quarta-feira, 25 de novembro de 2009

A MODERNIDADE INCA

Respondendo ao desafio da natureza e principalmente do relevo, e apesar dos obstáculos que lhes opunha uma população esclerosada em suas estruturas ancestrais, os incas criaram um anova ordem social e política, um verdadeiro império que, considerado no contexto de sua época, devia ser visto como quase sem paralelo na História. O reino de Tahauantinsuyu, no tempo de Pachacutéc, Tupac Yupanqui e Huayna Capac era um Estados, no sentido moderno da palavra, tão imponente que suscita obrigatoriamente nossa admiração, pois mostra o gênio dos homens que o fundaram.

Um estado tão moderno, de fato, que sua modernidade foi a origem de numerosas discórdias de escolas. Nenhuma civilização suscitou tantas polêmicas e confrontações quanto a dos Incas. Há mais de um século que historiadores e sociólogos se dividem a respeito da natureza exata da sociedade peruana. Um dos artesãos mais conhecidos e mais competentes desta batalha foi Louis Baudin, que publicou, em 1928, sua famosa obra sobre "O Império Socialista dos Incas" e cujos trabalhos, apesasr de sua antiguidade, resisitram admiravelmente às modas estruturalistas e às doenças infantis da nova etnologia. A tese apresentada neste livro não era nova, pois o sociólogo alemão Heinrick Cunow já havia criticado suas premissas em 1896: "A história que fala de sábios soberanos incas que, mais pela bondade que pela violência, transformaram massas bárbaras, ignorantes da agricultura, em monarquia absoluta, não passa de uma vasta e fantástica lenda. O comunismo das instituições do império inca não é outro senão este comunismo agrícola, muito antigo, nascido naturalmente da organização em tribos entre os povos hoje civilizados, em um certo estágio de sua evolução social".

Em 1964, a polêmica ainda continuava a existir, pois Louis Baudin respondeu vivamente, por ocasião da publicação de um novo livro, às críticas que Alfred Métraux formulara contra sua tese. "Este autor", escreveu ele, "comesssssste o erro de desprezar os escritoress que não participam de sua opinião, aplicando-lhes epítetos injuriosos. Desta forma ele desconsidera-se a si mesmo. Além disso, não sendo economista, ele deveria abster-se de trazer soluções definitivas a difíceis problemas econômicos que ele não estudou, como o da definição do socialismo".

De fato, Louis Baudin nucna fez sua a tese do comunismo agrícola e não hesitou, ao contrário, em reprovar alguns autores sul-americanos, como J. C. Mariategui ou R. R. Haya de laTorre, por terem abusado do termo COMUNISMO, que lhe parecia equívoco, carregado de um conteúdo historicamente preciso demais para dar conta de uam realidade tão complexa quanto a sociedade peruana, cujos membros estavam inseridos em comunidades unidas pelo sangue e por uma série de vínculos familiares e afetivos. O historiador, que é também um economista, prefere o termo SOCIALISMO, que ele aplica naõ tanto a estas comunidades mas à organização que os Incas tentaram sobrepor à ordem social tradicional.

"Examinando de perto", admite ele, "este belo edifício está longe de ser perfeito e apresenta múltiplos elementos de imperfeição, alguns provenientes de disparidades de origem antigas destinadas a desaparecer com o tempo, por exemplo, sobrevivência de trocas privadass; outros, inconciliáveis com o comunismo, mas não com o coletivismos, como a redução da socialização de terras aos meios de produção por atribuição a cada família de uam superfície de terra cultivável e não de uma quantidade de gêneros alimentícios; alguns, enfim, tomando a aparência de brechas, cuja multiplicação parece dever provocar no futuro um estouro do sistema".

Uma socieade sem propriedade individual, sem mercado, sem moeda, sem preços, sem rendas privadas, onde a oferta é regulamentada, a demanda simplificada, a adaptação de uma a outra assegurada por meio das estatísticas, e onde o funcionalismo permite a avaliação das necessidades e das possibilidades de produção, a constituição de estoques reguladores e uma rigorosa aplicação das sanções, não pode ser qualificada retroativamente de socialista. Sem dúvida deve-se evitar projetar sobre uma civilização, relativamente afastada no tempo e no espaço, categorias e etiquetas nascidas de nossas sociedades industriais, mas seria um erro negar as analogias ou recusar, por receio de europeocentrismo, toda análise racional.

John V. Murra, autor americano, assinala o caráter feudal das relações de vassalos com suserano que uniam, por movimento dialético de submissão e concorrência, os curacas (líderes locais) ao Inca. A monarquia cuzquenha foi, num primeiro tmepo, o centro em volta do qual articularam-se as nações que, voluntária ou forçosamente, reconheciam o inca como o mais poderoso dos senhores. Depois, num segundo tempo, quando seu poder tornou-se mais manifesto, ele procurou duplicar esta hierarquia semifeudal por uma outra hierarquia, a dos funcionários, dos altos funcionários do Estado e dos governadores gerais, encarregados de vigiar as autoridades tradicionaiss e suplantá-las.

O absolutismo imperial não tentou sistematicamente quebrar as estruturas antepassadas. Ele contentou-se a cercear as prerrogativas das nações. No plano econômico, a política dos imperadores não foi muito diferente: tratava-se menos de modificar os mecanismos de produção que de aumentar a eficácia e o rendimento, por um esforço de racionalização. O "socialismo" incaico adaptou-se maravilhosamente ao "socialismo" tribal, cuja regra fundamental de reciprocidade criava entre os indivíduos ou os grupos simétricos uma permuta daquilo que Karl Polany chama de "presentes e contrapresentes".

A nova classe dirigente, entretanto, fez inovações, introduzindo uma segunda regra: a da redistribuição, que supunha uma hierarquia - e mesmo uma burocracia - capaz de organizar o duplo movimento de coleta dos produtos para o centro e, depois, de redistribuição destes produtos para os grupos.

"Pode-se dizer", afirma Nathan Wachtel (em La Vision des Vaincus, 1971), "que a reciprocidade caracteriza a vida econômica ao nível das comunidades rurais e que a redistribuiçõa resulta da organização estatal, sendo o centro coordenador encarnado pelo Inca. Mas a redistribuição não se opõe à reciprocidade. Ela entra, ao contrário, em seu prolongamento e baseia nela a sua ideologia. Neste esquema, um lugar particular deve ser atribuído aos chefes locais - os curacas -, cuja importância foi durante muito tempo negligenciada: eles constituem exatamente o ponto de junção entre a reciprocidade comunal e a redistribuição estatal".

Num pais como o Peru, dominado pela diversidade das altitudes, solos e climas, as culturas sempre variavam consideravelmente no seio de uma mesma regiãos. Os camponeses das montanhas trocavam seus produtos contra os dos vales inferiores, e esta complementação entre as terras altas e baixas fundava o que John W. Murra chama de uma ECONOMIA VERTICAL. Desse modo, os habitantes de Chucuito, no Lago Titicaca, trocavam a lã de lhama ou o charqui (a carne seca deste animal) pel omilho de Sama e do Moquega, e pela coca de Larecaja e de Capinota, nos vales quentes do interior. Algumas redess de reciprocidade podiam espalhar-se em dois ou três quilômetros, aproximadamente.

O planalto, particularmente desfavorecido, era reservado à batata, que os camponeses chamavam de "papa", e da qual algumas das setecentas variedades cresciam até a cinco mil metros de altitude. O clima de puna permitia o preparo do chuno - batata secada alternativamente no gelo e no sol, que se podia conservar durante vários anos. O milho, de implantação mais recente, chocou-se com os limites muito precisos do frio e da seca, entree mil e quinhentos e três mil e quinhentos metros de altitude, e com o costume dos índios de cultivá-lo apenas em pequenas quantidades para fins, sobretudo, rituais. Foram os incasa que, tendo constatado que o milho se conservava melhor que a batata, levaram seus súditos a difundir sua cultura.

Baseado no texto de Jean-Claude Valla

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