A
história não escrita da língua guarani começa há cerca de 3.000 anos. Mas há
5.000 anos, na selva das línguas americanas, já se levantava um tronco do qual
brotariam, com o tempo, muitos ramos. Desse tronco, que chamaremos de tupi,
surgem oito famílias de línguas, sendo uma delas o guarani.
“Digno de notar-se é o fato de
que quase todas as línguas do tronco tupi até agora reconhecidas se encontram
na região do Guaporé, isto é, do alto Madeira. Esse fato sugere que, talvez, o
centro de difusão do Proto-Tupi deva se localizar na área do Guaporé", diz Aryon D. Rodrigues
(1964:103). Com maior ou menor número de falantes, as línguas da grande família
tupi-guarani, que são faladas até hoje, são umas 28, sem contar os dialetos e
as variedades que existem no seio de algumas delas, como a guarani. São guarani
as línguas do povo Pãi-Kaiowá no Brasil, do povo Avá – Ñandeva no Brasil – e do
povo Mbyá, que se estende pela Argentina, Brasil e Paraguai. São guaranis
também os Guarayos e os Ava – conhecidos como Chiriguaná – da Bolívia. O
guarani paraguaio é um caso à parte, pois é língua indígena colonial de uma
nação que não se reconhece como indígena, apesar de suas origens.
Como e
por que se chegou a tanta diversidade apesar da unidade de origem? No caso da
língua guarani, na qual subsistem pelo menos seis variedades dialetais, como
vimos, a explicação mais coerente e científica postula a existência de
movimentos migratórios que afastavam os diversos grupos de seu lugar de origem
e os distanciavam entre si. A “nação” guarani é o resultado dessas ondas
migratórias, embora não exista acordo até hoje para determinar seu lugar de
origem, nem as rotas de sua migração, nem mesmo os tempos em que tais migrações
ocorreram.
Muitos
arqueólogos – não todos – admitem que uma onda migratória chegou até a bacia do
rio Paraguai e por ele desceu até o Paraná, subiu por este e, seguindo as
ramificações de seus afluentes, chegou até o litoral atlântico, enquanto outros
grupos saltavam para a bacia do rio Uruguai e adentravam até o Jacuí. A
migração chegou a enfrentar os climas mais frios do delta do Rio da Prata,
segundo Pedro Ignácio Schmitz (1991). Ali, porém, podia-se plantar e colher
milho, mas não mandioca. É significativo que a palavra “avati” – milho – tenha
sido a primeira palavra guarani registrada em uma carta em castelhano de Diego
García, de 1530.
Quase
todos os guaranis se referem à sua própria cultura, àquela que os identifica
como povo, como um ÑANDE REKO, que
significa “nosso modo de ser, nosso
costume, nosso sistema e condição, nossa lei e hábito”. É claro que cada um
desses diferentes povos coloca traços específicos em seu modo de ser: sua
língua tem características próprias que a outra, de outro povo guarani, não
tem. Ao escutar um índio Mbyá falar, distinguem-se em seguida traços fonéticos que
os diferenciam, por exemplo, de um Paĩ ou de um Avá. Diga-se o mesmo de sua
cestaria, de sua cerâmica, de seus rituais religiosos, do lugar de culto, de
seus instrumentos musicais etc. Mesmo assim, é possível falar de um índio
guarani genérico e uma cultura guarani. Ele é migrante, mas ao mesmo tempo é
agricultor, vive em comunidades ou aldeias, sua organização social fundamental
é a família extensa, governa-se mediante assembleias – “aty” – pequenas ou grandes, reconhece líderes religiosos e/ou
políticos, tem uma religião baseada na palavra inspirada Pelos de Cima, palavra que se faz sacramento também mediante o
canto e a dança, e se rege por eventuais profecias, entre as quais a chamada
busca da terra-sem-mal teve preponderância.
“Guata” é caminhar, andar, viajar ou
passear, segundo o primeiro dicionário de 1639, “Tesoro de la lengua guaraní”, do jesuíta Antonio Ruiz de Montoya.
Na realidade, o caminhar faz parte da vida do guarani, que são grandes
caminhadores. Comecei a visitar e conviver com os guarani em 1969. Passávamos
boa parte do dia caminhando por aquelas selvas sem fim. Percorríamos as
armadilhas para ver se algum animalzinho havia caído nelas, buscávamos mel,
cortávamos alguns palmitos, visitávamos os vizinhos, alguns muito longe, via as
mulheres ir à roça buscar mandioca. Pelo caminho, era frequente tocar flauta.
Toda a selva estava cheia de caminhos, de pessoas que se cruzam com os caminhos
dos animais.
Já não
existem selvas agora, e caminhar pelos intermináveis campos de soja não tem
graça nenhuma, além do perigo para a saúde que isso provoca. Os próprios
produtores de soja vivem da soja, mas evitam viver na soja.
O
caminhar é provavelmente um hábito que rememora a migração. Mas se caminha
também espiritualmente, nos longos rituais. Entre os Pãi ou Kaiwá, por exemplo,
o “mborahéi puku”, o “canto longo”, é uma marcha durante 13 ou
mais céus para assim entrar na casa do Nosso Avô no fim. As longas estrofes, no
estilo de salmos, eles as comparavam, quando me traduziam seu sentido, às
marcas dos quilômetros de uma rodovia. O próprio “mito dos gêmeos”, mito das origens, é concebido como uma marcha
através do mundo e da cultura, para chegar no fim à casa da Mãe, onde há grande
abundância de alimentos e onde nos encontramos com o Pai mediante o ritual em
que as maracas fazem escutar vozes d'O Alto.
Curiosamente,
o conceito de terra-sem-mal outorgou aos guarani um caráter de modernidade
notável. Do conceito, apropriaram-se não só os antropólogos, mas também
ecologistas, filósofos, sociólogos, historiadores, poetas e teólogos. A Missa
da terra-sem-males , de Dom Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra, é em si um poema
admirável e apaixonado. Do guarani, foi amplamente divulgada a imagem de quem
busca, incansável e profeticamente, essa terra-sem-mal. Falar de guarani se
tornou quase sinônimo da busca da terra-sem-mal. Desse modo, uma experiência indígena
se tornou exemplar e paradigmática para se pensar e trabalhar uma realidade
mais ampla e geral, como é o projeto – a utopia – de uma sociedade mais
solidária e humana. Segundo os versos de Casaldáliga (1980):
Os pobres
desta terra
queremos
inventar
essa
Terra-sem-males
que vem
cada manhã
E é
verdade que as palavras “yvy marane’ÿ”
– terra sem-mal – assim como “ka’a
marane’ÿ” – selva sem-mal – constam já no “Tesoro”, de 1639, mas com um
sentido mais ecológico e realista. Trata-se de um solo intacto, de um monte ou
selva não trabalhado, de onde ainda não se tirou madeira. Por analogia, “kuña marane’ÿ” é mulher virgem, e o
epíteto foi aplicado pelos missionários à Virgem Maria. O caminho à
terra-sem-mal não desviaria do paraíso, mas, pelo contrário, faria começar aqui
e agora essa utopia, em um caminhar esforçado e livre, sem alienação e sem
opressão. A terra-sem-mal dos guarani seria, nada mais e nada menos, “a terra
da liberdade de todos os homens”, como entendeu também Casaldáliga.
Mas é
preciso esclarecer que nem todos os guarani falam da terra-sem-mal. Aos Mbyá,
parece ser uma novidade inventada por antropólogos e renegam o conceito, embora
tenham outras palavras que seriam equivalentes.
Os
guarani escolheram climas úmidos, com uma temperatura média entre 18 e 22º C,
se localizaram preferencialmente nas orlas de rios e lagunas, em lugares que
não excedem os 400 metros acima do nível do mar, habitando bosques e selvas
típicas da região subtropical. Mas a ecologia guarani não é só natureza, nem se
define pelo seu valor exclusivamente produtivo. Com uma expressão que lhe é
muito característica, o guarani se refere ao seu território como “tekoha”. Pois bem, se o “teko” é o modo de ser, o sistema, a
cultura, a lei e os costumes, o “tekoha” é o lugar e o meio em que se dão as
condições de possibilidade do modo de ser guarani. Com os próprios dirigentes
guarani, é preciso dizer que sem “tekoha” não há “teko”. O “tekoha” ideal é um
monte preservado e pouco perturbado, reservado para a caça, a pesca e a coleta
de mel e frutas silvestres. Além disso, há manchas de terra especialmente
férteis para nelas se fazer as roças e os cultivos. E, por fim, um lugar onde
será levantada a grande casa comunal, com um grande pátio aberto, ao redor do
qual crescem alguns pés de banana, de tartago, de algodão e de urucu. São esses
espaços: monte, roça e aldeia, que dão a medida da boa terra guarani.
Há até
muito pouco tempo – antes que chegasse a rápida deterioração ecológica da
região –, caminhar pelos caminhos de um “tekoha” guarani e descansar em suas
casas era ver um espetáculo e escutar uma sinfonia. Essa é a terra boa que o
guarani, caminhante, horticultor e aldeão, procurou incansavelmente para nela
cultivar e viver.
Com boa
produção agrícola, pode-se ter muita e abundante comida, e a possibilidade de
fazer festa é muito maior. O fundamento da terra guarani acaba sendo, desse
modo, a festa, onde se compartilha a alegre bebida da chicha – “kaw” –, e onde há uma festa guarani aí
está, no fim das contas, o centro da terra e a terra boa e perfeita à qual se
aspira.
Para o
guarani, há uma relação direta entre terra-sem-mal e perfeição da pessoa. O
caminho de uma leva à outra. E assim como a terra-sem-mal é real e está neste
mundo, a perfeição, que, em seu grau de excelência, inclui o não-morrer – que
não é simplesmente a imortalidade –, também é real na terra. A terra-sem-mal
como terra nova e terra de festa, espaço de reciprocidade e de amor mútuo,
produz também pessoas perfeitas, que não saberiam morrer.
Historicamente,
o guarani tem uma experiência inegável do mal na terra: é a festa impossível, a
perfeição inalcançável. São numerosas as tradições que falam de catástrofes e
cataclismos que já aconteceram e são sempre possíveis. As diversas metáforas da
destruição da terra e de seus males podem receber uma leitura natural e
desmitificada: se trataria de prolongadas secas, esgotamento do solo, diversas
pragas de animais daninhos, eclipses do sol e da lua, inundações, ataques de
inimigos... Não é essa, no entanto, a interpretação indígena. O mal na terra,
essa “coisa deforme”, nunca é um fenômeno
natural nem uma circunstância meramente ecológica. É algo que afeta e destrói o
modo de ser guarani.
Os Paÿ e
Kaiowá contemporâneos assinalam como causas que podem provocar a destruição da
terra a violência e, em especial, o homicídio, as faltas cometidas contra a
ordem moral, quando são negados a colaboração e o amor mútuo, e também a ofensa
moral, quando não há reconciliação.
O mal
atual consiste nos montes, nas cercas das fazendas que cortam os caminhos e
reduzem a nada as terras indígenas, no egoísmo dos brancos e na falta de
religião destes mesmos. É por isso que os cataclismos de sempre estão à
espreita para se abater sobre o mundo: ventos de furacão, tempestades,
incêndios, inundações, desgraças de todo o tipo, em forma de mortes repentinas,
enfermidades incuráveis, fomes e mal-estar social.
O mal da
terra não é de agora. Não há dúvida de que foi com a entrada do sistema
colonial que o mal irrompeu com força inusitada e formas inéditas. Pestes,
escravidão, cativeiro e perseguições foram os quatro cavaleiros do apocalipse
colonial. A história colonial é, para o guarani, uma progressão de males que
parece não ter fim nem limite. O pior de todos os males coloniais será
simplesmente negar a terra aos guarani. Ir aonde? Desaparecem as selvas e os montes,
tudo se torna campo, e o campo é exigido pelo branco para as suas vacas. Toda a
terra se torna mal. O “mba’e meguã”
– a coisa ruim – cobre tudo.
Migrante
e, portanto, frequentemente “trans-terrado”,
o guarani, nunca antes havia sido tão des-terrado. Agora, em busca da
terra-sem-mal, ele só teme o dia em que só haverá mal sem terra. Então, não
haverá nem terra nem palavra.
Estive
com frequência em assembléias e em rituais em que os discursos e as rezas
expressam a dramática busca do povo guarani, em vista à recuperação da
terra-sem-mal. Certamente, se apresentam dificuldades enormes, principalmente
para reconstituir um território guarani, que, por outro lado, seria de grande
valor para o Brasil inteiro e para toda a região do Rio da Prata. Os guarani continuam
lutando nessa busca. Isso lhes dá um sentido de ser, eles mesmos, profecias
vivas e de ser, para todos nós, memória de futuro.
Entrevista de Bartomeu
Melià a Patricia Fachin – IHU
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