quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

OGUATA - A CAMINHADA GUARANI



A história não escrita da língua guarani começa há cerca de 3.000 anos. Mas há 5.000 anos, na selva das línguas americanas, já se levantava um tronco do qual brotariam, com o tempo, muitos ramos. Desse tronco, que chamaremos de tupi, surgem oito famílias de línguas, sendo uma delas o guarani.

“Digno de notar-se é o fato de que quase todas as línguas do tronco tupi até agora reconhecidas se encontram na região do Guaporé, isto é, do alto Madeira. Esse fato sugere que, talvez, o centro de difusão do Proto-Tupi deva se localizar na área do Guaporé", diz Aryon D. Rodrigues (1964:103). Com maior ou menor número de falantes, as línguas da grande família tupi-guarani, que são faladas até hoje, são umas 28, sem contar os dialetos e as variedades que existem no seio de algumas delas, como a guarani. São guarani as línguas do povo Pãi-Kaiowá no Brasil, do povo Avá – Ñandeva no Brasil – e do povo Mbyá, que se estende pela Argentina, Brasil e Paraguai. São guaranis também os Guarayos e os Ava – conhecidos como Chiriguaná – da Bolívia. O guarani paraguaio é um caso à parte, pois é língua indígena colonial de uma nação que não se reconhece como indígena, apesar de suas origens.

Como e por que se chegou a tanta diversidade apesar da unidade de origem? No caso da língua guarani, na qual subsistem pelo menos seis variedades dialetais, como vimos, a explicação mais coerente e científica postula a existência de movimentos migratórios que afastavam os diversos grupos de seu lugar de origem e os distanciavam entre si. A “nação” guarani é o resultado dessas ondas migratórias, embora não exista acordo até hoje para determinar seu lugar de origem, nem as rotas de sua migração, nem mesmo os tempos em que tais migrações ocorreram.

Muitos arqueólogos – não todos – admitem que uma onda migratória chegou até a bacia do rio Paraguai e por ele desceu até o Paraná, subiu por este e, seguindo as ramificações de seus afluentes, chegou até o litoral atlântico, enquanto outros grupos saltavam para a bacia do rio Uruguai e adentravam até o Jacuí. A migração chegou a enfrentar os climas mais frios do delta do Rio da Prata, segundo Pedro Ignácio Schmitz (1991). Ali, porém, podia-se plantar e colher milho, mas não mandioca. É significativo que a palavra “avati” – milho – tenha sido a primeira palavra guarani registrada em uma carta em castelhano de Diego García, de 1530.

Quase todos os guaranis se referem à sua própria cultura, àquela que os identifica como povo, como um ÑANDE REKO, que significa “nosso modo de ser, nosso costume, nosso sistema e condição, nossa lei e hábito”. É claro que cada um desses diferentes povos coloca traços específicos em seu modo de ser: sua língua tem características próprias que a outra, de outro povo guarani, não tem. Ao escutar um índio Mbyá falar, distinguem-se em seguida traços fonéticos que os diferenciam, por exemplo, de um Paĩ ou de um Avá. Diga-se o mesmo de sua cestaria, de sua cerâmica, de seus rituais religiosos, do lugar de culto, de seus instrumentos musicais etc. Mesmo assim, é possível falar de um índio guarani genérico e uma cultura guarani. Ele é migrante, mas ao mesmo tempo é agricultor, vive em comunidades ou aldeias, sua organização social fundamental é a família extensa, governa-se mediante assembleias – “aty” – pequenas ou grandes, reconhece líderes religiosos e/ou políticos, tem uma religião baseada na palavra inspirada Pelos de Cima, palavra que se faz sacramento também mediante o canto e a dança, e se rege por eventuais profecias, entre as quais a chamada busca da terra-sem-mal teve preponderância.

Guata” é caminhar, andar, viajar ou passear, segundo o primeiro dicionário de 1639, “Tesoro de la lengua guaraní”, do jesuíta Antonio Ruiz de Montoya. Na realidade, o caminhar faz parte da vida do guarani, que são grandes caminhadores. Comecei a visitar e conviver com os guarani em 1969. Passávamos boa parte do dia caminhando por aquelas selvas sem fim. Percorríamos as armadilhas para ver se algum animalzinho havia caído nelas, buscávamos mel, cortávamos alguns palmitos, visitávamos os vizinhos, alguns muito longe, via as mulheres ir à roça buscar mandioca. Pelo caminho, era frequente tocar flauta. Toda a selva estava cheia de caminhos, de pessoas que se cruzam com os caminhos dos animais.

Já não existem selvas agora, e caminhar pelos intermináveis campos de soja não tem graça nenhuma, além do perigo para a saúde que isso provoca. Os próprios produtores de soja vivem da soja, mas evitam viver na soja.

O caminhar é provavelmente um hábito que rememora a migração. Mas se caminha também espiritualmente, nos longos rituais. Entre os Pãi ou Kaiwá, por exemplo, o “mborahéi puku”, o “canto longo”, é uma marcha durante 13 ou mais céus para assim entrar na casa do Nosso Avô no fim. As longas estrofes, no estilo de salmos, eles as comparavam, quando me traduziam seu sentido, às marcas dos quilômetros de uma rodovia. O próprio “mito dos gêmeos”, mito das origens, é concebido como uma marcha através do mundo e da cultura, para chegar no fim à casa da Mãe, onde há grande abundância de alimentos e onde nos encontramos com o Pai mediante o ritual em que as maracas fazem escutar vozes d'O Alto.

Curiosamente, o conceito de terra-sem-mal outorgou aos guarani um caráter de modernidade notável. Do conceito, apropriaram-se não só os antropólogos, mas também ecologistas, filósofos, sociólogos, historiadores, poetas e teólogos. A Missa da terra-sem-males , de Dom Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra, é em si um poema admirável e apaixonado. Do guarani, foi amplamente divulgada a imagem de quem busca, incansável e profeticamente, essa terra-sem-mal. Falar de guarani se tornou quase sinônimo da busca da terra-sem-mal. Desse modo, uma experiência indígena se tornou exemplar e paradigmática para se pensar e trabalhar uma realidade mais ampla e geral, como é o projeto – a utopia – de uma sociedade mais solidária e humana. Segundo os versos de Casaldáliga (1980):

Os pobres desta terra
queremos inventar
essa Terra-sem-males
que vem cada manhã

E é verdade que as palavras “yvy marane’ÿ” – terra sem-mal – assim como “ka’a marane’ÿ” – selva sem-mal – constam já no “Tesoro”, de 1639, mas com um sentido mais ecológico e realista. Trata-se de um solo intacto, de um monte ou selva não trabalhado, de onde ainda não se tirou madeira. Por analogia, “kuña marane’ÿ” é mulher virgem, e o epíteto foi aplicado pelos missionários à Virgem Maria. O caminho à terra-sem-mal não desviaria do paraíso, mas, pelo contrário, faria começar aqui e agora essa utopia, em um caminhar esforçado e livre, sem alienação e sem opressão. A terra-sem-mal dos guarani seria, nada mais e nada menos, “a terra da liberdade de todos os homens”, como entendeu também Casaldáliga.

Mas é preciso esclarecer que nem todos os guarani falam da terra-sem-mal. Aos Mbyá, parece ser uma novidade inventada por antropólogos e renegam o conceito, embora tenham outras palavras que seriam equivalentes.

Os guarani escolheram climas úmidos, com uma temperatura média entre 18 e 22º C, se localizaram preferencialmente nas orlas de rios e lagunas, em lugares que não excedem os 400 metros acima do nível do mar, habitando bosques e selvas típicas da região subtropical. Mas a ecologia guarani não é só natureza, nem se define pelo seu valor exclusivamente produtivo. Com uma expressão que lhe é muito característica, o guarani se refere ao seu território como “tekoha”. Pois bem, se o “teko” é o modo de ser, o sistema, a cultura, a lei e os costumes, o “tekoha” é o lugar e o meio em que se dão as condições de possibilidade do modo de ser guarani. Com os próprios dirigentes guarani, é preciso dizer que sem “tekoha” não há “teko”. O “tekoha” ideal é um monte preservado e pouco perturbado, reservado para a caça, a pesca e a coleta de mel e frutas silvestres. Além disso, há manchas de terra especialmente férteis para nelas se fazer as roças e os cultivos. E, por fim, um lugar onde será levantada a grande casa comunal, com um grande pátio aberto, ao redor do qual crescem alguns pés de banana, de tartago, de algodão e de urucu. São esses espaços: monte, roça e aldeia, que dão a medida da boa terra guarani.

Há até muito pouco tempo – antes que chegasse a rápida deterioração ecológica da região –, caminhar pelos caminhos de um “tekoha” guarani e descansar em suas casas era ver um espetáculo e escutar uma sinfonia. Essa é a terra boa que o guarani, caminhante, horticultor e aldeão, procurou incansavelmente para nela cultivar e viver.

Com boa produção agrícola, pode-se ter muita e abundante comida, e a possibilidade de fazer festa é muito maior. O fundamento da terra guarani acaba sendo, desse modo, a festa, onde se compartilha a alegre bebida da chicha – “kaw” –, e onde há uma festa guarani aí está, no fim das contas, o centro da terra e a terra boa e perfeita à qual se aspira.

Para o guarani, há uma relação direta entre terra-sem-mal e perfeição da pessoa. O caminho de uma leva à outra. E assim como a terra-sem-mal é real e está neste mundo, a perfeição, que, em seu grau de excelência, inclui o não-morrer – que não é simplesmente a imortalidade –, também é real na terra. A terra-sem-mal como terra nova e terra de festa, espaço de reciprocidade e de amor mútuo, produz também pessoas perfeitas, que não saberiam morrer.

Historicamente, o guarani tem uma experiência inegável do mal na terra: é a festa impossível, a perfeição inalcançável. São numerosas as tradições que falam de catástrofes e cataclismos que já aconteceram e são sempre possíveis. As diversas metáforas da destruição da terra e de seus males podem receber uma leitura natural e desmitificada: se trataria de prolongadas secas, esgotamento do solo, diversas pragas de animais daninhos, eclipses do sol e da lua, inundações, ataques de inimigos... Não é essa, no entanto, a interpretação indígena. O mal na terra, essa “coisa deforme”, nunca é um fenômeno natural nem uma circunstância meramente ecológica. É algo que afeta e destrói o modo de ser guarani.

Os Paÿ e Kaiowá contemporâneos assinalam como causas que podem provocar a destruição da terra a violência e, em especial, o homicídio, as faltas cometidas contra a ordem moral, quando são negados a colaboração e o amor mútuo, e também a ofensa moral, quando não há reconciliação.

O mal atual consiste nos montes, nas cercas das fazendas que cortam os caminhos e reduzem a nada as terras indígenas, no egoísmo dos brancos e na falta de religião destes mesmos. É por isso que os cataclismos de sempre estão à espreita para se abater sobre o mundo: ventos de furacão, tempestades, incêndios, inundações, desgraças de todo o tipo, em forma de mortes repentinas, enfermidades incuráveis, fomes e mal-estar social.

O mal da terra não é de agora. Não há dúvida de que foi com a entrada do sistema colonial que o mal irrompeu com força inusitada e formas inéditas. Pestes, escravidão, cativeiro e perseguições foram os quatro cavaleiros do apocalipse colonial. A história colonial é, para o guarani, uma progressão de males que parece não ter fim nem limite. O pior de todos os males coloniais será simplesmente negar a terra aos guarani. Ir aonde? Desaparecem as selvas e os montes, tudo se torna campo, e o campo é exigido pelo branco para as suas vacas. Toda a terra se torna mal. O “mba’e meguã” – a coisa ruim – cobre tudo.

Migrante e, portanto, frequentemente “trans-terrado”, o guarani, nunca antes havia sido tão des-terrado. Agora, em busca da terra-sem-mal, ele só teme o dia em que só haverá mal sem terra. Então, não haverá nem terra nem palavra.
Estive com frequência em assembléias e em rituais em que os discursos e as rezas expressam a dramática busca do povo guarani, em vista à recuperação da terra-sem-mal. Certamente, se apresentam dificuldades enormes, principalmente para reconstituir um território guarani, que, por outro lado, seria de grande valor para o Brasil inteiro e para toda a região do Rio da Prata. Os guarani continuam lutando nessa busca. Isso lhes dá um sentido de ser, eles mesmos, profecias vivas e de ser, para todos nós, memória de futuro.

Entrevista de Bartomeu Melià a Patricia Fachin – IHU On-Line

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