segunda-feira, 18 de maio de 2009

TEMPO... TEMPO.. TEMPO... TEMPO...

Na tradição ocidental, pode-se dizer que a indagação sobre o significado do ACONTECIMENTO está ligada à constituição de uma disciplina intelectual muito particular: a HISTÓRIA (que implica uma tarefa de descrição de causas com diferentes graus de eficiência, na hipótese genérica de que o sentido se encontra na causa). Já nas culturas ameríndias, por seu turno, o sentido procede da sincronia mais que da diacronia. Ou seja: o sentido de um acontecimento é dado mais por outros acontecimentos sincrônicos, ainda que de natureza diferente, que pelos acontecimentos precedentes da mesma classe.

Em forte contraste com a Civilização Ocidental, o sistema de pensamento maia, por exemplo, baseia-se na distinção entre duas categorias diferentes de temporalidade: o TEMPO CÓSMICO e o TEMPO HISTÓRICO. O primeiro está subordinado aos ritmos cíclicos ou seqüenciais que a profecia se encarrega de determinar; o tempo histórico a longo prazo também tinha, antes da chegada dos europeus, um caráter cíclico (marcado nas grandes estelas de pedra, comemorativas, chamadas de “conta longa”) e o tempo curto referia-se à duração da vida pessoal. Só esse último era entendido como linear, ainda que submetido aos ciclos bons e nefastos determinados pelo TZOLKIN, o calendário divinatório e ritual de 260 dias. O ato da criação teve lugar várias vezes sucessivas e os deuses, à diferença do Javé ausente, periodicamente têm de intervir para renovar e manter a ordem cósmica e social, ou seja, a ordem do tempo. A pedra de toque da ortodoxia estava na ordenação e no sentido to tempo cósmico. As datas fundamentais eram imutável, ainda que, para desespero da cronologia ocidental, essas datas não eram tão importantes e um mesmo acontecimento pode situar-se, com aparente despreocupação, em datas diferentes, desde que todas tenham o mesmo sentido e reportem ao acontecimento em questão, com suas características distintivas.

Se observamos os povos de língua nahuatl, encontramos idéias e categorizações análogas. Também aqui, no altiplano central do México, o mesmo nome de ano se repete a cada XIUHMOLPILLI ou “ligadura dos anos”, que podemos chamar de “ciclo dos mexicanos”: um período de 52 anos. Um mesmo ano, ou seja, um ano com o mesmo nome e significado para a vidas social se repete a cada 52 anos. Por exemplo: ACATL pode ser o ano ocidental de 1519, 1467, 1259 ou 999. A forma de nomear o ano impedia saber de qual de todas essas possíveis datas estavam falando. A concepção seqüencial ou cíclica do tempo produz uma percepção muito particular da História: uma classe de narrações que permanecem ordenados temporalmente em um ciclo único, não funciona a partir do princípio “causa e efeito”, mas constituem uma espécie de repertório ordenado tematicamente. Esta forma de representação do passado, dificulta – e até impossibilita – o uso do conceito de “causa histórica”; os acontecimentos não são explicados por seus antecedentes, mas pelo contexto cósmico que corresponde a sua posição calendárica e que está refletido em seu próprio nome.

O que parece ser mais relevante, é destacar o diferente valor e significado de “acontecimento” - de qualquer acontecimento - nas concepções do tempo cíclico e linear. Na concepção linear de tempo, um acontecimento é sempre único, irrepetitível e de uma singularidade tal que pode servir para marcar períodos temporais. Sua posição epistêmica é central e todo esforço intelectual da historiografia européia está direcionado à sua compreensão, tendo como resultado uma classe particular e variável de relato que se chama “História”. Para uma concepção cíclica do tempo, um acontecimento é algo previsto, repetido periodicamente e para cuja compreensão se utiliza uma mistura de arte verbal e jogo lógico, que chamamos de “Profecia”.

Para as culturas andinas, que não usavam escrita antes da chegada dos espanhóis, as fontes são mais difíceis de manejar. No entanto, alguns estudos – como o de Olívia Harris e Thérèse Bouysse-Cassagne – sobre o sentido de PACHA (confluência do tempo e do espaço) no pensamento aymará, nos permite fazer algumas inferências interessantes. Prece que podemos distinguir três etapas ou IDADES sucessivas no tempo da humanidades.

A primeira etapa é a IDADE DO TAYPI. Evoca a diversidade e a multiplicidade através de uma lógica que relaciona os humanos, seus deuses e seus lugares de origem (lagos, fontes, cavernas, etc) com um centro primordial ou TAYPI.

À Idade do Taypi, segue-se a IDADE DO PURUMA. Trata-se de um período de luz difusa, como o anoitecer, quando o céu se obscurece. PURUN ou PURUMA é o nome das terras desérticas. A essa noção associa-se, também, a virgindade e, por extensão, a vida selvagem e livre. Assim, a “mulher virgem”, “a vicunha sem casar”, “a planta selvagem” são conhecidos como “puruma”.

Qual é a relação conceitual entre essa Idade do Puruma, caracterizada por sua situação liminar, e a Idade do Taypi, o centro? O mundo em que vivemos é um espaço caracterizado por forças centrífugas, que vão passando de sua máxima concentração no taypi à sua máxima dispersão nas bordas, da vida à morte, do social ao selvagem. As forças do puruma, que operam nas bordas, dividem o que normalmente é único: partem, duplicam e separam formando pares simétricos.

A etapa seguinte é a IDADE AUCA PACHA. A palavra “auca”, segundo Bertonio, significa “inimigo”, mas não no sentido bélico. Tristan Platt desenvolveu amplamente o conceito de YANANTI ou YANANI, que se refere às coisas que sempre estão juntas, como os dois olhos, as duas mãos, os dois sapatos ou uma junta de bois. Os elementos auca também são pares, mas à diferença dos yananti, não podem coincidir, se repelem, se anulam e contrapõem mutuamente, como o dia e a noite, a água e o fogo... como os inimigos. No pensamento aymará estão previstos dois possíveis caminhos de reconciliação dos contrários: o ENCONTRO e a ALTERNÂNCIA – expressos pelos conceitos TINKU e KUTI.

TINKU é o nome das lutas rituais nas quais se encontram dois bandos opostos, freqüentemente chamados de ALASAYA (os de cima) e MASAYA (os de baixo). Na terra aymará, estes combates rituais se praticam desde uma época muito remota. Ao permitir que as forças de ambas as metades se meçam e que oponentes se sujeitem, o tinku pretende realizar o ideal Yananti: como duas metades perfeitas em torno de um taypi.

KUTI é outra tipo de relação para pensar e ajustar os contrários. Kuti remete a conceitos como “volta”, “mudança” ou “turno”. Diz-se que o sol cumpre uma revolução como KUTI durante o solstício. Todo um mundo, todo uma era, um PACHA, pode mudar de sentido e isto é o que se chama PACHAKUTI. Quando um inca morre, se produz um pachakuti. Quando os espanhóis chegaram aos Andes, aconteceu um pachakuti.


Se usarmos nossos termos mais correntes para sintetizar essa idéia, podermos dizer que a história está constituída de ACONTECIMENTOS TINKU e ACONTECIMENTOS KUTI; periodicamente o espaço-tempo muda de orientação por um pachakuti. Forçando um tanto o significado originário, poderíamos dizer que o sentido dos acontecimentos são dados por sua inclusão em uma dessas duas categorias: a que implica em intercâmbio ou igualação dos contrários em busca do equilíbrio, ou a que significa uma mudança de rumo, de orientação, uma renovação cíclica. Em todo caso, nenhum desses conceitos ajuda a produzir dos acontecimentos um relato causal que, em na tradição cultural ocidental, poderia ser algo semelhante ao que chamamos “história”.

De modo geral, creio que podemos dizer que o que os índios contam sobre seu passado e, sobretudo, a maneira como contam, a estrutura argumental de seus diversos gêneros literários, torna-se opaca para os europeus. Não é fácil perceber as relações causais entre os diferentes episódios de um mesmo “relato” e nem sequer se pode entender a continuidade narrativa de uns personagens que, ao longo da trama, mudam de nome, de características, o que escondem seus nomes, frases ou seqüências, acontecimentos de sentido obscuro, que parecem inarticulados entre si ou incoerentes.


Baseado no texto de Manuel Gutiérrez Estévez

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