Os caraí vivem retirados, afastados das aldeias, e nunca residem com os demais (inclusive com os chefes) nas grandes casas comunais – como fazem os outros xamãs. Yves d’Evreux, entrevistando Pacamonte, um caraí, colhe a seguinte explicação: “Todo caraí demonstra uma gravidade exterior; falam pouco, amando a solidão, e evitam o mais que podem as companhias (...) e erguem suas moradas à parte, afastadas de vizinhos. Não é bom nem conveniente que nós, de quem dizem que conversamos com os Espíritos, sejamos levianos ou fáceis e às primeiras novidades nos ponhamos a caminho: porque somos olhados por nossa gente (nhadê – os primeiros humanos) e eles seguem nossos gestos e palavras. Os volúveis e os que, ao primeiro ruído, enfeitam-se com penas e vão ver às pressas o que aconteceu de novo, são pouco estimados e não se tornam grandes principais”. Essa bela lição de técnica de vida dos grandes desse mundo dispensa comentários e merece ser citada. Assim, o comportamento dos caraí, seu modo de vida, os designa como personagens excepcionais.
Mais ainda do que uma atitude apenas destinada a ressaltar sua importância, esse isolamento deliberado é uma maneira de marcar que eles possuem um estatuto à parte, que não pertencem verdadeiramente a uma comunidade específica, que não são de lugar algum. Com efeito, eles não só vivem afastados numa morada feita para seu uso exclusivo (enquanto toda a comunidade vive em grandes casas comunais, organizadas por parentesco), como também permanecem pouco tempo na mesma aldeia. Deslocam-se constantemente, percorrendo províncias inteiras. Uma vida errante! Aliás, mais um traço que os opõe às outras categorias de xamãs. Os caraís evitam misturar-se com os outros, participar das conversas e sobretudo dos vários trabalhos; jejuam constantemente, recusando às vezes ostensivamente a comida que lhes é oferecida e pretextando que não têm necessidade alguma de alimento. Mas, em certos momentos do dia, dirigem-se à aldeia reunida, através de discursos muitas vezes bastante compridos.
Nas suas andanças, os caraí podem percorrer todas as aldeias de uma província, inclusive aldeias inimigas. E isso só eles podem fazer. Em várias cartas, os jesuítas assinalavam essa liberdade desfrutada pelos profetas e que lhes permitia circular, como melhor entendessem, entre as províncias inimigas. E Soares de Souza dá uma curiosa informação que talvez possa lançar luzes no seu sentido: “Entre este gentio são os músicos mui estimados e, por onde quer que vão, são bem agasalhados, e muitos atravessaram já o sertão por entre seus contrários, sem lhes fazerem mal”. O mesmo autor diz, ainda, que os tupi desistiam, às vezes, de comer um prisioneiro de guerra se este fosse um bom cantor. Mas ser um ótimo cantor não significa apenas ser capaz de modular agradáveis melodias, mas sobretudo poder cantar muito tempo e enunciar conteúdos significativos – ÑE’E PORÃ, as “Belas Palavras”. O canto é um DISCURSO... pontuado, entrecortado de melodias não faladas. Se, portanto, os tupis poupavam esses cantores excepcionais, é porque deviam reconhecê-los como caraís – já que esses podiam acompanhar expedições guerreiras, mesmo não combatendo.
Essa dupla liberdade dos caraís quanto ao espaço – exteriores à aldeia e exteriores à província – é sinal de um estatuto duplamente marginal. Pelo menos ideologicamente, seu estatuto torna-os exteriores às alianças políticas e exteriores ao parentesco. Pois estar fora da comunidade não significa apenas morar afastado; ou melhor, esse afastamento só manifesta uma exterioridade mais profunda: a que situa o caraí fora, do ponto de vista social (e não apenas espacial) do que precisamente constitui uma comunidade – a rede de parentesco.
A impressão que nos fica é de que nunca se sabe DE ONDE VÊM os caraís: nem de qual lugar do espaço, nem – por conseguinte – de que ponto da genealogia. Indo e vindo constantemente, portanto sem residência, estão em toda parte e, por isso mesmo, em nenhum lugar. Lozano diz que eles afirmam não serem nascidos de pai, mas somente de mãe. Não ter pai, para os tupi-guarani, que são patrilineares, é não ter parentes. De modo que, enunciando tal pretensão – ter nascido só de mulher –, os caraís exprimem e reivindicam o estatuto ideal da liberdade. São aparentados, sim, com os caraíbas míticos, os heróis culturais, cujo espírito atualizam. Os poderes atribuídos aos caraís evocam os daqueles caraíbas: são capazes de se “transformarem” em animais; sabem fazer o milho e as plantas crescerem sozinhas; podem resgatar a alma dos mortos. E como os aqueles, também vivem na solidão, falando pouco e praticando grande abstinência.
Essa semelhança explica o fascínio que os caraís exercem... e porque devemos chamá-los, não de xamãs, mas de PROFETAS e HOMENS SANTOS.
Baseado em texto de HÉLÈNE CLASTRES
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