Ser Guarani é fundamentalmente one’e guarani (falar guarani), oguata
(caminhar, migrar, ter a ética do oguata), ko’ygua
(ser camponês, um cultivador), tavaygua
(um agricultor que vive em uma aldeia), naicaciquéi
(sem cacique, uma sociedade sem estado), jopói
(praticar uma economia de reciprocidade) e ñembu’e
(pertencer a um povo de oração, em oração – palavra divina). Estas são as sete
características fundamentais na composição do ñande reko, ou seja, do modo de
ser guarani.
ÑEMBU’E –
PERTENCER A UM POVO DE ORAÇÃO
Ñembu’e faz parte da
concepção Guarani de que “a palavra é
tudo e tudo é palavra”. Um conceito-existência que está na base da
experiência antropológica, cosmológica e teológica.
O termo “palavra” (ayvu,
ñe’ë,
ä)
também significa voz, fala, linguagem, idioma, alma, nome, vida, origem,
personalidade. Constitui uma categoria das mais densas para explicar a maneira
como se “trama o modo de ser guarani”. A
indissociável relação entre palavra e alma leva Graciela Chamorro a concluir
que o Guarani “é capaz de compreender-se
e de compreender toda a sua vida, como experiências de palavra e atos de
dizer-se”.
Na tradição indígena, a
alma e o nome não são posses pessoais – a pessoa não tem o nome, não possui a
alma –, e, sim, tanto a alma quanto o nome indicam o que ela é, a “alma é o próprio ‘eu’ ”. As
expressões traduzidas por ‘alma’ em guarani designam o indivíduo em sua
integridade e nisso assemelham-se aos equivalentes hebraico e grego nephesh e psyquê.
Para “palavra-alma”, os termos que definem a relação são ñe’ë e ayvu, podendo
significar, igualmente, palavra e alma, e também no sentido de “minha palavra
sou eu” ou “minha alma sou e’’.
Graciela Chamorro recorre
a Montoya e aos registros etnográficos para demonstrar a “capacidade expressiva
singular” do termo “palavra” entre os Guarani: “Ñe’ë é expressar-se, é palavra, é linguagem. Tentar a palavra é jogá-la para
frente, ñeëäa. Refletir antes de
falar é jogar a palavra diante de si. Falar com ternura ou pôr querer no que se
diz é vestir as palavras, ñeë monde.
A palavra dita com ternura é palavra ainda não madura, ñeë aky. A palavra alegre é de olhos pequenos, ñeësai. Ñeë syry é a
palavra que sai rapidamente da boca, que escorrega. A palavra entrecortada é ñeëndóy, razão solta. Ser mudo ou
silenciar é comer as palavras, ñeëngu.
O segredo é palavra escondida, ñeë ñemï.
Palavra dura é a que se trava na garganta, ñeë
pyatä. Ñeë pyvoi é falar
desordenadamente. Palavra magra é o chamar alguém com psius, ñeë piru. O aturdir com palavras é
deixar o outro perdido, ñeë poromonkañy.
Falar timidamente é ter medo, ñeë kyhyje.
Palavra gorda, ñeë kyra, é mentira.
Resposta é a palavra que encara, ñeë
rovaicha. O falar ordinário é uma plantação de palavras, ñeëtyva. A palestra, o sermão, a
conversa é tornar-se palavra, ñemoñeë.
Rogar é articulado pela expressão “alquímica” ñeë marangatu, capaz de transformar o mal (marä) em algo bom (katu)
“.
A
imagética presente na Língua Guarani lembra as reflexões sobre os nomes e as
palavras de Walter Benjamin, presentes na teoria sobre o Drama Barroco Alemão,
que indicam a linguagem como o lugar das idéias, ou, ainda, como a “dimensão nomeadora da linguagem em
contraste com sua dimensão significativa e comunicativa”.
Comentando
a teoria Benjaminiana, Sérgio Paulo Rouanet fala da linguagem adamítica, que,
para Benjamin, desperta as coisas, chamando-as pelos seus nomes verdadeiros. Segundo Benjamin, “o nome transforma-se na palavra, mero
fragmento semântico, coisa entre coisas”, perdendo, por essa razão, a
capacidade de nomeá-las. “A idéia está
inscrita na ordem do Nome”.
Pesquisando
os Ache, Pierre Clastres diz que o canto dos caçadores designa “Um certo parentesco entre o homem e sua
linguagem: mais precisamente um parentesco tal que parece subsistir apenas no
homem primitivo. Isso equivale a dizer que, bem distante de todo exotismo, o
discurso ingênuo dos selvagens nos obriga a considerar o que os poetas e
pensadores são os únicos a não esquecer: que a linguagem não é um simples
instrumento, que o homem pode caminhar com ela, e que o Ocidente moderno perde
o sentido de seu valor pelo excesso de uso a que a submete. A linguagem do homem
civilizado tornou-se completamente exterior a ele, pois é para ele apenas um
puro meio de comunicação de informação. A qualidade do sentido e a quantidade
dos signos variam em sentido inverso. As culturas primitivas, ao contrário,
mais preocupadas em celebrar a linguagem do que em servir-se dela, souberam
manter com ela essa relação interior que é já em si mesma aliança com o
sagrado. Não há, para o homem primitivo, linguagem poética, pois sua linguagem
já é, em si mesma, um poema natural em que repousa o valor das palavras”.
Existem, ainda, outras tentativas de explicar a palavra guarani,
como, por exemplo, referir-se a ela como corpo, encorpar-se e encarnar-se. Para
Melià, os Guarani acreditavam que a alma não era algo recebido de forma
acabada, e sim, construída ao longo da vida. Essa construção se exterioriza
através da palavra. A “história da alma
guarani é a história da sua palavra, a série de palavras que formam o hino de
sua vida”.
OGUATA - A ÉTICA DO CAMINHAR
A busca pela "terra sem mal" tem sido apontada como motivo e razão da migração dos Guarani e como elemento constitutivo da construção do seu modo-de-ser. Nesta busca, inserem-se, também, as particularidades da economia do grupo, como a prática da horticultura e a reciprocidade, entre outras.
Assim, a terra se apresenta como espaço que deve ser caminhado. Oguata
é caminhar. Esse verbo sintetiza o etos guarani até os dias atuais. Uma terra
caminhada é um espaço cultivado, ocupado, humanizado. O pensamento mítico e
religioso dos Guarani integra na idéia criacional uma terra que se alarga e se
estende continuamente, o que supõe caminhar por ela, criar novos horizontes,
tomando posse desses espaços de modo humano e pleno.
Os Guarani estabeleceram-se nas florestas tropicais e
subtropicais dos vales dos grandes rios, ocupando as matas tropicais situadas ao longo dos rios Paraguai,
Paraná e Uruguai – incluindo os atuais estados brasileiros do Rio Grande do
Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Mato Grosso do Sul, além do oriente
paraguaio e boliviano, do nordeste argentino e do Uruguai –, provavelmente
motivados pelo crescimento demográfico e por prolongada seca que teria alterado
as condições de sobrevivência. Os que migraram para essas regiões teriam sido
os ascendentes dos tupi-guarani.
Dado o processo contínuo de diferenciação cultural, os Tupi e os Guarani separaram-se, originando duas tradições distintas. Os Tupi aclimataram-se no litoral quente do Atlântico, desenvolvendo uma tradição baseada na cultura da mandioca amarga. Os Guarani adaptaram-se ao clima temperado das matas subtropicais dos rios Paraná, Paraguai e Uruguai, desenvolvendo uma tradição baseada na cultura do milho, compondo, na bacia do Rio da Prata, sociedades denominadas “horticultores de floresta tropical”.
Dado o processo contínuo de diferenciação cultural, os Tupi e os Guarani separaram-se, originando duas tradições distintas. Os Tupi aclimataram-se no litoral quente do Atlântico, desenvolvendo uma tradição baseada na cultura da mandioca amarga. Os Guarani adaptaram-se ao clima temperado das matas subtropicais dos rios Paraná, Paraguai e Uruguai, desenvolvendo uma tradição baseada na cultura do milho, compondo, na bacia do Rio da Prata, sociedades denominadas “horticultores de floresta tropical”.
Na região
Platina, a área ocupada pelos Guarani era na maior parte limitada a oeste pelo
rio Paraguai, pelo menos pela parte de seu curso situada entre o paralelo 22, a
montante, e o paralelo 28, a jusante. A fronteira meridional encontrava-se um
pouco ao sul da confluência do Paraguai e do Paraná. As margens do Atlântico
constituíam o limite oriental, mais ou menos do porto de Paranaguá ao norte (paralelo
26) até a fronteira do Uruguai atual, outrora pátria dos índios Charrua
(paralelo 33). Temos assim duas linhas paralelas (o curso do Paraguai, o
litoral marinho), das quais basta ligar as extremidades para conhecer os
limites setentrional e meridional do território guarani. Esse quadrilátero de
aproximadamente 500.000 km não era integralmente ocupado pelos guaranis, uma
vez que outras tribos residiam nessa região principalmente os caingangue.
Pode-se avaliar em 350.000 km a superfície do território guarani.
De acordo
com Arno Kern, a Bacia Platina “se
caracteriza, do ponto de vista natural, por vários habitats com seus
respectivos biomas” sendo este complexo geográfico ocupado por diferentes
etnias cada uma delas detentora de espaços ecológicos específicos. Os grupos
vindos da Amazônia buscaram espaços semelhantes ao de suas origens,
estabelecendo suas aldeias nos vales quentes e úmidos, nas várzeas irrigadas
das florestas tropicais e subtropicais dos vales dos rios Paraguai, Paraná,
Uruguai e Jacuí, viabilizando a prática agrícola. Nas florestas de pinheiros do
planalto estabeleceram-se os Guaianás, inimigos dos Guarani. Nos campos do
Pampa, viviam Charruas e Minuanos.
A
expansão dos Guarani na Bacia Platina limitou-se às terras adequadas ao cultivo
e à forma de aproveitamento do espaço praticada por eles. Os campos abertos e
florestas de araucárias, como já foi mencionado, ficaram sob o domínio de
grupos caçadores, coletores e agricultores.
Os
séculos XVI e XVII, tempo da ocupação e colonização da América pelos europeus e,
conseqüentemente, da Região Platina, ofereciam dificuldades para novas
expansões: a terra das matas subtropicais estava esgotada e a população
alcançava a cifra aproximada de 2 milhões de habitantes. Juntamente com o estrangulamento
das terras cultiváveis, empecilho para novas migrações, encontrava-se a ação
depredadora dos colonos europeus, que se converteu no que Melià aponta ser “o mal maior e mais terrível que sobreveio à
terra guarani”.
O’ÑEE – FALAR GUARANI
Os
Guarani pertencem ao tronco lingüístico tupi-guarani, desenvolvido a partir do
tronco tupi mais antigo, e à tradição denominada na arqueologia de
tupi-guarani. São também genericamente identificados como “povos amazônicos”,
em razão do local de origem dos seus ancestrais, a Amazônia, onde entre os rios
Jiparaná e Aripuanã (afluentes do Rio Madeira) teriam se originado em torno de
cinco mil anos atrás. Este ambiente caracteriza-se por florestas entremeadas de
cerrados, aptos por isso mesmo, à caça e à coleta. Questões demográficas ao
longo dos dois mil anos seguintes teriam ocasionado a expansão do grupo, a
diversificação da protolíngua tupi e a modificação da cultura em geral,
chegando à incorporação da agricultura – plantação de tubérculos – e de cerâmica.
Ter-se-iam neolitizado.
Em levas
sucessivas os povos amazônicos percorreram o litoral atlântico, descendo até o
Rio da Prata e, no sentido do oriente atingiram os Andes, propiciando a difusão
da língua e da cultura material, ainda que não de modo uniforme.
A
migração paulatina ocorrida ao longo de 2500 anos fez com que os Guarani
difundissem sua língua por um grande território, sendo a figura do Karai (espécie
de liderança religiosa) fundamental na compreensão desse movimento migratório.
São necessárias as palavras do Karai e a força de sua oratória para levantar o
grupo de uma terra esgotada pelo cultivo. Através da busca de uma nova terra “a
palavra caminhava com o povo, pois o povo era levado por ela ao mesmo tempo em
que a levava consigo. Estar a caminho se tornou, assim, o núcleo dinamizador da
economia profética e da vivência religiosa do grupo.”
O
caminhar almeja uma terra e a terra guarani se compara a um corpo murmurante
que se estende e se alarga continuamente. Há um canto que diz: Yvy (o)ñemongo’i vaekue, “num passado-começo a terra balbuciava sua
palavra”. Nesse mesmo tempo (vaekue), balbuciava (brotava) sua palavra
também o milho (Itimby oñemongo’i vaekue).
Seu brotar é também um murmúrio, um ensaio do falar, do dizer-se, da palavra.
Brotar é mostrar-se, aparecer, chegar à existência, nascer. Itymby foi
registrado por Montoya como “rebentar”, “brotar”, “furar”. Seus exemplos falam
do milho que brota e de sementes que ficam carunchadas. Nos relatos Kaiová, o
milho – como outras plantas e animais – assume um papel ativo na cosmogonia
indígena.
O centro
da terra para os Guarani atuais significa o umbigo do mundo, o lugar onde tudo
começou, sendo, ainda, uma importante referência espacial. Estes termos (centro
da terra ou universo), nos registros jesuíticos, foram traduzidos como
“inferno” e “cemitério”. Assim, nos catecismos está escrito que o inferno fica
no meio interior da terra (yvy ypytépe,
ou igbi apiteripe), lugar habitado
pelo diabo (aña retä). Bolaños e
outros autores dos catecismos usavam essa expressão para traduzir a descida de
Jesus ao mundo dos mortos.
Tyapu, “trovão”, vincula-se a Tupã,
mas também representa o avô ou pai criador dos Guarani – Ñane Ramöi, Ñande Ru, Ñamandu, Hayapúva –, àquele que “troveja
ou que se mostra em ruído”. O instrumento musical mbaraka amplia o significado
de tyapu para ‘fala’, ‘palavra’ ou ‘mensagem’, que devem ser interpretadas
pelos xamãs. Assim se diz: ”como fala essa maracá” (oñe’ë pe mbaraka) como sinônimo de ‘soa maracá’.
Quando
portugueses e espanhóis chegaram à bacia Platina para dar início à colonização,
encontraram nestas terras o resultado de um processo milenar de produção e
reprodução cultural, ou seja, as populações falantes do guarani em diferentes
dialetos e possuidoras de uma certa homogeneidade cultural.
NAICACIQUÉI – INEXISTÊNCIA DE CHEFIA
Pesquisando
as culturas primevas ou arcaicas da América, Pierre Clastres defende a tese de
que estas eram sociedades que se opunham a uma chefia efetiva, a um poder que
se colocasse acima dos desejos e necessidades coletivas.
Excetuando
as altas culturas do México, da América Central e dos Andes, diz Clastres,
distribuídas ao longo do território americano encontrava-se um grande conjunto
de sociedades nas quais a detenção do poder, como a entendemos, inexistia, onde
se vê o político como um “campo fora de
toda coerção e de toda violência, fora de toda subordinação hierárquica, onde,
em uma palavra, não se dá uma relação comando-obediência”.
Segundo
Clastres, as características imprescindíveis das lideranças indígenas são
visíveis tanto no norte quanto no sul do continente. A liderança indígena se
faz:
1.
quando o chefe assume a função de “fazedor de paz”, de instância
moderadora do grupo, tal como é atestado pela divisão freqüente do poder em
civil e militar;
2.
quando o chefe é generoso com seus bens, não repelindo os
incessantes pedidos da comunidade. Caso isso acontecesse, cairia em descrédito;
3.
quando o chefe é bom orador. Somente um bom orador ascende à
chefia e granjeia a simpatia do grupo.
Parece a
Clastres que os grupos indígenas intuitivamente compreenderam que o poder é
essencialmente coerção e, por isso mesmo, colocaram-se em oposição a ele. Tal
atitude não pode, contudo, ser lida como uma inabilidade na resolução de
questões políticas e de poder, na medida em que pressentiram muito cedo que a
transcendência do poder encerra para o grupo um risco mortal, que o princípio
de uma autoridade exterior e criadora de sua própria legalidade é uma
contestação da própria cultura; foi a intuição dessa ameaça que determinou a
profundidade de sua filosofia política.
Se nas
sociedades de estado a palavra é o “direito” do poder, nas sociedades sem
estado ela é “dever” do poder. A chefia como cargo não confere ao chefe o
direito à palavra, ao contrário, as sociedades indígenas exigem de sua
liderança o domínio sobre as palavras, sendo a fala um imperativo ao chefe. O
silêncio incompatibiliza-se com a liderança.
Nas
sociedades sem Estado, regras e leis se inscrevem na ordem do corpo. São marcas
indeléveis a autorizar o pertencimento deste corpo ao grupo. Assim entende-se
os ritos de iniciação e essa “escritura” que marca o corpo. As sociedades
arcaicas são, sociedades de marca, são sociedades sem Estado, sociedades contra
o Estado. A marca sobre o corpo, igual sobre todos os corpos, enuncia: Tu não
terás o desejo do poder, nem desejarás ser submisso. E essa lei não-separada só
pode ser inscrita num espaço não-separado: o próprio corpo. Admirável
profundidade dos selvagens, que de antemão sabiam tudo isso, e procuravam, ao
preço de uma terrível crueldade, impedir o surgimento de uma crueldade ainda
mais terrível: a lei escrita sobre o corpo é uma lembrança inesquecível.
São
sociedades que possuem um chefe, que, por sua vez, não possui autoridade, não
ordena, não desenvolve instrumentos de coerção e não exige obediência. “Estranha à sua essência”, diz Clastres,
o chefe não possui autoridade, mas, como dito anteriormente, desenvolvendo as
habilidades, mantém-se como chefe enquanto o grupo assim o desejar. O chefe,
enquanto visto como tal resolve os conflitos que podem surgir entre indivíduos,
famílias, linhagens etc., ele só dispõe, para restabelecer a ordem e a
concórdia, do prestígio que lhe reconhece a sociedade. Mas evidentemente
prestígio não significa poder, e os meios que o chefe detém para realizar sua
tarefa de pacificador limitam-se ao uso exclusivo da palavra: não para arbitrar
entre as partes opostas, pois o chefe não é um juiz e não pode se permitir
tomar partido por um ou por outro; mas, para, armado apenas de sua eloqüência,
tentar persuadir as pessoas da necessidade de se apaziguar, de renunciar às
injúrias, de imitar os ancestrais que sempre viveram no bom entendimento.
Momentos
como esses são cruciais para a chefia. Alcançado o entendimento entre os
disputantes, o chefe mantém e confirma sua posição. O contrário demonstra sua
incapacidade persuasiva, abrindo espaço para resoluções violentas, sinônimo de
incapacidade em responder o que dele se espera, o que coloca em risco seu
prestígio.
Prestígio
este que, segundo Clastres, advém tão-somente de sua competência técnica, dons
oratórios, habilidades como caçador, capacidade de coordenar as atividades
guerreiras, ofensivas ou defensivas. E, de forma alguma, a sociedade deixa o
chefe ir além desse limite técnico, ela jamais deixa uma superioridade técnica
se transformar em autoridade política. Finalmente o chefe está a serviço da
sociedade, é a sociedade em si mesma o verdadeiro lugar do poder – que exerce
como tal sua autoridade sobre o chefe.
A guerra
surge como exceção. Tendo em vista a habilidade “técnica” de guerrear, durante
a expedição guerreira o chefe pode exercer o mínimo de autoridade. Entretanto,
terminada a guerra, o chefe volta a ser o chefe sem poder, independentemente do
resultado da batalha, pois a sociedade separa poder e prestígio, a glória de um
guerreiro vencedor e o comando que lhe é proibido exercer. O grupo tem clareza
de que a fonte mais apta para saciar a sede de prestígio de um guerreiro é a
guerra. Ao mesmo tempo, um chefe cujo prestígio está ligado à guerra não pode
conservá-lo e reforçá-lo senão na guerra: é uma espécie de fuga impulsiva para
frente que o faz querer organizar sem cessar expedições guerreiras das quais
ele conta retirar benefícios (simbólicos) aferentes à vitória. Enquanto seu
desejo de guerra corresponder à vontade geral da tribo, em particular dos
jovens para os quais a guerra é também o principal meio de adquirir prestígio,
enquanto a vontade do chefe não ultrapassar a da sociedade, as relações
habituais entre a segunda e a primeira manter-se-ão inalteradas.
No centro
da organização social dos Guarani, em especial, encontram-se, no mínimo, dois
tipos ou conceitos de liderança. O líder civil, pa’i, era pai de linhagem ou da família extensa, teýru, e passou para a história sendo
designado com o nome de “arawak”, “cacique”. O líder religioso, karai – referido nas crônicas como
feiticeiro, mago e chupador (por dominar a técnica da cura por sucção), foi
identificado pelos etnólogos como xamã.
JOPÓI – PRATICAR UMA ECONOMIA DE
RECIPROCIDADE
As
características jopói – reciprocidade –, ko’ygua – ser camponês, um
cultivador – e tavaygua – um agricultor que vive em uma aldeia – são melhor
entendidas em conjunto. Cabe lembrar que a reciprocidade – jopói – é um atributo essencial para o reconhecimento de uma liderança.
Em
Montoya, uma aldeia guarani pode compreender centenas de pessoas, distribuídas
em grandes habitações retangulares recobertas de folhas de palmeira. Cada uma
delas abriga uma grande família, que compreende os núcleos familiares formados
pelas filhas e netas; ela funciona como um grupo defensivo e ofensivo e é local
onde ocorre a maior parte das atividades de produção. Em certos casos, sessenta
núcleos familiares vivem sob o mesmo teto. Cada um ocupa um local determinado,
onde se estendem as redes de algodão ou de fibras de palmeira entre dois
pilares e se agrupam alguns móveis e utensílios, bancos ou escabelos, às vezes
ricamente esculpidos, grandes jarras para as bebidas fermentadas e os
ornamentos ou vários objetos, duas ou três cabaças entalhadas que comportam
recipientes, armas de caça ou de guerra, ferramentas rudimentares para o
artesanato, estacas e machados para os trabalhos nos campos.
Sociedades
como a Guarani são classificadas quanto à sua manutenção como “sociedades de
economia de subsistência”. Segundo Clastres, se levados em conta o domínio do
meio natural e sua adaptação às necessidades, falar de inferioridade técnica se
torna impossível. As sociedades primevas demonstram “uma capacidade de
satisfazer suas necessidades pelo menos igual àquela da qual se orgulha a
sociedade industrial e técnica. Isso equivale a dizer que todo grupo humano chega
a exercer, pela força, o mínimo necessário de dominação sobre o meio que
ocupa”.
O tempo
dedicado ao trabalho corresponde ao tempo exato para a obtenção do necessário
para a sobrevivência do grupo e, mesmo não estando preocupados em produzir
excedentes, estes ocorrem. São sociedades de abundância, e os relatos de época
confirmam esta realidade ao descreverem “a bela aparência dos adultos, a boa
saúde das numerosas crianças, a abundância e variedade dos recursos
alimentares”.
A vida
econômica dos grupos tupi-guarani baseava-se sobretudo na agricultura, e,
acessoriamente, na caça, na pesca e na coleta. Uma mesma área de cultivo era
utilizada por um período ininterrupto de quatro a seis anos. Em seguida, era
abandonada, por esgotar-se o solo ou, mais provavelmente, em virtude da invasão
do espaço destacado por uma vegetação parasitária de difícil eliminação. O
grosso do trabalho, efetuado pelos homens, consistia em arrotear, por meio de
um machado de pedra e com auxílio do fogo, a superfície necessária. Essa
tarefa, realizada no fim da estação das chuvas, mobilizava os homens durante um
ou dois meses. Quase todo o resto do processo agrícola – plantar, mondar,
colher –, em conformidade com a divisão sexual do trabalho, era executada pelas
mulheres.
Ainda, o
autor conclui que metade da população da aldeia (os homens) trabalhava em torno
de dois meses a cada quatro anos, dedicando-se, no tempo restante, à caça, à
pesca e à guerra.
Se tão
pouco tempo de trabalho é capaz de prover a aldeia, produzindo, inclusive, um
excedente, parece impróprio usar a expressão 'de subsistência' para falar deste
modelo de economia. A expressão carrega em si ares de negatividade sinônima de
carência, pobreza, ou, como diz Clastres, defeito, como se elas – as economias
– sofressem de um mal congênito. O uso do conceito deve ser necessariamente
positivado, ou seja, pensar em subsistência é pensar numa economia de
abundância, que abastece plenamente a sociedade.
Por que
essas economias não produzem mais, por que não dedicam mais tempo para as
atividades produtivas? Segundo Clastres, somente por meio da força se obtém a
produção de excedentes. Nas sociedades primevas, essa força coercitiva não
encontra espaço – vale lembrar do poder político. Para este autor, não existe o
desejo efetivo da acumulação de bens. Suas economias não são economias
políticas.
Para
ilustrar esse pensamento econômico, Clastres usa o machado de metal como
exemplo de objeto que causou muito impacto nas sociedades arcaicas americanas
por ocasião da colonização. A vantagem do machado de metal sobre o de pedra é
evidente demais para que nela nos detenhamos: podemos, no mesmo tempo, realizar
com o primeiro talvez dez vezes mais trabalho que com o segundo; ou então
executar o mesmo trabalho num tempo dez vezes menor. E, ao descobrirem a
superioridade produtiva dos machados dos homens brancos, os índios os
desejaram, não para produzirem mais no mesmo tempo, mas para produzirem a mesma
coisa num tempo dez vezes mais curto. Mas foi exatamente o contrário que se
verificou, pois, com os machados metálicos, irromperam no mundo primitivo dos
índios a violência, a força, o poder, impostos aos selvagens pelos civilizados
recém-chegados.
Para
Clastres, “a sociedade primitiva, primeira sociedade de abundância, não deixa
nenhum espaço para o desejo de superabundância”.
A
horticultura praticada pelos Guarani apresentava grande rendimento. Nas roças,
o milho era o produto de maior destaque (nos escritos de Montoya há notícia de
seis variedades de milho), bem como notícias de, entre as plantas cultivadas,
duas espécies de moranga, vinte de batata, seis de mandioca, seis de amendoim e
quatro de pimenta. A alimentação guarani era completada com a coleta de ervas,
frutos, mel, caça e pesca.
A
horticultura era praticada na mata. A subsistência/abundância do grupo
alicerçava-se na agricultura de coivara (derrubada e queima da mata). Segundo
Melià, a “terra humanizada” dos Guarani compreendia, além da selva e da roça,
um espaço habitável, uma casa, um pátio, uma aldeia. A mata preservada para a
prática da caça, da pesca e da coleta de mel e de frutas silvestres. Terra
especialmente fértil para os cultivos e, por fim, um lugar para a grande casa
comunal, com seu grande pátio aberto, ao redor do qual cultiva-se banana,
mamona, algodão e urucu. Os três espaços que servem para avaliar a boa terra
guarani são: o monte, a roça e a aldeia. Assim, “a selva é espaço da caça, da pesca e da coleta; a roça, o lugar do
cultivo; a aldeia, o lugar das casas, das festas e das reuniões”.
A
organização social dos Guarani tinha por base o te’ý – a família extensa –, constituída de uma linhagem patrilinear
ou grupo macrofamiliar, unido pelo parentesco, que habitava a casa comunal. O te’ýiru, pai de cada família,
constituía uma espécie de chefe da família extensa. O espaço vital em que os
diversos te’ýi conviviam era o tekoha.
Os tekoha podiam confederar-se, eventualmente, originando as guará. No tempo da conquista podem ser
precisadas 14 guára, que levam o nome de rios ou caciques: Cario, Carijó,
Tobatim, Guarambaré, Itatim, Paranayguá, Uruguayguá, Tape, Guayrá, Arechané,
Caaró, Tarumá, Chiriguano e Chadul ou Guarani das ilhas.
Texto de Maria Denise
Bortolini
Nenhum comentário:
Postar um comentário