quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

BOTOCUDOS - A CONSTRUÇÃO DE UM INIMIGO


Uma das questões mais discutidas na historiografia brasileira em relação aos índios é a idéia da “oscilação” e “ambiguidade” da legislação indigenista colonial, visto que ora ela pendia para os interesses dos colonos pela escravização, ora para os interesses dos jesuítas pela catequização e manutenção da “liberdade” dos nativos. Caio Prado Jr., por exemplo, considerou que o projeto fundamental da Coroa Portuguesa de transformar os nativos em “colonizadores” – ou, nas palavras do próprio autor, em “elemento participante da colonização” – não foi alcançado em função de sua incapacidade de se posicionar e lidar com os interesses divergentes dos padres e colonos.

Embasado por uma percepção disjuntiva do universo indígena, o Império Português cunhou uma política que procurava regulamentar e legitimar a escravidão. Enquanto a atuação dos missionários era protegida, fomentava-se a conquista e extermínio dos grupos autóctones considerados “bravos” e “irredutíveis”, formando-se assim o todo de um projeto de colonização. Portanto, longe de basear-se em “uma luta pela justiça”, a legislação indigenista colonial estava abalizada por uma busca de legitimação dos procedimentos para o contato e utilização desses povos: “Apenas à primeira vista contraditória e oscilante, a legislação indigenista portuguesa, que por vezes autorizava a escravização dos povos indígenas (em caso de ‘guerra justa’ ou ‘resgate’) e por vezes a coibia, era na verdade o resultado da percepção das possibilidades de utilização da diversidade sociocultural dos povos autóctones e das possibilidades históricas do contato para a consecução dos objetivos concretos da empresa colonial (PUNTONI, 2002, p. 60)”.

A legislação indigenista não deve ser tomada em conjunto e generalizada a todos os índios do Brasil, sob o risco de simplificar os contornos desse quadro. Legislação e política indigenistas apresentam um corte fundamental ao se destinarem aos “índios amigos” ou ao “gentio bárbaro”. Perrone Moisés percebe, assim, “[...] uma linha de política indigenista que se aplica aos índios aldeados e aliados e uma outra, relativa aos inimigos, cujos princípios se mantêm ao longo da colonização”. Aos aliados e amigos, a liberdade foi garantida durante todo o processo; quanto aos índios inimigos, foi sempre assegurado o direito de escravizá-los com base na “guerra justa” e no “resgate”.

A separação entre índios “aliados” e índios “inimigos” feita pelos portugueses é representada pelas designações generalizantes tupi e tapuia. Enquanto tupi era o termo que identificava os grupos pacíficos, aldeados e aliados, a alcunha tapuia qualificava todos os povos que se mostraram resistentes desde os primeiros contatos e procuraram o afastamento das áreas colonizadas. Entre os inúmeros e diversificados grupos identificados como tapuias estavam os AIMORÉ, primeira denominação específica dada aos povos que mais tarde ficaram conhecidos como BOTOCUDOS. Aimoré e tapuia são expressões provenientes da língua tupi, com a qual os portugueses primeiro tiveram contato e incorporaram na comunicação pela colônia. A denominação Botocudos é fruto da visão externa e preconceituosa dos portugueses, que se tornou comum para se referir aos grupos tribais da região analisada, que tinham a tradição de utilizar botoques labiais e auriculares feitos de madeira.

Seguindo essa premissa, os viajantes e colonos que visitaram e exploraram o rio Doce espírito-santense ao longo da colonização classificaram os chamados Aimoré, Puri e Patachó como “tribos tapuias”, e a região, como “pátria dos antropófagos”. Segundo Solthey, os Aimoré do rio Doce foram considerados pelos padres jesuítas “os mais ferozes de todos os tapuias”.

Os Botocudos foram identificados como “ferozes” e “antropófagos” por todos os que com eles tiveram contato desde o século XVI, em função da forte resistência e belicosidade demonstrada. Assim, construiu-se uma visão que sobreviveu firmemente ao longo da colonização e acompanhou os homens que contra eles avançaram definitivamente no século XIX. Ao considerarmos, por exemplo, os relatos dos viajantes que os descreveram, percebemos que o interesse em vê-los pessoalmente era aguçado por pré-concepções. Dessa forma, seguindo uma visão comumente estabelecida, na primeira descrição dos Botocudos, o príncipe Maximiliano identificou-os como “estranhos e feios”, aproximando sua aparência à de “monstros”. Num segundo momento, porém, o mesmo viajante – que foi o que melhor observou e descreveu esses povos – classificou os índios Botocudos como “[...] mais bem conformados e mais belos do que os das demais tribos. [...] São fortes, em regra largos de peito e espadaúdos, mas sempre bem proporcionados; mãos e pés delicados”, descrição que dá sentido às imagens que ele produziu, aproximando-os de feições idealizadas de acordo com a concepção de beleza européia.

Os Botocudos compreendiam povos organizados em subgrupos extremamente divididos, muitos deles rivais entre si. Cada grupo era comandado por um chefe, sem caráter hereditário, com escolha norteada pela bravura demonstrada. Cabia-lhe orientações e decisões quanto a disputas internas, migrações do grupo e momentos de guerra. Eram grupos seminômades, mas que tinham seus espaços limitados nas florestas em relação aos de outros subgrupos, principalmente no que dizia respeito às áreas de caça. Ao procurarem respostas para o “fator incógnito” das sucessivas divisões e multiplicidade de etnônimos dos grupos Botocudos, Emmerich e Montserrat levantaram a hipótese de que a causa seria o faccionalismo tradicional das sociedades Macro-Jê e a secular situação de afugentamento, capaz de descaracterizar suas formas no espaço.

Apesar das divisões e rivalidades grupais, caracterizavam-se pelo compartilhamento de um mesmo sistema sociocosmológico e de linguagem, embora esta possuísse variações dialetais, o que permitia sua identificação, expressão e comunicação no jogo de alianças e rivalidades que se fez e refez ao longo do processo de contato e elaboração de estratégias de resistência e sobrevivência nos intercursos da fronteira colonial. Os grupos tinham uma rígida divisão social do trabalho, na qual cabia aos homens as atividades de guerra e caça, e às mulheres, tudo o mais que não dizia respeito a isso.

Conforme Maximiliano de Wied-Neuwied, fabricavam diversos instrumentos e utensílios para diferentes fins, como para a caça e a guerra, para a música e o adorno do corpo, e, principalmente, para utilização doméstica. Adaptados às constantes movimentações e viagens dos grupos, a simplicidade da confecção desses objetos bem como das habitações e da vida cotidiana que levavam foi muitas vezes descrita com a finalidade de demonstrar seu primitivo estado de civilização e desenvolvimento material.

Assim, o estágio de desenvolvimento dos Botocudos foi tomado como justificativa legitimadora do processo de civilização que era preciso impor-lhes. Da mesma forma, as adjetivações negativas e a classificação dos Botocudos como “inimigos da colonização” serviram para justificar as investidas ofensivas e exterminadoras contra eles, caso “teimassem” em continuar com seu modo de vida.

No século XIX, os Botocudos estiveram definitivamente no centro das atenções, seja como alvo da legislação indigenista, seja como “objetos” de interesse científico. Mencionados como protótipo dos “índios bravos”, que precisavam ser exterminados ou submetidos pelo trabalho e pelas leis, os Botocudos preocuparam as autoridades coloniais do Império Luso-Brasileiro e, após a independência (1822), do Império Brasileiro. Daí a nossa referência a eles como “índios imperiais”, em analogia às novas visões produzidas sobre os “índios coloniais”. O termo “índio colonial” foi introduzido na historiografia pela historiadora norte-americana Karen Spalding, em um ensaio sobre o Peru Colonial, com o objetivo de relevar a análise da experiência indígena na América espanhola. Designa o elemento nativo em meio à colonização, mas com “[...] um papel ativo e criativo diante dos desafios postos pelo avanço dos espanhóis”.

No Império, os Botocudos foram, na maior parte das vezes, relegados à barbárie, num momento em que, ultrapassadas as inquirições sobre a humanidade dos povos autóctones, se discutia seu lugar na escala do desenvolvimento humano, sua capacidade de viver em sociedade deixando de ser selvagens. No entanto, encontramo-los aqui como coletividades atuantes e conscientes, em movimentação não só pelos enclaves da fronteira do Doce, mas, de igual modo, pelas estruturas sociopolíticas de toda a Província. A atuação da DRD marcou um estreitamento com as questões indígenas e com o discurso pacificador inaugurado pelo Império. Nesse sentido, os diferentes subgrupos Botocudos, alvos da política de aldeamento, colocaram-se entre conflitos e negociações, entre apropriações e transmutações de elementos provenientes da inevitável trama colonial.


Baseado em texto de Francieli Aparecida Marinato

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