segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

SIWARSITUY e LLAMA MICHIQ - canções andinas de Natal


Quando se estudam os textos da música do período colonial andino, escritos em espanhol, em quéchua ou latim, fica claro que foram adaptados pelos que produziram esses textos, preponderantemente os próprios sacerdotes espanhóis, e interpretados por aqueles que passaram a cantá-los, os camponeses e índios que falavam quéchua.

Mas há outro acervo musical importante, as muitas canções religiosas anteriores à colonização, compostas nas diversas línguas andinas e que foram preservadas. Vários desses antigos hinos incas tiveram seus textos trocados, adaptando-se neles textos cristãos. Muitos destes são cantados até os dias atuais. Em Cuzco, por exemplo, celebra-se um dia santo especial, o dia do Señor de los Temblores, e durante o dia todo se cantam pela cidade as antigas canções incas, anteriores à colonização européia.

É nesse contexto que ganham importância dois villancicos tradicionais – “SIWARSITUY” e “LLAMA MICHIQ” – e o texto do “HANAQ PACHAP”. Villancicos são canções corais do século XVI, freqüentemente para o período do Natal, mas também para outras datas festivas. Nos mais conhecidos villancicos andinos cujas músicas têm forte influência espanhola, as letras são frequentemente mistas, partes andinas, partes espanholas. Alguns deles, mesmo que reinterpretados pela ótica cristã, pertencem, estilisticamente, a uma arcaica tradição inca. Esses dois villancicos são a interpretação popular, anônima, de criação coletiva que os povos andinos fizeram da cultura cristã espanhola, que tipificam substancialmente diferentes estratégicas retóricas, aproximando o cristianismo europeu e o mundo andino por dois caminhos diferentes.

O SIWARSITUY, a canção do beija-flor azul, é canção tradicional inca e o texto, naturalmente escrito em quéchua, conta de um beija-flor azul que sai a voar alegremente depois de noite escura e chuvosa. Sua estrofe diz:

“Ima kusin paqarimun, siwarsituy,
k’ancharikunmi tutapas, siwarsituy.
Para tukuykuy q’uchukuyri, siwarsituy,
sullari Hanaqpachamanta, siwarsituy”.

(“Que alegre amanhecer, meu beija-florzinho azul,
Ilumina também a noite, meu beija-florzinho azul.
Depois da chuva, alegria, meu beija-florzinho azul,
Neblina do céu, meu beija-florzinho azul”).

Os missionários cristãos, porém, apropriaram-se do Siwarsituy, que passou a ser cantado como canção de Natal para crianças. Para isso foi necessário dar ao texto uma conotação que ele nunca tivera na origem, atribuindo às frases sentido figurado, valor metafórico. O “alegre amanhecer”, então, passou a significar o novo tempo após o advento de Jesus. “Iluminar a noite” e “depois da chuva” descreveriam a chegada desse novo tempo, radiante, iluminado, após a era de escuridão que cobriu a terra e os povos, referência ao nascimento do Cristo como a chegada da luz, segundo a profecia bíblica: “O povo que andava em trevas viu grande luz, e aos que viviam na região da sombra e da morte, resplandeceu-lhes a luz” (Isaias, 12.2). O beija-flor, por sua vez, vivo, alegre, passou a ser comparado ao próprio Menino Jesus!

Curiosa essa forma de apropriação do texto, integral, direta, alterando-lhe, porém, o sentido, atribuindo-lhe novo significado, simbólico, emblemático e apropriado ao novo ensino religioso.

Em LLAMA MICHIQ, porém, a situação é outra. O texto, embora originalmente em quéchua, foi escrito, já, evidentemente de uma ótica cristã: o tema central é a viagem até Belém, local do nascimento de Jesus:

“Llama michiq, samiyuq runa,
hakuchu Belen portalman.
Belen portalman chayaykuspa
kamaqninchista kusichisun”.

(“Pastor de lhamas, homem que dá alento [fôlego],
vamos ao portal de Belém.
Quando chegarmos ao portal de Belém
alegraremos o nosso Criador.”)

O que temos aqui é a figura do pastor de lhamas, personagem tradicional da cultura inca, que, na canção, é convidado a ir até Belém alegrar o Criador. Os costumes e crenças da região, porém, foram enfatizados de forma discreta mas poderosa: o pastor de lhamas é chamado de “homem que dá o alento”, o fôlego. Ora, “dar alento”, no mundo andino, samiy em quéchua, quer dizer “fazer oferendas à mãe terra”, atribuição dos sacerdotes do culto a Pachamama, a Mãe Terra, a quem “dão o pago” com folhas da coca. No villancico do Llama Michiq, estaria o pastor de lhamas simbolizando o sacerdote inca, convidado, ele também, a visitar o Menino Jesus para alegrá-lo, prestar-lhe sua homenagem, fazer-lhe oferendas, como fazia a Pachamama? Ou o pastor seria apenas um camponês humilde, sem maiores atribuições além de cuidar bem de seus animais, dando-lhes bom alimento, não havendo aí qualquer outro significado simbólico?

O fato indiscutível é que, até nos dias atuais, inúmeros camponeses de fala quéchua ou aymara, que evidentemente conservam tradições centenárias tanto em sua vida cotidiana quanto em sua vida religiosa – se é que para os incas exista divisão assim tão nítida entre cotidiano e religião –, não hesitam em frequentar igrejas cristãs, participar de todas as festas religiosas cristãs das cidades próximas da montanha onde vivem. Em seu “¿Puede un Campesino Cristiano Ofrecer un ‘Pago ala Tierra’?”, Manuel María Marzal discute exatamente esse tipo de sincretismo, que permite ao camponês, mesmo que se admita cristão, estando entre os seus iguais respeitar as tradições e cumprir os ritos ancestrais do culto praticado por seu povo. Freqüentemente vemos quéchuas e aymaras carregando cruzes cristãs em alguma procissão católica, gente que orgulhosamente informa manter as milenares tradições do seu povo, mesmo que não explique exatamente o que isso significa. Oficialmente, afinal, 97,2% da população peruana se definem “de religião cristã” e, dentre esses, 95,7% católico-romana. Somente 6,3% se admitem de dupla filiação e – ainda mais interessante – apenas 1,3% diz pertencer a “outras” religiões, onde, supomos, deve estar incluída a religião inca.

Antes de pensar em corrupção de antigas tradições, porém, devemos nos lembrar que esses povos vivem num mundo de dualidades e sincretismos. Conseguem de forma absolutamente natural participar de uma missa e, no momento seguinte, prestar culto à sua entidade familiar, representada por uma montanha. Muitas comunidades de camponeses e indígenas, após celebrarem, por exemplo, um casamento na cidade, numa igreja cristã, oficiado pelo pároco local, partem para seus vilarejos, onde repetem a cerimônia, dessa vez sob a bênção de um líder social e religioso do povo e segundo seus próprios costumes. Entre a bênção do Deus católico e as antigas tradições, eles ficam com as duas. Alguns sacerdotes cristãos aprenderam logo, desde o início da colonização, a aceitar essa postura nativa.

Aqui se verifica a possibilidade de uma dupla interpretação do texto, uma acomodação conveniente, satisfazendo tanto os sacerdotes cristãos quanto os nativos falantes da língua quéchua, que podiam cantá-lo imaginando a continuação de suas velhas práticas religiosas. Defendemos que essa foi uma curiosa estratégia para salvaguardar seus cultos nativos ancestrais: obrigados a aceitar à força a religião do colonizador, os nativos esconderam seus cultos e deidades.

Texto de Parcival Módolo






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