sábado, 7 de agosto de 2010

ODE AOS BOTOCUDOS

Padre Antônio Vieira (foi um) pregador jesuíta que viveu no Brasil na segunda metade do século XVII. Seus sermões ficaram famosos não apenas pela qualidade da língua portuguesa, que soube usar com precisão, mas também pela crítica aos hábitos pouco decentes dos colonizadores dos primeiros tempos. Li vários sermões e notei que alguns deles parecem ter inspirado o autor das estátuas dos Profetas, que tanto me fascinam e que estão sempre a me apontar o céu ora azul, ora cinza, deste outeiro de Bom Jesus de Matosinhos (em Congonhas do Campo). Um desses sermões me chamou especialmente a atenção, porque manifesta preocupação com a sorte desses índios que ainda hoje, passados mais de duzentos anos, penam pelas mesmas montanhas, fugindo de uma escravidão mal disfarçada. Foi pregado no primeiro domingo da Quaresma, em 1653, na cidade de São Luís do Maranhão, a terra natal de Gonçalves Dias. Começa com um versículo de Mateus - Haec omnia tibi dabo, si cadens adoraveris me -, e afirma que "todos os índios d'este Estado, ou são os que vos servem como escravos, ou os que moram nas aldeias de el-rei como livres, ou os que vivem no sertão em sua natural e ainda maior liberdade: os quais por esses rios vão comprar ou resgatar (como dizem) dando o piedoso nome de resgate a uma venda tão forçada e violenta, que talvez se faz com a pistola nos peitos".

O curioso é que mesmo esse vigoroso pregador conclui sua prédica tentando conciliar o interesse dos poderosos senhores coloniais, cujas atividades dependiam exclusivamente da mão de obra escrava ou semiescrava dos índios, com algumas regras que propõe para combater a crueldade; aceita como escravos perpétuos todos os índios que forem resgatados das aldeias onde já eram prisioneiros de guerra e seriam devorados ritualmente; outros, que houvessem sido escravizados por tribos inimigas, também poderiam ser adquiridos como escravos pelos portugueses. Esses, para possuírem legitimidade como escravos, precisavam ser aprovados por um grupo de notáveis, entre eles o governador, o ouvidor geral e prelados das quatro grandes congregações religiosas que militavam no pais: carmelitas, franciscanos, mercedários e jesuítas. "Todos os que deste juízo saírem qualificados por verdadeiramente cativo se repartirão aos moradores pelo preço por que foram comprados". Ou seja, até mesmo as mais esclarecidas mentes do tempo julgavam-nos passíveis de servidão.

Assim, nada mais natural do que uma reação permanente por parte dessas nações; dominadas, seriam sempre escravizadas, sob a desculpa de cristianização. De batalha em batalha, de resgate em resgate, a nação brasileira foi se construindo nessa guerra continua, enquanto as nações indígenas foram desaparecendo. Ainda existem centenas de grupos indígenas vivendo nos sertões inóspitos do Brasil. Pouco se conhece deles, principalmente dos que habitam as profundas selvas da Amazônia. O que parece seguro é que, cada um, por sua vez, será atacado à medida que a colonização do pais caminhar para o norte e para o oeste. E esse dia com certeza chegará e tais guerras serão cada vez mais rápidas, mais destruidoras; a tecnologia milita a favor dos brancos e contra os índios.

Os portugueses quando começaram a ocupar o Brasil, possuíam armas de tecnologia precária, antigos arcabuzes que mal acertavam um alvo a três metros de distância. Lutavam com espadas, facas, porretes; suas armas não eram tão superiores assim às armas dos botocudos, por exemplo. Mas, ao longo dos últimos quatrocentos anos, a indústria bélica desenvolveu-se como nenhuma outra na Europa. Foram inventados rifles ligeiros, potentes, fáceis de carregar e com balas muito mais velozes. Canhões pesados e leves, bombardas de longo alcance, bombas de todos os tipos e miras de alta precisão com cálculos definidos por uma nova ciência, a balística, que passou a fazer parte dos currículos de engenheiros militares e mesmo de engenheiros civis. Enquanto isso, enfiados nas selvas, tentando sobreviver, os índios mantiveram suas armas, exatamente as mesmas de quatrocentos anos atrás, quando começaram a enfrentar os colonizadores. Naqueles anos eram atacados permanentemente, mas resistiam com relativa facilidade ao fogo das armas portuguesas, que possuíam limitada capacidade de ataque. Havia até mesmo certo equilíbrio nas batalhas. A indústria bélica, ao evoluir, permitiu aos europeus romper esse equilíbrio e ganhar um poder de destruição absurdo. Assim, acompanhando os rastros da roda da história, podemos prever um futuro bem difícil para ao pouco que resta das nações indígenas nesse pais.

(...)

Assim se constroem as nações: sobre os escombros de outras nações derridas. Assim nessa América, os impérios e repúblicas se multiplicaram sobre os restos destruídos de tantos índios. Os botocudos foram apenas mais um povo esmagado para que a nação brasileira surgisse, e sua destruição pequeno incidente na engrenagem da história. Sua memória aos poucos desaparecerá no magma denso do povo renovado, mescla de sangue de vitoriosos e derrotados.

Texto de Murilo Carvalho, in "O Rastro do Jaguar"

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