sábado, 10 de maio de 2014

TERRA SAGRADA

O funeral dos índios bororo é um dos rituais mais complexos do mundo. Leva meses e envolve toda a aldeia, com pinturas, músicas, danças e rezas. Eu tive a oportunidade de acompanhar um, na Terra Indígena Teresa Cristina, em Mato Grosso. Os bororo acreditam que, após a morte, a alma da pessoa passa a habitar o corpo de um animal, e o funeral deve guiá-la nessa transição. Notei que os índios sempre se deslocavam seguindo linhas imaginárias, que eu não enxergava, mas que para eles tinham um significado profundo - a aldeia é dividida em clãs, e cada um faz determinados caminhos para atravessar o pátio central. Mario, um jovem bororo, foi meu guia durante o funeral. Graças a ele descobri que cada elemento da aldeia, aquelas coisas que pareciam apenas casas, um banhado, árvores, também tinha um significado oculto – porque desempenhava um papel específico no processo. Mario resumiu de forma simples: "Nossa aldeia é sagrada". Quando um índio diz que a própria terra é sagrada, não é força de expressão. Muitos povos indígenas acreditam em deuses e seres mitológicos ligados a elementos da natureza, e o território é o espaço físico onde essas divindades se manifestam. Ou seja: a terra não é apenas o lugar onde os índios moram. É um elemento central da religião e da identidade cultural deles. "É o lugar onde descansam os espíritos de nossos ancestrais", diz o yawanawa Joaquim Tashka, que vive no interior do Acre.

"Todos os índios querem voltar no tekohá (local sagrado) onde nasceu. Os antepassados querem que a gente vá pra lá, andar em cima da nossa aldeia", explica o cacique guarani Elpidio Pires. "Os guarani têm a concepção de que são a primeira semente plantada na terra", afirma o antropólogo Rubem Almeida, que estuda esse povo há décadas. E isso explica a relação deles com seu território. "É como com as plantas. Se uma planta nasce em certo lugar, é dali. Os guarani entendem que pertencem a uma determinada terra - e não que a terra pertence a eles", diz.

Mas os territórios indígenas, que atualmente correspondem a 13% do Brasil, também são alvo de interesses políticos e econômicos. Em 16 de abril (de 2013), três dias antes do Dia do Índio, as redes de TV registraram uma cena impressionante: a invasão do Congresso Nacional por um grupo de 300 indígenas, que tomaram o plenário e cercaram alguns deputados, em volta dos quais cantaram e dançaram. Era um protesto contra a emenda constitucional (PEC) 215, projeto de lei que, se aprovado, dará ao Congresso o poder de demarcar - e reaver- terras indígenas. Os índios temem que deputados ligados ao setor agropecuário (que formam a chamada "bancada ruralista") e empresas se mobilizem para reduzir suas terras. Após a manifestação, o presidente da Câmara dos Deputados disse que a PEC 215 só voltará a ser discutida no próximo semestre. Ou seja: os índios ganharam tempo. Mas não ganharam a batalha - mesmo porque, em maio, o governo mudou as regras. A Fundação Nacional do Índio (Funai), que era a responsável por demarcar os territórios indígenas, agora terá de dividir esse poder com outros órgãos do governo - entre eles a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária). As 687 terras indígenas no país, que abrigam aproximadamente 517 mil pessoas, despertam enorme interesse de agricultores, pecuaristas, mineradoras e empreiteiras, que veem nelas uma grande oportunidade de lucro e têm tentado explorá-las - nem sempre de forma pacífica.

No final do ano passado, uma mobilização online pedia que as pessoas mudassem de sobrenome nas redes sociais - trocando-o por "guarani kaiowá", nome de dois povos indígenas que vivem no Mato Grosso do Sul. Eles têm as piores condições de vida do país, com expectativa de vida de apenas 45 anos (contra 73 dos brasileiros em geral). Os guarani kaiowá vivem tão pouco porque, entre outros motivos, são assassinados – entre 2003 e 2010, 452 índios foram mortos no Mato Grosso do Sul. Em novembro de 2011, o cacique Nísio Gomes foi morto por pistoleiros, e várias lideranças indígenas estão ameaçadas de morte – algumas precisam andar com proteção da Força Nacional. Toda essa violência tem um motivo simples: terra.

A primeira terra indígena reconhecida legalmente no Brasil foi o Parque do Xingu, em 1961. Nos anos 1970 e 1980, houve uma grande mobilização em torno da defesa dos índios, que culminou nos direitos da Constituição de 1988. "Índio é terra, não dá para separar", dizia um cartaz da época. A partir daí, grandes áreas foram demarcadas, tentando respeitar os territórios tradicionalmente ocupados pelos índios. A maior de todas é a yanomami, com mais de 9 milhões de hectares, situada entre Roraima e o Amazonas, demarcada em 1992 depois que um genocídio perpetrado por garimpeiros mobilizou a sociedade.

Mas nem todo índio ocupa seu território original. Muitos povos foram desalojados. A ocupação da terra é dinâmica, com histórico de violência e lutas desde o início da conquista pelos europeus e das primeiras entradas dos bandeirantes no interior. Mais recentemente, essas lutas passaram a envolver os interesses de empresas de vários setores.

As mineradoras, por exemplo. Hoje, é proibido fazer mineração em terras indígenas. Mas dois projetos de lei, em discussão no Congresso, querem legalizar a prática. Hoje há empresas interessadas em minerar 152 terras indígenas, segundo levantamento feito pelo Instituto Socioambiental (ISA). Um dos projetos estipula que os índios fiquem com pelo menos 2% do faturamento do empreendimento. Como as empresas de mineração têm um poder político e econômico maior que o dos indígenas, existe a possibilidade de que esse "pelo menos" não tenha qualquer efeito prático – e os índios acabem ficando com apenas 2% mesmo. No Canadá, onde a mineração de terra indígena é prevista em lei, eles recebem até 50% do lucro.

Alguns povos, como os índios cinta-larga em Rondônia, já convivem com a mineração. Eles encontraram diamante na sua terra, no início da década passada, e passaram a estabelecer relações com garimpeiros de forma ilegal. Isso lhes rendeu dinheiro mas também conflitos, que culminaram com a morte de 29 mineradores em 2004. E, se alguns povos indígenas possuem interesse em explorar economicamente a mineração, outros não querem nem ouvir falar no assunto. É o caso dos yanomami. Segundo o ISA, mais da metade da terra deles poderia ser destinada a mineração, principalmente de ouro, caso essa prática seja liberada. Mas os yanomami são contra. Um dos projetos que está no Congresso prevê que, caso os índios não aceitem a mineração, ela poderá ser imposta pelo Poder Executivo, que ouviria um conselho formado por órgãos do governo, da sociedade civil e do Congresso. Se esse conselho decidisse a favor da mineração, os indígenas seriam forçados a aceitá-la.

Com ou sem mineração, os territórios indígenas já estão sendo afetados por grandes projetos de infraestrutura. O rio Tapajós, um dos maiores formadores do Amazonas, possui muitas cachoeiras quando passa pela divisa do Pará com o Mato Grosso. Uma delas é conhecida como Sete Quedas, e ficou conhecida por ser intransponível para os barcos que tentavam cruzá-la no período da economia da borracha na Amazônia, até 1913. O local servirá de base para a construção de uma usina hidrelétrica, já em curso, pelo governo. Para especialistas em energia, a obra é necessária. E para os índios munduruku, que vivem na região, um pesadelo. Um deles, o cacique Kubatiapã, conta que teve um sonho relacionado à construção da usina: "Estávamos andando, um bocado de pessoas. Pintados. Com arco e flecha nas costas, na direção do poente. Num momento vem um avião, passando pertinho. E em uma estrada, para um carro, e eles começam a atirar. Eu estava com a arma, o arco na mão, que virou uma espingarda 22. Gritei para todo mundo entrar no mato. Nos escondemos, e fomos para essa cachoeira sagrada. Lá é um lugar protegido."

Texto de Felipe Milanez

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