sexta-feira, 26 de julho de 2013

NÃO SOMOS CHILENOS, SOMOS MAPUCHES!

Não somos chilenos, somos mapuches!”. Essa é uma das frases repetida por Matías Catrileo, uma das lideranças mapuches presente em inúmeros vídeos que circularam nacionalmente no Chile nos últimos tempos. O pano-de-fundo: o conflito entre as reivindicações mapuches e os interesses políticos e econômicos que objetivavam desarticulá-los, seja pela política de criminalização exercida por meio do Estado, seja, no limite, pela sua eliminação política e cultural.

As redes de televisão chilenas, em geral, acabaram por reduzir as imagens transmitidas a discursos binários e marcados pela força do estigma: os mapuches de um lado, sob o discurso da periculosidade, e a polícia do outro, sob a necessidade de melhor organizar-se para debelar os entes perigosos.

Matías Catrileo foi mais um a cair pela força dos Carabineros de Chile, a polícia nacional, nos últimos anos. De toda a forma, trata-se de uma frase potente: a sua força torna-se reveladora da essência do conflito que se instaurou no Chile entre o Estado (muitas vezes representando os interesses de empresas transnacionais) e a Nação Mapuche.

Este é um conflito que não se inicia com a independência nacional, em 1818, mas que, no entanto, se agudiza a partir daí gestando não apenas a redução territorial do povo mapuche, como também um processo brutal de criminalização – o movimento que separou o Chile de Espanha acabou por permitir que a elite emergente deixasse o país à mercê do imperialismo inglês. Mas foi sensivelmente desde a década de 1990 que a tecnocracia estatal articulou o legado colonial da perspectiva sobre os mapuches, os interesses dos filhos das elites que se pronunciavam após a independência e a política econômica que resultou na entrega progressiva ao neoliberalismo.

Apesar das nuances nesta conflitual relação dos mapuches com o Estado desde tempos mais distantes, é justamente nessa década, em meados de 1990, que a distinção mais abrupta do movimento mapuche vem à tona em resposta à opressão estatal: cresce fortemente a reivindicação pelo reconhecimento das especificidades socioculturais mapuches face ao restante da comunidade chilena. Se por um lado o domínio do Estado buscava atingir a sua totalidade, é justamente da tensão deste processo que o movimento mapuche emerge com discursos bem mais elaborados, utilizando-se da sua identidade.

A ligação entre identidade e terra é visceral na cosmovisão mapuche, no entendimento de si e da sua comunidade, do próprio wallmapu, o País Mapuche. Mapu significa terra, enquanto che significa pessoa. Há aqui uma ligação indissociável da identidade coletiva e individual com o meio: a pessoa, o que ela é (e representa), está intimamente ligado à terra. O mapuche é literalmente a “gente-da-terra”, ele complementa a terra – o seu território – e a terra o adorna reflexivamente de significados para que sua própria existência seja preenchida de sentido. O indivíduo nasce da sua relação com o meio, com a biodiversidade. O segredo desta ecologia assenta em três conceitos que se entrelaçam em espírito na relação humano-natureza: bem-estar, qualidade de vida e lei natural/auto-regulação da natureza.


A ecologia mapuche, como nos informa J., jovem liderança mapuche, resume-se ao entrelaçar dos conceitos de vida e terra: “as águas e árvores são meus irmãos, como você. Defender a [nossa] cultura está ligado à terra, ao nosso lugar, à nossa forma de ver o mundo”. Há um leque de inconformidades transversais à relação entre o povo mapuche e o povo chileno. Os valores socialmente atribuídos à construção da pessoa e presentes na sua relação com o meio são permeados de lógicas aparentemente inconciliáveis.

Enquanto o mapuche busca sua harmonia com o meio considerando a si próprio como sua parte dependente, os winkas (ocidentais; literalmente significa "novos incas") são providos pelas reminiscências do iluminismo, resultando na apreensão da natureza como algo inerte, pronto a ser explorada e domada pelas técnicas humanas de produção. J. acredita que esta incompreensão é fruto da separação entre o humano e a natureza nos winkas: “Nosso sistema… explica o [ser-]mapuche, mas não o winka… A natureza do [nosso] espírito é distinta, é feita de outra coisa e obedece a outra lógica. Somos mais espirituais, tudo está conectado; o winka vê a posse, divide as coisas e parece não estar conectado a elas”.

Logo, o movimento mapuche reclama não somente a reconstrução da sua identidade há muito desvalorizada e corroída pelo processo colonial, mas remete à vontade de criação de uma identidade coletiva que face ao projeto de Nação chileno passa a reafirmar-se pelo questionamento do outro estabelecido: da sociedade chilena e do próprio Estado.

Não sem razão, Bebber Ríos aponta para a década de 1990 como um marco referencial na modificação da luta mapuche, onde não apenas o território será reivindicado, mas a própria necessidade de se afirmar a sua autonomia, ou wallmapu tañi kizungünewün (autogobierno del País Mapuche), em relação ao Estado Chileno.

Esse reafirmar se expressa na busca da recuperação e na (re)sedimentação identitária da Nação Mapuche. Dessa forma, a década de noventa introduz novos desafios para a luta, pois “se empieza a plantear el tema de la autonomia política y territorial del pueblo mapuche, y la exigencia de ser reconocidos como un “otro” distinto del resto de la sociedad chilena, con derechos que surgen de su particularidad”.

Essa diferença de visão, onde a natureza possui o direito a ser respeitada, onde a relação homem-natureza dá-se em harmonia, colide com os interesses das grandes empresas extrativistas e florestais, que veem no território mapuche grandes acúmulos de reservas naturais e, em especial, o potencial de exploração dos seus rios, de fontes energéticas e das suas reservas madeireiras. É no resultado do processo de estigmatização da cosmovisão mapuches que reside a perfeita desculpa para o estabelecimento das atividades extrativistas das transnacionais: face à representação do atraso, impedimento à modernização, chegam novas técnicas industriais sinalizando o desenvolvimento econômico e social de regiões rurais e/ou menos urbanizadas no país, com falta de ofertas e recursos de manufaturas e de mão-de-obra. Deste processo ideológico deriva o apoio dos populares nas cidades espalhadas pelo wallmapu, os quais almejam beneficiar das promessas do desenvolvimento.

De fato, não apenas os mapuches, mas muitas outras comunidades indígenas na América Latina estão em territórios de interesse das empresas transnacionais, o que tem acirrado conflitos e posto em causa as garantias dos direitos dos povos originários. Sob esta perspectiva foi aprovada pela ONU, em setembro de 2007, a Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas.

A percepção dos movimentos indígenas da necessidade de se buscar efetivação dos seus direitos e, acima de tudo, da autonomia dos seus territórios é patente. Um mês após a aprovação da Declaração pela ONU realizou-se, entre os dias 10 e 12 de outubro, o Encontro Mundial dos Povos Indígenas nas cidades de La Paz, Tiwanaku e Chimoré, na Bolívia. Dentre os objetivos estava o de se discutir a autonomia das terras indígenas como forma de proteção destas diante do modelo econômico global.

Esse encontro estabeleceu parâmetros de organização para os povos originários, e foi encerrado com a divulgação de uma Carta que estabelece 14 pontos comuns de reivindicação aos Estados Nacionais. Tal Carta apresenta clareza com relação ao atual estágio de gestão do capitalismo neoliberal e as consequências locais do seu modelo global, assim como complexifica esta questão aos antagonismos conceituais acerca da natureza e das diferentes formas de uso da terra entre a exploração em larga escala e o modo de vida dos povos originários:

Que a 515 años de opresión y dominación, aquí estamos, no han podido eliminarnos. Hemos enfrentado y resistido a las políticas de etnocidio, genocidio, colonización, destrucción y saqueo. La imposición de sistemas económicos como el capitalismo, caracterizado por el intervencionismo, las guerras y los desastres socio-ambientales, sistema que continúa amenazando nuestros modos de vida como pueblos.

Que como consecuencia de la política neoliberal de dominación de la naturaleza, de la búsqueda de ganancia fácil de la concentración del capital en pocas manos y la irracional explotación de los recursos naturales, nuestra Madre Tierra está herida de muerte, mientras los pueblos indígenas seguimos siendo desalojados de nuestros territorios. El planeta se está recalentando. Estamos viviendo un cambio climático sin precedentes, donde los desastres socioambientales son cada vez más fuertes y más frecuentes, donde todos sin excepción somos afectados y afectadas.

Que nos asecha una gran crisis energética, donde la Era del Petróleo está por concluir, sin que hayamos encontrado una energía alternativa limpia que la pueda sustituir en lãs cantidades necesarias para mantener a esa civilización occidental que nos ha hecho totalmente dependiente de los hidrocarburos.

Que esta situación pueda ser una amenaza que nos dejará expuestos al peligro que lãs políticas neoliberales e imperialistas desaten guerras por las últimas gotas del llamado oro negro y el oro azul, pero también pueda darnos la oportunidad de hacer de este nuevo milenio un milenio de la vida, un milenio del equilibrio y la complementariedad, sin tener que abusar de energías que destruyen a la Madre Tierra.

Que tanto los recursos naturales como las tierras y territorios que habitamos son nuestros por historia, por nacimiento, por derecho y por siempre, por lo que la libre determinación sobre éstos es fundamental para poder mantener nuestra vida, ciencias, sabidurías, espiritualidad, organización, medicinas y soberanía alimentaría.

Seria esse novo patamar de conscientização dos interesses que as transnacionais possuem sobre seus territórios um grande potencializador para o processo de repressão por parte do Estado?

O revisar da história permite-nos melhor compreender as permanências das linhas abissais no atual cenário da luta mapuche. É daí, talvez, que as marcas das políticas coloniais desvelem os fenômenos mais recentes do aguçado interesse de exploração destes territórios por setores do Estado e do Capital transnacional. Faz-se pertinente, portanto, questionar o que se esta a passar no Chile de agora, mas igualmente o quê do passado acabou por semear a conflituosa relação do projeto de Nação chileno e dos arcaísmos que essencializam a Nação Mapuche, resultando na legitimação de uma repressão estatal que parece não ter fim.

Baseado em texto de Fernanda Maria Vieira, J. Flávio Ferreira

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