sábado, 9 de maio de 2009

KAY PACHA

Contam os sábios andinos que Wiraccocha resolveu criar um casal de irmãos para civilizar o mundo e organizar os homens. Assim, Manco Capac e Mama Ocllo nasceram da espuma do Lago Titicaca, portando um cetro de ouro (um raio de luz do Sol). Eles deviam andar até o lugar em que esse cetro ficasse perfeitamente em pé sobre a terra e, depois, se fundisse com o terreno até desaparecer. Ali deveriam construir uma cidade, que seria o começo de um grande povo. E, então, Manco Capac e Mama Ocllo fundaram QOSQO – o Umbigo do Mundo.

Para começar a organização, Manco Capac determinou que seus acompanhantes deveriam ocupar a parte alta do vale, e chamou aquela área de HANAN QOSQO (Alto Cuzco). Mama Ocllo, por sua vez, mandou que os seus acompanhantes ocupassem a parte baixa do vale, e chamou de HURIN QOSQO (Baixo Cuzco). No ponto em que Hanan Qosqo e Hurin Qosqo se encontravam, eles ergueram HAUKAYPATA - a praça central de Cuzco, onde aconteciam todas as festas, festivais e rituais; o coração da nova cidade. Foi essa organização que originou o conceito de YANANTIN: a dualidade ontológica de todas as coisas e a complementaridade das duas partes, de forma que uma não existe sem a outra. A partir de então, tudo que existem passo a ter um hanan e um hurin.

Javier Lajo, sociólogo peruano, considera essa visão a principal diferença entre os povos andinos e a civilização ocidental. Enquanto, segundo ele, “o conceito primário da estrutura do pensamento ocidental – dos neoplatônicos a Marx – é a concepção de uma unidade criadora, do ‘unitarismo’ ou de um ‘criador’ de tudo a partir de uma origem única – seja ele a matéria, o espírito, a idéia, Deus, etc. – formando um sistema impar ou unitário, onde a unidade cria sua medida e mede com ela todas as suas emanações, com a finalidade de apropriar-se delas ou reincorporá-las, o sistema dual ou binário andino oferece duas medidas; nesse caso, a única solução de relação que temos é a proporcionalidade entre elas”. Entendendo como “proporcionalidade” os deveres sociais de reciprocidade. “Esta é a base, a viga mestra do sistema de pensamento e a sabedoria fundamental da cultura andina: a dualidade que se complementa e se proporciona em um DUOVERSO, paralelo e combinado”.

A dualidade de tudo está refletida também na noção dos três mundos: UKU PACHA, KAY PACHA e HANAN PACHA. Pacha é um termo quéchua que significa “totalidade espácio-temporal, cosmo, realidade”. UKU PACHA é, assim a totalidade de baixo, o cosmo interior, subterrâneo, a água, a terra; a ancestralidade, a herança e, nesse sentido, o passado, aquilo que nos sustenta, o chão. HANAN PACHA, por sua vez, é um outro universo: a totalidade de cima, o céu, a serra, o sol, o que nos dá a vida, os objetivos, os sonhos e projetos e, nesse sentido, aproxima-se daquilo que chamamos de futuro. No ponto de encontro entre esses dois universos, entre passado e futuro, entre ancestralidade e projetos, entre o antigo e o novo, está KAY PACHA – o mundo do aqui e agora, o presente. A realidade objetiva, visível e atual é, portanto, o resultado de encontro daquelas duas forças poderosas, dos DOIS UNIVERSOS (pacha).

Essas forças são representadas em todos os lugares pelos templos quadrados na parte alta das cidades (Hanan), ligados a Hanan Pacha e dedicados ao PACHATATA (Pai Cósmico), e nos templos circulares, na parte baixa, ligados a Uku Pacha e dedicados à PACHAMAMA (Mãe Cósmica). Juntos, eles representam ILLAWI – o par perfeito, o casal primordial, os irmãos divinos (Manco Capac e Mama Ocllo) que atuam juntos, em cooperação e reciprocidade, ajustando-se constantemente um ao outro, produzindo a realidade atual. Essa realidade é, então, a HAUKAYPATA CÓSMICA: uma ponte (chakana), uma porta (punku) e um ponto de encontro entre os dois universos; o trânsito cognoscível entre os mundos. É onde o Pachatata e a Pachamama se dão as mãos para caminharem juntos. Kay Pacha nos “recorda” o Uku Pacha de onde viemos, mas também “vê” o Hanan Pacha para onde vamos. E daí surge a noção de “tempo” para os andinos: WIÑAY – a realidade é eterna! É um pertétuo oscilar entre a concentração máxima (Uku Pacha) e a expansão máxima (Hanan Pacha).

A virtude de Uku Pacha é o MUNAY – o Amor – e a virtude de Hanan Pacha é o YACHAY – a Sabedoria. E isso faz de Kay Pacha – a realidade – um misto entre sentir e saber, emoção e razão e, portanto, o mundo de LLANKAY : o trabalho construtivo, realizado com amor e sabedoria.

Kay Pacha é o caminhar entre esses dois mundos. Por isso seu símbolo é o QUAPAQ NAN – o caminho dos sábios, aprendendo e praticando a proporcionalidade entre tudo que existe. A nossa realidade é, portanto, a esfera da reciprocidade, do cuidado mútuo, do respeito a todas as diferenças, do aprender e do ensinar, do diálogo e da partilha.


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