sábado, 16 de abril de 2011

RECUPERAÇÃO DA ECONOMICA TRADICIONAL

A economia dos povos andinos era eminentemente solidária, e perdurou pelos séculos até que o contato com as economias mercantilistas modernas significou sua desarticulação e seu abandono parcial. Perante os incipientes esforços atuais tendentes a recuperar seus conteúdos e suas formas tradicionais, cabe se fazer alguns questionamentos cruciais. Se este é um modo eficiente de organização econômica, por que não tem demonstrado historicamente uma adequada capacidade de sustentação da época moderna e uma real capacidade de garantir para essas comunidades que a têm praticado, níveis satisfatórios de progresso e melhoramento de suas condições de vida? Aqueles processos que tendem a sua recuperação, não implicarão o retorno a um passado de pobreza e estancamento?

Com relação a estas questões, sem dúvida pertinentes, cabem algumas considerações importantes. Uma primeira observação deve nos levar a reconhecer que a grande maioria das comunidades e dos povos indígenas da região, vive atualmente sob condições de vida muito precárias e com níveis de desenvolvimento notavelmente insuficientes. Ora, este fato inegável não pode ser atribuído à parcial supervivência das formas comunitárias tradicionais de fazer economia, porque existe abundante evidência que permite afirmar que estes povos experimentaram um processo de pauperização DEPOIS do advento da formas modernas de produção e de mercado, que atingiram essas economias tradicionais com efeitos devastadores.

O nível e a qualidade de vida, avaliada não em termos de posse de dinheiro nem de produtos tipicamente modernos (que seria obviamente um modo incorreto de comparar), senão conforme a parâmetros de satisfação pessoal e social das necessidades, de autonomia e de controle das próprias condições de vida, de integração social, eram sem dúvida, superiores para aqueles povos, quando suas formas econômicas distintivas se desenrolavam coerentemente e sem as mencionadas interferências da modernidade.

O subdesenvolvimento e a pobreza em que vivem atualmente os povos indígenas é, numa grande medida, atribuível ao fato de as formas econômicas capitalistas os levarem a uma integração apenas parcial e subordinada nos mercados modernos, ao mesmo tempo em que à desarticulação de suas formas tradicionais, tendo por resultado o não poderem contar com os benefícios daquelas nem destas.

Cabe também observar que essas economias tradicionais não eram estáticas e tinham capacidades de crescimento e de evolução progressiva. Essa evolução foi bruscamente interrompida com a conquista e a colonização européia, junto do desmoronamento demográfico desses povos, levando à quebra de suas estruturas econômicas e políticas. Embora não seja mais possível conhecer o potencial de desenvolvimento endógeno daquelas culturas e formas econômicas, é obvio que nos vários séculos que têm transcorrido desde então, teriam podido desenvolver processos de expansão, diversificação e aperfeiçoamento que os teriam levado a atingir níveis e qualidade de vida, muito superiores aos que atualmente têm os grupos étnicos descendentes daquelas sociedades.

Todavia, como este desenvolvimento potencial não foi realizado, a pura recuperação dos conteúdos e das formas tradicionais daquelas economias, poderia implicar um retorno ao passado que importasse um retrocesso histórico. Algo similar poderia acontecer caso ditos processos de recuperação de identidade, fossem efetuados negando e se contrapondo radicalmente à modernidade, ou se fossem entendidos como a simples reativação das práticas, costumes, crenças, rituais e formas de produção ancestrais, num vão esforço por reavivar aquilo que já deixou de ser.

Contudo, há outras formas de desenvolver o processo, num sentido realista e com projeção de futuro. Tratar-se-ia, fundamentalmente, de revalorizar e de dar nova vida às formas de organização e aos conteúdos substanciais daquelas economias, que dão um sentido particularmente humano e comunitário ao trabalho, à tecnologia, à propriedade e à distribuição. Tais são, precisamente, os aspectos que fazem das economias originárias dos povos indígenas, expressões cabais da economia da solidariedade e do trabalho.

É neste sentido que nos referimos ao caminho dos povos antigos na direção da economia da solidariedade e do trabalho. No encontro desses povos com os outros grupos humanos que convergem a esta por seus próprios caminhos, tornar-se-á possível se enriquecerem com o contato e o intercâmbio que estabeleçam com experiências e concepções que recolhem e elaboram as novas expressões de uma economia e de uma civilização superior incipiente. No intuito de ilustrar o por quê pensamos seja possível que a recuperação de concepções e de valores antigos empalme e harmonize com as mais elevadas expressões da cultura contemporânea que se põem à vanguarda da construção do futuro, transcrevemos algumas lúcidas expressões de Fritjof Capra, que nos falam dos problemas contemporâneos e dos mais recentes desenvolvimentos das ciências físicas.

Sustenta este autor que estamos na presença de “uma impressionante disparidade entre o desenvolvimento do poder intelectual, do conhecimento científico e da destreza tecnológica, de um lado, e a sabedoria, a espiritualidade e a ética de outro. (...) O progresso humano tem sido um assunto puramente racional e intelectual, e esta evolução unilateral tem atingido agora um grau sobremaneira alarmante; uma situação tão paradoxal que beira a insânia. (...) Ainda sem a ameaça de uma catástrofe nuclear, o ecossistema global e a evolução ulterior da vida na terra, estão seriamente em perigo e podem desembocar num desastre ecológico em grande escala. Nossa prodigiosa tecnologia não parece servir de ajuda alguma. (...) Contudo, acredito sejamos testemunhas do início de um enorme movimento evolucionário. (...) A crescente preocupação pela ecologia, o alto interesse pelo misticismo, a redescoberta do tratamento holístico da saúde e do curar, e a crescente consciência feminista, são todas manifestações da mesma tendência evolucionaria”. “Sustentarei - continua Capra - que os físicos podem efetuar uma valiosa contribuição para superar o desequilíbrio cultural que impera. (...) No século XX a física atravessou por várias revoluções conceituais, que revelaram com clareza as limitações da concepção mecânica do mundo e que conduziram a uma visão orgânica e ecológica do globo, que mostra grandes similitudes com as visões dos místicos de todas as eras e tradições. O universo não é mais visto como uma máquina feita a partir de um monte de objetos separados, senão que aparece como um todo harmonioso e indivisível; uma rede de relações dinâmicas que incluem o próprio observador humano e sua consciência de modo essencial. O fato de que a física moderna, manifestação extrema da mente racional, esteja agora estabelecendo um contato com o misticismo, essência da religião e manifestação de uma especialização extrema da mente intuitiva, denota com beleza a unidade e a natureza complementar das modalidades racional e intuitiva da consciência. Os físicos, portanto, podem proporcionar uma base científica à mudança de atitudes e de valores que a nossa cultura precisa, tão urgentemente, para sobreviver. A física moderna pode mostrar às outras ciências, que o pensamento cientifico não deve ser necessariamente, reducionista e mecânico; que as visões holísticas e ecológicas são, também, cientificamente certas”.

Este novo paradigma teórico da física é chamado a abalar profundamente a ciência em todos seus campos e disciplinas, e indubitavelmente, começa a manifestar suas potencialidades no âmbito tecnológico. É interessante observar que as novas perspectivas que se abrem, mediante os mais avançados desenvolvimentos científicos, estão orientados num sentido de reencontro, senão com as formas e os conteúdos particulares das tecnologias tradicionais, ao menos com seus traços e suas características essenciais, tal e como o parecíamos nas tecnologias andinas. A revalorização do homem e da subjetividade, a preocupação ecológica, a tomada de consciência das interconexões que ligam as dinâmicas dos diferentes espaços-tempos da economia, da política, da cultura da espiritualidade, são processos que apontam para novos conceitos e novas formas da economia e do desenvolvimento, tal e como viéramos traçando ao longo da nossa exploração dos caminhos da economia de solidariedade.

Texto de Luis Razeto Migliaro

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