Se pudéssemos caracterizar em poucas palavras uma atitude básica das
culturas indígenas, diríamos que as relações entre a sociedade humana e os
componentes de seu ambiente são pensadas e vividas como relações sociais, isto
é, relações entre pessoas. O saber indígena, se está fundado como o nosso
próprio em uma teoria instrumental das relações de causalidade, está associado
à imagem de um universo comandado pelas categorias de agência e da intencionalidade,
isto é, depende de uma experiência sociomórfica do cosmo: a “física” e a “semântica”
indígenas são ontologicamente coextensivas e epistemologicamente co-intensivas.
A natureza não é “natural”, isto é, passiva, objetiva, neutra e muda – os humanos
não têm o monopólio da posição de agente e sujeito, não são o único foco da voz
ativa no discurso cosmológico.
Se a categoria que comanda as relações entre homem e natureza é, para
a modernidade, a categoria da produção,
concebida como ato prometeico de subordinação da matéria ao desígnio humano,
para as sociedades amazônicas a categoria paradigmática é a de reciprocidade, isto é, a comunicação
entre sujeitos que se interconstituem no e pelo ato da troca – troca que pode
ser violenta e mortal, mas que não pode deixar de ser social.
A “reprodução” das sociedades indígenas é assim concebida e vivida sob
o signo de uma circulação de propriedades simbólicas entre os humanos e os
demais habitantes do cosmos, e não por analogia com a produção de bens
materiais a partir de uma natureza informe. Se as ideologias modernas tendem a
ver as sociedades indígenas, para bem ou para mal, como parte da natureza – mas
isto é verdade para toda a sociedade humana –, podemos então dizer que as
culturas indígenas tendem a ver a natureza como parte da sociedade, ou antes,
mergulhada, tanto quanto o mundo humano, em um meio universalmente social – o que
não é menos universalmente verdadeiro.
O verdadeiro problema, portanto, não é determinar a relação das
sociedades indígenas com a nossa Natureza; o problema é saber como as
sociedades indígenas, ao se auto-determinarem conceitualmente, constituem suas
próprias dimensões de exterioridade. Cabe, então, indagar: como a questão se
coloca para os índios?
Tomei emprestado ao vocabulário filosófico um termo para qualificar
aspecto marcante de várias, talvez de todas as culturas nativas do Novo Mundo:
seu PERPECTIVISMO COSMOLÓGICO. Trata-se
da noção de que o mundo é povoado de um número indefinitamente grande de
espécies dotadas de consciência e cultura. Isso está associado à idéia de que a
forma manifesta de cada espécie é envoltório a esconder uma forma interna
humana, normalmente visível apenas aos olhos da própria espécie ou de certos
seres transespecíficos, como os xamãs. Essa forma interna é o espírito do
animal: uma intencionalidade formalmente idêntica à consciência humana,
materializada em esquema corporal humano oculto sob a máscara animal.
Até aqui, nada de muito característico: a idéia de que a espécie
humana não é um caso à parte dentro do mundo, e de que há mais pessoas no céu e
na terra do que sonham nossas antropologias, é muito difundida entre as
culturas tradicionais de todo o planeta. O que distingue as cosmologias
ameríndias é um desenvolvimento sui
generis desta idéia, a saber, a afirmação de cada uma dessas espécies é
dotada de um ponto de vista singular, ou melhor, é constituída como um ponto de
vista singular.
Assim, o modo como os seres humanos vêem os animais e outras
subjetividades que povoam o universo – deuses, espíritos, mortos, habitantes de
outros níveis cósmicos, plantas, fenômenos meteorológicos, acidentes
geográficos, objetos e artefatos –, é diverso do modo como esses seres vêem os
humanos e vêem a si mesmos. Cada espécie de ser, a começar pela nossa própria,
vê-se a si mesma como humana. Assim, as onças se vêem como gente: cada onça
individual vê a si mesma e a seus semelhantes como seres humanos, isto é, como
organismos anatômica e funcionalmente idênticos aos nossos. Além disso, cada
espécie ou tipo de ser vê certos elementos-chave de seu ambiente como se fossem
objetos culturalmente elaborados, como suportes de uma visada humana: o sangue
dos animais que matam é visto pelas onças como cerveja de mandioca, o barreiro
em que se espojam as antas é visto como uma grande casa cerimonial, os grilos
que os espectros os mortos comem são vistos por estes como peixes assados, etc.
Em contrapartida, os animais não vêem os humanos como humanos. As onças,
assim, nos vêem como animais de presa: porcos selvagens, por exemplo. É por
isso que as onças nos atacam e devoram, pois todo ser humano que se preza
aprecia a carne de porco selvagem. Quanto aos porcos selvagens (isto é, aqueles
seres que vemos como porcos selvagens), esses também se vêem como humanos,
olhando, por exemplo, as frutas silvestres que comem como plantas cultivadas,
enquanto a nós humanos como espíritos canibais – pois os matamos e comemos. Em suma:
os humanos, em condições normais, vêem os humanos como humanos e os animais
como animais (e os espíritos como espíritos, ou melhor, não os vêem; ver estes
seres usualmente invisíveis é um signo seguro de que as “condições” não são
normais). Os animais predadores e os espíritos, de seu lado, vêem os humanos
como animais de presa, ao passo que os animais de presa vêem os humanos como
espíritos ou como animais predadores.
Essas idéias possuem fundamento na mitologia. Se há uma noção
virtualmente universal no pensamento ameríndio, é aquela de um estado
originário de co-acessibilidade entre os humanos e os animais. As narrativas
míticas são povoadas de seres cuja forma, nome e comportamento misturam
inextricavelmente atributos humanos e não-humanos, em contexto comum de intercomunicabilidade
idêntica ao que define o mundo intra-humano atual.
O propósito da mitologia, com efeito, é narrar o fim desse estado
pré-cosmológico: trata-se da célebre separação entre “cultura” e “natureza”
analisada na monumental tetralogia Mitológicas
de Lévi-Strauss. Mas não se trata aqui de uma diferenciação do humano a partir
do animal, como é o caso em nossa mitologia evolucionista moderna. A condição
original, comum aos humanos e animais, não é a animalidade mas a humanidade. A grande
divisão mítica mostra menos a cultura se distinguindo da natureza que a
natureza se afastando da cultura: os mitos contam como os animais perderam os
atributos herdados ou mantidos pelos humanos; os animais são ex-humanos, e não
os humanos ex-animais. Se nossa antropologia popular vê a humanidade como
erguida sobre alicerces animais, normalmente ocultos pela cultura – tendo outrora
sido “completamente” animais, permanecendo, “no fundo”, animais –, o pensamento
indígena conclui ao contrário que, tendo outrora sido humanos, os animais e
outros seres do cosmos continuam a ser humanos, mesmo que de modo não-evidente.
Mas isso suscita uma questão crucial. Se os seres não-humanos são
pessoas e têm almas, em que se distinguem dos humanos? E por que, se são gente,
não nos vêem como gente? Por que seus pontos de vista são diversos do nosso?
A idéia de mundo que compreende uma multiplicidade de posições
subjetivas traz logo à mente a noção de “relativismo cultural”. E de fato,
menções diretas ou indiretas ao relativismo são freqüentes nas descrições
antropológicas das cosmologias ameríndias. Como os antropólogos, os índios
seriam relativistas culturais, só que estenderiam “animisticamente” este relativismo
a outras espécies além da nossa: cada espécie veria o mundo à sua maneira,
exatamente como, para os antropólogos, cada cultura humana vê o mundo à sua.
(Não deixa de ser curioso que cada um, espécie ou cultura, veja o mundo a seu próprio
modo, mas que os antropólogos e os índios o vejam do mesmo modo...)
Mas há aqui um mal-entendido do qual se pode tirar lições
interessantes. O relativismo cultural moderno, ao supor a equivalência entre uma
multiplicidade de representações sobre o mundo, pressupõe um mesmo mundo subjacente a esta multiplicidade: uma natureza “sob”
várias culturas. Mas basta considerar o que dizem as etnografias para perceber
que é o exato inverso que se passa no caso ameríndio: todo os seres vêem ou “representam”
o mundo da mesma maneira – o que muda
é o mundo que eles vêem. Os animais
utilizam as mesmas idéias e valores que os humanos: sues mundos, como o nosso,
giram em torno da caça e da pesca, da cozinha e das bebidas fermentadas, dos
ritos e da guerra, dos xamãs, chefes, espíritos, etc. “O ser humano se vê a si mesmo como tal; a lua, a serpente, o jaguar e
a mãe da varíola o veem, contudo, como um tapir ou um pecari, que eles matam”,
anota o etnógrafo G. Baer sobre os Matsiguenga
da selva peruana. Só poderia ser assim, pois, sendo gente em seu próprio
departamento, seres não-humanos como a lua, a serpente ou o jaguar vêem as
coisas como “a gente” vê. Mas as
coisas que eles vêem são outras: o
que para nós é sangue, para o jaguar é cauim; o que para as almas dos mortos é
um cadáver podre, para nós é a mandioca fermentando; o que vemos como um
barreiro lamacento, para as antas é uma grande casa cerimonial.
O perspectivismo não é um relativismo, mas um multinaturalismo. O relativismo cultural, um “multiculturalismo”,
supõe uma diversidade de representações subjetivas e parciais, incidentes sobre
uma natureza externa, uma e total, indiferente à representação; os ameríndios
propõem oposto: uma unidade representativa aplicada indiferentemente sobre uma
diversidade real. Uma só “cultura”, múltiplas “naturezas”; epistemologia
constante, ontologia variável – o perspectivismo é um multinaturalismo, pois
uma perspectiva não é uma representação.
Uma perspectiva não é uma representação porque as representações são
propriedades do espírito, mas o pondo de vista está no corpo. Ser capaz de
ocupar o ponto de vista é sem dúvida uma potência da alma, e os não-humanos são
sujeitos na medida em que têm (ou são) um espírito; mas a diferença entre os
pontos de vista – e um ponto de vista não é senão diferença – não está na alma.
Esta, formalmente idêntica através das espécies, só enxerga a mesma coisa em
toda parte; a diferença deve então ser dada pela especificidade dos corpos. Isso
permite responder à pergunta feita acima: por que, sendo gente, os não-humanos
não nos vêem como gente?
Os animais vêem da mesma
forma que nós coisas diversas do que
vemos porque seus corpos são diferentes dos nossos. Não estou me referindo às
diferenças de fisiologia – quanto a isso, os ameríndios reconhecem uma
uniformidade básica dos corpos –, mas aos afetos, afecções ou capacidades que
singularizam cada espécie de corpo: o que ele come, como se move, como se
comunica, onde vive, se é gregário ou solitário... A diferença de afecção,
embora possa ser enganadora, pois uma figura de humano, por exemplo, pode estar
ocultando uma afecção-jaguar. O que estou chamando de “corpo”, portanto, não é
sinônimo de fisiologia distintiva ou de anatomia característica; é um conjunto
de maneiras ou modos de ser que constituem um habitus. Entre a subjetividade formal das almas e a materialidade
substancial dos organismos, há esse plano central que é o corpo como feixe de
afecções e capacidades, que é a origem das perspectivas.
Longe do essencialismo espiritual do relativismo, o perspectivismo é
um maneirismo corporal. A diferença dos corpos, entretanto, só é apreensível de
um ponto de vista exterior, para outrem, uma vez que, para si mesmo, cada tipo
de ser tem a mesma forma (a forma genética do humano): os corpos são o modo
pelo qual a alteridade é apreendida como tal. Não vemos, em condições normais,
os animais como gente, e reciprocamente, porque nossos corpos respectivos (e
perspectivos) são diferentes.
Texto de Eduardo Viveiros de Castro
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