
A CULTURA MOCHICA foi batizada em homenagem ao vale do Rio Moche, onde o alemão Max Uhle encontrou seus primeiros vestígios, em 1899. A palavra significa SANTUÁRIO na língua daquele povo, que foi falada até o final do século XVIII. Hoje ela só dá nome a lugares, como o aqueduto de Chacarpe e a cidade de Sipán. Cenas de animais fantásticos como pumas esfaqueando prisioneiros são comuns nas pinturas que adornam os potes de cerâmica desse povo, levando à desconfiança de que os sacrifícios fossem comuns. Mas ninguém havia encontrado os corpos dos sacrificados, levando muita gente a pensar que as figuras fossem apenas simbólicas. Desde 1986 Bourget observava pinturas que mostravam prisioneiros sendo atirados do alto de uma montanha, chegando a levantar a hipótese de que o morro seria uma espécie de “altar", uma “montanha sagrada”. Em 1995, ele foi apresentado à Huaca de La Luna, onde deparou com uma plataforma rochosa bem parecida àquela das pinturas nos vasos. Não deu outra: era mesmo o altar!
A iconografia mochica também serviu de pista para outro arqueólogo, o peruano Santiago Uceda, da Universidade Nacional de Trujillo. No ano seguinte ele encontrou um segundo fosso sacrifical. As descobertas tornam a Huaca de La Luna a mais importante pista de que os estudiosos dispõem para decifrar o mistério dos sacrifícios rituais entre as antigas culturas americanas.
Os sacrifícios mochicas tinham propósito religioso: eles acreditavam que o sangue humano era a única forma de conter aquilo que hoje conhecemos como El Niño – o fenômeno meteorológico que, de tempos em tempos, muda radicalmente o clima do planeta. É justamente ali, no árido litoral peruano, que as águas do Oceano Pacífico esquentam acima do normal, provocando o El Niño. Nas épocas em que o fenômeno era muito violento, as cidades mochicas sofriam com chuvas torrenciais e enchentes. Segundo Bourget, "o sacrifício humano era uma forma de tentar devolver a ordem ao mundo".

Mas foi na metalurgia que eles deixaram seu maior legado. As peças de ouro e cobre desenterradas em 1987 por Walter Alva no túmulo do chamado Senhor de Sipán formam o conjunto mais rico da ourivesaria pré-hispânica. Assim como a cerâmica decorada, as peças de metal eram de uso exclusivo dos nobres, que prezavam sobretudo o ouro. Para que tudo parecesse dourado, mergulhavam peças de cobre em uma solução daquele metal e diversos sais, como o bicarbonato de sódio. A mistura era capaz de criar uma corrente elétrica. Isso fazia os átomos de ouro grudar no cobre. Assim, séculos antes da eletricidade, os índios peruanos já banhavam peças em ouro.

O desenvolvimento do culto a Ai-Apaec teve um auge por volta do ano 50 da nossa era, quando uma classe de guerreiros tomou o poder nos vales da costa norte peruana. Esses homens, conhecidos como Lordes Mochicas, criaram uma confederação de cidades-estado que dominou um território de 400 quilômetros de extensão. Transformaram enormes faixas de deserto em terras cultiváveis, construindo aquedutos tão eficientes quanto os da Roma antiga e que são usados até hoje pelos camponeses peruanos. Os mochicas também ergueram algumas das maiores construções da América pré-colombiana, como a Huaca del Brujo e a Huaca del Sol. Esta última, com mais de 40 metros de altura, ocupava uma área superior à da famosa Pirâmide de Quéops, a maior do Egito. Sua principal cidade, no vale do Rio Moche, chegou a ter 15 000 habitantes. Lá, artesãos e ourives produziram as obras de arte mais espetaculares de toda a América pré-hispânica.
"Os lordes criaram uma estrutura social incrivelmente complexa, baseada no controle da autoridade religiosa, política e militar", segundo o arqueólogo Walter Alva, diretor do Museu Brüning de Arte Pré-Colombiana em Lambayeque, Peru. Assim como os faraós egípcios, eles reivindicavam para si mesmos o status de divindade.

O El Niño era um complicador, pois qualquer desequilíbrio climático punha toda a sociedade em risco. Por isso era natural que o número de sacrifícios aumentasse nessas épocas de seca ou de grandes inundações, fortalecendo Ai Apaec na sua batalha pelo bem-estar do povo mochica.
Usando técnicas de Medicina Legal para estudar os esqueletos encontrados, descobriu-se marcas claras de que os guerreiros cativos passavam dias sob tortura, pois suportar a dor era uma prova de coragem. Mas sementes de coca e restos de alucinógenos foram encontrados no local, sugerindo que alguns guerreiros – talvez os que não estivessem agüentando a tortura – foram drogados para ajudar.
No momento do sacrifício, o prisioneiro era conduzido à pedra-altar, no alto da Huaca de La Luna, onde o sacerdote o degolava com uma espátula afiada. Marcas de corte nas vértebras permitiram identificar esse tipo de execução. Uma sacerdotisa, então, recolhia o sangue em uma taça de cerâmica. Suspeita-se que uma substância anticoagulante fosse aplicada no pescoço; assim, ficava mais fácil encher a taça. O sangue era, então, oferecido ao lorde, que o bebia. Era o ponto alto da cerimônia. Ninguém sabe ao certo quantos prisioneiros eram executados em cada cerimônia. Os cientistas estimam três mortes por vez.
Depois, alguns corpos – provavelmente dos que tenham se mostrado mais “corajosos” em suportar a dor – eram levados a um recinto fechado da huaca e, pelo tipo de corte que os ossos apresentam, deduz-se que toda a carne foi retirada; não seria absurdo imaginar que tenha sido comida. Os esqueletos, ainda articulados, eram usados como marionetes em uma espécie de DANÇA DOS MORTOS. Muitas pinturas mochicas representam esqueletos dançando e tocando instrumentos musicais. Parece macabro, mas esse tipo de sacrifício estripador geralmente tinha o consentimento das vítimas capturadas em combate: para os povos andinos, ser reduzido a esqueleto significa entrar no mundo dos ancestrais, o que é uma grande honra. E o descarnamento era uma forma de acelerar esse processo.
Entre os séculos VI e VII, o clima pirou muito. Estudos das capas de gelo da Cordilheira dos Andes mostram que, naquela época, alterações meteorológicas produziram uma sucessão de secas que durou trinta anos na região, esgotando os rios que abasteciam as cidades mochicas. A sociedade entrou em crise. Para piorar, o El Niño atacou com toda a sua fúria, esquentando demais as águas do Pacífico, espantando anchovas e outros peixes de água fria que formavam a base da dieta indígena. Nuvens escuras teriam coberto os céus durante meses. Um aguaceiro fenomenal teria atingido o deserto. Os rios encheram rapidamente, provocando inundações que arrebentaram os canais de irrigação e destruíram as casas de barro e palha dos camponeses. As grandes pirâmides, feitas de adobe (barro cru, endurecido ao sol), derreteram como montinhos de açúcar. Os sedimentos resultantes dessas chuvas até hoje podem ser vistos na Huaca de la Luna. As lavouras se arruinaram. Quem não morreu de fome ou arrastado pelas torrentes, padeceu de tifo e outras epidemias.
Os lordes também desesperaram. Como guardiões da ordem natural das coisas, seu papel era evitar a catástrofe. Assim, dezenas de guerreiros foram sacrificados na Huaca de la Luna. Mas os deuses não pareciam não ouvi-los mais; os lordes não conseguiram resolver os problemas climáticos, e acabaram perdendo a credibilidade da população. Foi o começo do fim: sem o apoio dos súditos, o poder dos senhores mochicas foi ruindo, como seus templos de barro.

Baseado no texto de Claudio Angelo
Muito obrigado (Y)
ResponderExcluirAjudou bastante