundo da mesma maneira – o que muda é o mundo que eles vêem. Os animais utilizam as mesmas idéias e valores que os humanos: sues mundos, como o nosso, giram em torno da caça e da pesca, da cozinha e das bebidas fermentadas, dos ritos e da guerra, dos xamãs, chefes, espíritos, etc. “O ser humano se vê a si mesmo como tal; a lua, a serpente, o jaguar e a mãe da varíola o veem, contudo, como um tapir ou um pecari, que eles matam”, anota o etnógrafo G.  Baer sobre os Matsiguenga da selva peruana. Só poderia ser assim, pois, sendo gente em seu próprio departamento, seres não-humanos como a lua, a serpente ou o jaguar vêem as coisas como “a gente” vê. Mas as coisas que eles vêem são outras: o que para nós é sangue, para o jaguar é cauim; o que para as almas dos mortos é um cadáver podre, para nós é a mandioca fermentando; o que vemos como um barreiro lamacento, para as antas é uma grande casa cerimonial.

O perspectivismo não é um relativismo, mas um multinaturalismo. O relativismo cultural, um “multiculturalismo”, supõe uma diversidade de representações subjetivas e parciais, incidentes sobre uma natureza externa, uma e total, indiferente à representação; os ameríndios propõem oposto: uma unidade representativa aplicada indiferentemente sobre uma diversidade real. Uma só “cultura”, múltiplas “naturezas”; epistemologia constante, ontologia variável – o perspectivismo é um multinaturalismo, pois uma perspectiva não é uma representação.

Uma perspectiva não é uma representação porque as representações são propriedades do espírito, mas o pondo de vista está no corpo. Ser capaz de ocupar o ponto de vista é sem dúvida uma potência da alma, e os não-humanos são sujeitos na medida em que têm (ou são) um espírito; mas a diferença entre os pontos de vista – e um ponto de vista não é senão diferença – não está na alma. Esta, formalmente idêntica através das espécies, só enxerga a mesma coisa em toda parte; a diferença deve então ser dada pela especificidade dos corpos. Isso permite responder à pergunta feita acima: por que, sendo gente, os não-humanos não nos vêem como gente?

Os animais vêem da mesma forma que nós coisas diversas do que vemos porque seus corpos são diferentes dos nossos. Não estou me referindo às diferenças de fisiologia – quanto a isso, os ameríndios reconhecem uma uniformidade básica dos corpos –, mas aos afetos, afecções ou capacidades que singularizam cada espécie de corpo: o que ele come, como se move, como se comunica, onde vive, se é gregário ou solitário... A diferença de afecção, embora possa ser enganadora, pois uma figura de humano, por exemplo, pode estar ocultando uma afecção-jaguar. O que estou chamando de “corpo”, portanto, não é sinônimo de fisiologia distintiva ou de anatomia característica; é um conjunto de maneiras ou modos de ser que constituem um habitus. Entre a subjetividade formal das almas e a materialidade substancial dos organismos, há esse plano central que é o corpo como feixe de afecções e capacidades, que é a origem das perspectivas.

Longe do essencialismo espiritual do relativismo, o perspectivismo é um maneirismo corporal. A diferença dos corpos, entretanto, só é apreensível de um ponto de vista exterior, para outrem, uma vez que, para si mesmo, cada tipo de ser tem a mesma forma (a forma genética do humano): os corpos são o modo pelo qual a alteridade é apreendida como tal. Não vemos, em condições normais, os animais como gente, e reciprocamente, porque nossos corpos respectivos (e perspectivos) são diferentes.

Texto de Eduardo Viveiros de Castro

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