A justiça comunitária, ou justiça originária indígena campesina, é o sistema jurídico dos povos indígenas, administrado pelas autoridades originárias e regido pelas normas e procedimentos por meio dos quais os povos indígenas, originários e comunidades campesinas regulam a vida de suas comunidades e solucionam conflitos.
Quando acontece um roubo na comunidade aimara de Calangachi, perto do Lago Titicaca, no departamento de La Paz, vários passos devem ser seguidos. A vítima, em primeiro lugar, deve ir até as autoridades responsáveis, os secretários de Justiça. Em seguida, as autoridades mobilizam toda a comunidade para comunicar que uma família sofreu um roubo e inicia-se uma investigação. “Começam a deliberar, a rastrear. O campo não é de cimento nem de tapete, onde não se pode ver nada. No campo, se podem ver as pegadas na terra”, explica Rodolfo Machaca, dirigente da comunidade.
Localizado o acusado, este é submetido a uma censura moral por parte de toda a comunidade. Publicamente, ele – ou ela – deve explicar as razões do delito. “O ladrão fala, pode dizer a verdade ou mentir. Mas isso não interessa. O que interessa é que nesse momento ele reflita profundamente sobre o que fez e devolva o que roubou”, aponta Machaca. A penalidade é pedir desculpas não só para a vítima, como também para toda a comunidade, além de se comprometer a não voltar a cometer o mesmo erro. Também pode ter que compensar a comunidade com trabalho (construção de adobes, trabalho nas terras das escolas, reforma de prédios comunais).
E, em Calangachi, se recebe um huascazo, uma chicotada, como forma simbólica de garantir que não se desviará do caminho correto. Mas a punição não se resume a isso. Durante um bom tempo, a pessoa é vigiada de perto por todos da comunidade, e uma pessoa da sua família deve responsabilizar-se por sua conduta. “Os olhos de todos os comunários ficam voltados para essa pessoa, onde está, o que está fazendo, se está trabalhando. Todos vigiam. A intenção é fazer com que ela comece a trabalhar e a se comportar bem”, completa Rodolfo Machaca.
Segundo o conjunto de normas de muitas comunidades, a mentira e a preguiça também são vistas como delito. Isso porque afetam diretamente a comunidade e a convivência harmônica entre seus membros. Ama sua, Ama llulla, Ama quella (Não seja ladrão, não seja mentiroso, não seja preguiçoso) são normas de fundamental importância para os povos quéchua e aimara. E como romper essas regras é um delito, também são vistos como uma vergonha, passível de punição.
“No caso da mentira, é igual. Convoca-se o comunário para que explique por que mentiu. Depois de horas de conversa, ele começa a falar e se conscientiza, desde o coração, passa a dizer a verdade e explica por que mentiu. As autoridades recomendam que não faça isso, mas, por um tempo, mesmo que ele esteja falando a verdade, tudo o que sair dos seus lábios não é crível para a comunidade. Para recuperar a confiança, tem que corrigir sua conduta. É uma sujeição psicológica, para restaurar a pessoa. Isso se chama ‘inserção’ na comunidade”, explica Machaca.
COMUNIDADE
Em cada comunidade, vivem entre 80 e 100 famílias, dependendo das características de cada região. Cada grupo tem suas próprias regras e normas, de acordo com usos e costumes muitas vezes milenares. “Isso serve para regular o caráter de uma família, de uma pessoa e da coletividade”, salienta Rodolfo Machaca. Essas normas têm a ver com o mesmo significado de “ser” comunidade: ali, todos são família e qualquer dano ao outro é visto como grave. “A vida tem de ser harmônica. Harmônica com a Mãe Terra e também entre nós, como seres humanos”, considera Julia Ramos, secretária-geral da Confederação de Mulheres Campesinas Bartolina Sisa.
Julia é de outra comunidade, quase do outro lado do país, Ancón Grande, no departamento de Tarija. No local, os problemas se resumem principalmente a danos causados por animais. “Por exemplo, temos nossas vacas, nossos burrinhos. Se eles entram no seu cultivo e causam dano, o primeiro passo é tentar entrar em um acordo, você e eu. Tenho que reconhecer, mas se não quero pagar, digo: ‘Não vou fazer nada’. Aí vem o conflito, e temos de nos dirigir às autoridades da comunidade, que são como mediadoras”, informa Julia. “Aí entramos em acordo, não ofendo você, que também não me ofende. E na mesma ata constam as penalidades. Se voltar a acontecer, tem de se pagar multa. O melhor, como dizemos em Tarija, é levar a festa em paz. Nos ajudamos, cooperamos, e aí continua a vida em comunidade”.
O prestígio e o respeito de cada um estão de acordo com o seguimento das normas. “Na comunidade, ninguém quer ser conhecido como sendo de uma ‘família ruim’. ‘Essa é família de ladrões, ou de mentirosos, como você vai se casar com essa pessoa?’, assim se comenta. Por isso, desde wawitas [crianças], nos dizem: ‘Não vá cometer erros’ ”, relata a vice-ministra de Justiça Originária Indígena e Campesina, Isabel Ortega, nascida em uma comunidade do departamento de Oruro.
GRATUITA E REPARADORA
As normas dos povos indígenas, originários e comunidades campesinas constituem em conjunto seu próprio Direito, e vão criando precedentes pela repetição e pela prática cotidiana. É bom esclarecer que o sistema jurídico dos povos indígenas não é um meio alternativo de solução de conflitos, e sim uma jurisdição especial, composta por autoridades, normas e procedimentos administrados no contexto e sobre a base da cultura e valores de cada povo indígena.
A Constituição boliviana reconhece 36 etnias, mas, segundo o Conselho de Ayllus e Marcas do Qollasuyo (Conamaq), existem no país pelo menos 54 etnias ou nações originárias. Cada uma delas possui um conjunto de normas e, assim, seu próprio Direito. Algumas dessas etnias estão isoladas, e são de difícil acesso, seja por questões geográficas ou por opção (como é o caso dos Pacahuaras), o que faz com que conhecer as normas, usos e costumes de cada uma delas seja um desafio e uma dificuldade para pesquisadores e mesmo para o Estado boliviano.
Mas existem características já identificadas como comuns nos diferentes tipos de justiça originária. Uma delas é a gratuidade. Para as comunidades, esse é um ponto muito importante. A Justiça, assim como o trabalho das autoridades, faz parte de uma lógica de trabalho comunitário e tem a ver com direitos que são de todos. Portanto, não deve ter valor financeiro. “A justiça ordinária funciona com dinheiro e o governo tem que destinar recursos para que funcione, tem que pagar o salário dos juízes, dos funcionários. A energia que move a justiça ordinária é o dinheiro”, considera Rodolfo Machaca. Também por não depender de papéis, advogados e juizados, a justiça originária é rápida. “Não passa por outras instâncias e é muito mais rápida. Não tem suborno, não tem chantagem, não tem processo. Não tem que perder o tempo procurando advogado. Só tem que ir diante da autoridade originária competente”, conta Juan José Sardina, da nação Chichas, localizada ao sul do departamento de Potosí.
E a justiça originária é, principalmente, reparadora. Ou seja, não busca uma punição por vingança, e sim soluções práticas para o bem de toda a comunidade e a reintegração do infrator. Por essa razão, depois do julgamento e do trabalho comunitário que deve realizar, aquele que infringe as regras deve ir a todas as casas de toda a comunidade para se desculpar. E todos dão conselhos. A partir desse momento, todos são responsáveis. “Porque dentro de um ayllu, se entende que temos que conviver como família. Isso é o ayllu”, explica Juan José.
Nos casos de delitos graves, como assassinato e violação sexual, o acusado é encaminhado à justiça ordinária, além de receber também uma punição por parte da comunidade, a mais dura de todas: o desterro. Isso significa perder tudo, ser apagado da memória da comunidade, deixar de existir para aqueles que antes eram sua família. “Aquele que ‘elimina’ uma pessoa, com ou sem motivo, é expulso da comunidade e entregue à polícia. Perde todos os seus bens, seu terreno, sua casa, tudo. Cometeu um delito grave e não merece a convivência em comunidade”, detalha Rodolfo Machaca.
RECONHECIMENTO
Sendo um sistema jurídico com estrutura e procedimentos próprios, a justiça originária indígena campesina não engloba a “justiça” feita pelas próprias mãos por uma multidão eventual. “Os linchamentos não têm nada a ver com a justiça dos povos originários. Essas pessoas que usam o discurso da justiça comunitária estão usando isso para encobrir um delito, que é o linchamento, que é tomar a justiça pelas próprias mãos sem um processo justo, sem uma resolução, sem análise e sem investigação”, explica o advogado Yamil Vera Callisaya.
O artigo 190 da Constituição boliviana estabelece que “a jurisdição indígena originária campesina respeita o direito à vida, o direito à defesa e demais direitos e garantias estabelecidos na Constituição”. “Eu não posso dizer que estou fazendo justiça se estou me convertendo em um assassino”, considera Julia Ramos. “É preciso respeitar o direito à vida. A justiça indígena não mata e não lincha, ela orienta”, explica a vice-ministra, Isabel Ortega.
O reconhecimento pela Constituição foi um primeiro passo importante, mas ainda existem muitas arestas a serem aparadas. “É preciso fortalecer nossa justiça indígena originária em nível nacional e também coordenar para que as duas justiças se apoiem”, considera Isabel Ortega. “Temos que recordar que esse modelo de justiça veio de um grupo social que formou durante séculos sua própria cultura, e tem sua própria filosofia de vida. Muita gente não entende bem por que se aplica essa justiça, como se aplica e tampouco querem entender ou aplicar essa justiça. E quando um advogado ou um jurista vai a uma comunidade, querem impor as leis que aprenderam na universidade”, considera o advogado Yamil Vera.
Provavelmente o tema não passa pela aceitação ou pela tolerância. Neste momento, isso é pouco. A hora é de aprender. “Queremos reconstruir os valores que tiveram nossos ancestrais, nossos antepassados. Não como está a sociedade agora, com ameaças para a tranquilidade da vida do ser humano, dos animais. Não faltam depredadores da natureza, de animais, de seres humanos. Aonde estamos chegando?”, questiona Rodolfo Machaca. Boa pergunta.
BREVE HISTÓRICO DA JUSTIÇA INDÍGENA
No que agora é o território boliviano, antes de se tornar colônia, existiram vários sistemas jurídicos. O mais importante foi o Tawantinsuyo andino, que se expandiu desde o sul da Colômbia até o que hoje é o norte do Chile. Mas também existiram outros modelos como é o caso dos guaranis, chiquitanos, mojeños, pacahuaras, guarayos, entre outros – hoje se reconhecem 36 nações originárias e, todavia, existem nações não reconhecidas.
Durante o período como Colônia, o governo impôs seu modelo de Direito e seu próprio sistema jurídico aos habitantes originários que viviam na região. Muitos conhecimentos dos povos foram perdidos, nações inteiras exterminadas. “Os espanhóis chegaram para nos invadir, mas desde antes tínhamos nossas autoridades e nossas leis. Quando nos invadiram quiseram que deixasse de existir nossa justiça, mas nós seguimos”, considera a vice-ministra de Justiça Indígena Originária e Campesina, Isabel Ortega.
Como consequência da aprovação do Convênio 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas (1989) e da Marcha pelo Território, a Dignidade e a Vida protagonizada pelos povos indígenas de terras baixas da Bolívia (1989), em 1994 houve uma reforma na Constituição dessa época, reconhecendo o Estado boliviano como “multiétnico e pluricultural” e dando o direito às comunidades indígenas e campesinas de administrar seu próprio sistema jurídico.
Mas só em 2006, com a ascensão de um descendente aimara à Presidência do país, criou-se pela primeira vez na estrutura orgânica do Poder Executivo um vice-ministério dedicado à justiça originária, o Vice-Ministério de Justiça Comunitária, hoje denominado Justiça Indígena Originária Campesina. Em setembro de 2007, o sistema jurídico dos povos indígenas foi reconhecido pela Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, sendo ratificado dois meses depois como lei boliviana. Em 2009, foi promulgada a nova Constituição do país, que deu especial espaço à justiça originária.
Texto de Lídia Amorim, em “Revista Fórum Semanal
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