terça-feira, 5 de outubro de 2010

AYMARAS

A história dos AYMARAS está intimamente ligada ao Titicaca, na região conhecida como Altiplano, a 3.812 metros de altitude. Por estar situado em clima árido, o Titicaca sempre atraiu às sua margens, uma infinidade de grupos que vagavam em busca de melhores condições para sua sobrevivência.

Não podemos afirmar com segurança que os aymaras constituíram um único grupo migratório. Antes deles, haviam-se fixado grandes nações como a Chiripa (1350 aC - 100 dC), Pucara (1100 aC - 100 dC) e Tiwanaku (1580 aC - 1200 dC) - que atingiu o grau de civilização, estabelecendo os futuros padrões regionais para a agricultura, arte, arquitetura e religião, usados depois por outras nações, como os incas. Com a fragmentação dos Tiwanakus em 1200 dC, diferentes grupos aymaras passaram a ocupar às margens férteis do Titicaca, assimilando parte do conhecimento deste grande império extinto.

Por este motivo, não é exagero afirmar que a cultura aymara tem na língua, o seu mais precioso bem. Na verdade, é ela que determina quem faz parte ou não desse grupo social. Embora tivessem herdado um rico legado, não conseguiram em sua curta existência de domínio regional (1200-1400 dC) fixar padrões sociais sólidos. Viviam ainda uma fase de assentamento, quando da invasão incaica, de língua quéchua.

Os aymaras sobreviveram, portanto, a duas grandes invasões: a dos incas e espanhóis. Mas da forma como os invasores chegaram, se foram. E os aymaras ficaram, isolados no Altiplano, em meio ao caos social. Aceitaram a contra gosto as novas imposições político-religiosas, mantendo suas crenças de forma quase clandestina, numa resistência silenciosa.

Muito das crenças aymaras são provenientes de tempos mais remotos. Quando de sua chegada, em 1200 dC., diversos povos já haviam estabelecido suas HUACAS na região, ou seja, seus locais e objetos sagrados. Seu conceito é complexo e abrangente. Ela pode ser uma rocha, árvore de formato estranho, uma montanha, ilha, caverna ou o próprio Titicaca. Uma huaca sempre guarda ligação com algum Espírito protetor de uma família ou comunidade.

Esse conceito ainda hoje é utilizado. Muitas vezes, nem os próprios camponeses sabiam me explicar o motivo dessa adoração. O vulcão Kapía (4809 m), próximo a Yunguyo, é um deles. A cidade (50 mil hab) é tipicamente católica, mas discute ainda os perigos de quem se aventura nos vales próximos ao vulcão. Muitos acreditam que aquela seja uma das regiões habitadas pelo Nakaq (ou Kjarisiri), um anão degolador que vive soturnamente atrás de vítimas para delas extrair sua gordura, utilizada na confecção de velas, lubrificantes e operações hospitalares. Esta lenda encontra ecos em tradições da conquista espanhola e revela como os aymaras vivem mergulhados num mundo mítico que os cerca.


O vulcão Kapía é uma huaca, e como tal, visitada pelos camponeses. É comum encontrar, nas encostas da montanha, pequenos grupos em direção a alguma encosta para depositarem suas oferendas (folhas de coca, velas, grãos e aguardente) em pequenos casulos de pedra, na esperança de dias melhores.

Na margem oposta do Titicaca, na Península de Huata, pode-se ver monólitos: estátuas de pedra lapidadas com motivos variados. Alguns deles cercados por pequenos muros de pedra, tornaram-se locais depositários de oferendas. Infelizmente, muitas dessas antigas estátuas estão sendo roubadas por huaqueros (traficantes arqueológicos), que as vendem a estrangeiros.

Em todo o Titicaca, com os primeiros raios solares, podemos presenciar comunidades camponesas que antes de iniciarem as tarefas diárias, reúnem-se em círculo para mascar coca e conversar. Essas ações comunitárias são frequentes entre eles. Ainda podemos encontrar, embora de forma cada vez mais rara, a tradição da Zafa-Casa, onde a comunidade se reúne durante alguns dias em festa, enquanto ergue a casa de moradores que irão se unir em matrimônio. Os laços comunitários quase nunca envolvem dinheiro, mas a garantia de auxílio e a segurança de poder sempre contar com alguém. A educação comunitária ensina aos jovens que para sobreviver no mundo hostil do Altiplano, precisa existir união. Não apenas a união proveniente da zafa-casa, mas a deles mesmos, enquanto indivíduos, com o mundo mítico do Titicaca. Os jovens compreendem que fazem parte de um todo, uno e indivisível, marcado pela presença de forças antagônicas.


Desta forma, o conceito de sagrado entre os aymaras não se restringe a um culto específico ou deus em particular. Podemos dizer que se aproximam muito de um culto animista - reforçado por suas tradições comunitárias - dedicado às forças da natureza e as Espíritos diversos que vagam pelo Altiplano, interferindo de alguma forma em suas vidas diárias, de acordo com as oferendas que lhes são prestadas.

Pachamama, a "Mãe Terra", é provavelmente o maior símbolo desse culto. A palavra "Mãe" significa apenas o termo ocidental mais próximo que foi encontrado por tentarmos compreendê-la. Não existe uma terminologia moderna que possa, ou sequer consiga, expressar seu vasto significado. Ela é o próprio tempo em movimento, o espaço indivisível e onipresente. É o solo divinizado, possuidor da vida. Algo por demais global para ser traduzido em palavras. Tanto, que não existe um dia comemorativo para Pachamama: ela tornou-se inseparável do cotidiano! Mas se ela é tão importante, não deveriam existir imagens para sua adoração? Isso não ocorre. O aymara não precisa recorrer a esse tipo de artifício para falar com seus Espíritos, pois eles estão ao seu lado, como estão as árvores, pedras, rios, animais e tudo o mais, integrados e expostos às intempéries da vida.

Então, como podemos crer na imagem de um aymara carregando a cruz durante uma procissão católica? Cena comum em Copacabana, a "capital" católica do Altiplano. Devemos encarar isso como uma corrupção de suas antigas tradições? O povo aymara convive num mundo cheio de dualidades e sincretismo. Conseguem de forma absolutamente natural, participar de uma missa e no momento seguinte, prestar culto a seu Espirito familiar representado por uma montanha. Os padres de Copacabana aprenderam a aceitar a postura nativa. A repressão a tais tradições milenares dificilmente obterá resultados.

Não longe dali surge a Ilha do Sol, imponente e misteriosa, guardiã de uma das mais antigas rotas sagradas da América: o Kapac Nan. No período pré-incaico, diversos grupos peregrinavam em busca deste local, controlado por diversas nações. A última a administrá-la foram os incas, que iniciaram até mesmo a construção de um gigantesco muro para isolar o local, tamanha sua importância. Manipular o sagrado significava exercer um vasto poder perante as demais nações. Hoje restam poucos vestígios desse passado na ilha. A maioria dos templos foi demolida pelos espanhóis, que não compreendiam a cosmovisão nativa. A construção de uma catedral católica em Copacabana não é portanto, casual. Representa o controle do sagrado, agora em mãos dos de língua espanhola.

Recentemente, os Aymaras obtiveram um avanço significativo na educação de seu povo, ao elevarem o dialeto aymara à condição de língua nacional. Reconhecidos, podem agora praticá-la com maior liberdade nas escolas comunitárias, reforçando seus laços com as antigas tradições. As novas gerações vivem com um pé no mundo mítico do Titicaca e outro na dura realidade camponesa. Dividem-se entre as maravilhas tecnológicas mostradas pela TV e a falta de estrutura de suas cabanas. Contudo, ao olharem diariamente para a paisagem, continuam a sentir a força da terra, o vento gelado e cortante em seus rostos e o sol que queima a pele a 4000 metros de altitude. E quando precisarem recorrer ao auxílio para sua sobrevivência, certamente olharão para as montanhas, para suas huacas e para os laços de sua própria coletividade.

Baseado em texto de Dalton Delfini Maziero

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