segunda-feira, 1 de agosto de 2011

SE DEUS FOSSE JAGUAR

A cosmologia guarani contemporânea caracteriza-se por uma disjunção de figuras estreitamente articuladas em outros sistemas tupi-guarani: sangue e tabaco, guerreiro e xamã passam a opor-se diametralmente. Aqui chegamos ao que chamei de “desjaguarificação”: uma negação do canibalismo como condição geral do cosmos e mecanismo de reprodução social.

Essa disjunção atravessa vários domínios do pensamento guarani, a começar pela concepção da pessoa, onde encontramos uma dicotomia entre dois princípios anímicos que, simplificando, podem ser caracterizados como uma alma “divina” e outra, “animal”. A primeira é normalmente chamada de Ayvu ou Ñe’e e traduzida por alma-palavra. Sua origem é divina e cabe ao xamã determinar sua fonte durante a cerimônia de nominação. Por meio do canto, ele indaga das várias divindades a procedência da alma e o seu nome.

A essa alma pré-constituída celeste vem se agregar outra, denominada normalmente acygua, vocábulo que, segundo Nimuendaju, é um particípio de acy, cujo significado é “dor” e “vivaz, violento, vigoroso”; o acyguá é, portanto, ao mesmo tempo, o que dói e o que tem vigor. Há certa ambigüidade na literatura quanto à caracterização dessa alma: por vezes, ela aparece como uma alma-animal, regressiva, que responde pelas pulsões sexuais, o impulso violento e o desejo de comer carne; outras, como uma alma de um animal cujas qualidades determinam o caráter da pessoa, de tal modo que um acyguá de borboleta não oferece o mesmo perigo que o de um jaguar. No entanto, este último parece corresponder ao tipo-ideal que domina a simbologia do acyguá, e é o destino de todo ser humano que não se pauta pelas condutas religiosas e generosas.

A dicotomia de princípios anímicos expressa-se em duas figuras extremas da pessoa masculina guarani: de um lado, a daqueles que se deixam dominar pela alma animal e pelo desejo de comer carne crua, cuja sina é transformar-se em jaguar; de outro, a do asceta que busca em vida o estado de maturação-perfeição (aguyje), cujo destino é tornar-se imortal. Como mostra H. Clastres, essa dicotomia possui uma correspondência ética e alimentar: o primeiro é o caçador egoísta que come os animais abatidos na floresta para não ter de dividi-los; o segundo é o caçador generoso que dá toda a caça para os parentes, pois se abstém de carne. O vegetarianismo é uma condição essencial — junto com a dança e os cantos regados a cauim — para se juntar aos deuses: “devido a essa forma de vida”, contaram os Apapocuva a Nimuendaju, “seus corpos [dos grandes xamãs] se fizeram leves: o acyguá [...] era subjugado, enquanto o ayvucué tomava o caminho de onde viera: durante as danças de pajelança, suas almas abandonavam a terra e retornavam a Ñandecy [Nossa Mãe], Ñanderyqueý [Nosso Irmão mais Velho] ou Tupã. Por vezes, encontrava-se seu corpo morto, por vezes, eles ascendiam em seu corpo vivo”.

A mansidão, a generosidade, a ética alimentar antivenatória, os cantos que provêm das divindades, a participação nos rituais, tudo isso deve orientar a conduta do Guarani para que sua alma-palavra se imponha sobre sua alma-animal. Na morte, enfim, ocorre a disjunção definitiva entre esses dois componentes da pessoa. A alma-palavra (ayvu-kwe) volta para o céu após vencer alguns obstáculos, enquanto o acyguá torna-se um temível espectro, o anguéry. Essa dualidade póstuma encontra paralelo em vários grupos tupi-guarani da Amazônia, mas possui aqui uma permutação importante; a saber, o apagamento da função-canibal associada à morte e ao xamanismo.

Tomemos para fins comparativos o caso araweté em que temos também uma cosmologia verticalizada e uma ênfase na relação xamânica com as divindades. Os Araweté postulam a existência de uma só alma chamada ï, que designa tanto o princípio vital como a sombra projetada pelo corpo. Na morte, ela se divide em dois componentes: uma projeção póstuma da sombra (o espectro, ta’o we) e um espírito (também chamado ï) que vai para o céu. Esse espírito é, então, devorado e imortalizado pelos deuses, que são ditos “comedores de cru”, isto é, jaguares. O xamanismo araweté faz justamente a mediação entre os humanos e esses deuses-jaguares. Figura semelhante encontra-se entre os Asurini do Tocantins, no entanto, com um deslocamento interessante. Eles postulam uma única alma em vida chamada iunga, que é depositada pela divindade Mahira nas mulheres. Com a morte, ela se separa em um aspecto celeste e outro terrestre. O primeiro junta-se a Mahira em Tupana, o segundo torna-se um espectro chamado asonga, cognato do anhanga tupinambá, espírito canibal associado aos mortos. O espírito que vai para Tupana deixa de ter significação para os vivos, enquanto o asonga fica na Terra e torna-se um auxiliar dos sonhadores, tendo papel relevante no encontro dos pajés com o jaguar celeste, fonte última do poder xamânico.

Em ambos os casos, apesar das permutações, a função-jaguar está associada positivamente ao xamanismo. E é assim na maioria dos grupos da Amazônia, onde os xamãs mais poderosos são aqueles que têm, como espíritos familiares, temíveis predadores. No caso dos Guarani contemporâneos, contudo, rompeu-se essa articulação: o xamã é um anticanibal e os espíritos que lhe fornecem os cantos são as almas-divinas que habitam o “país dos mortos”, ou são elas mesmas divindades sem características predatórias. Quando o antropólogo Miguel Alberto Bartolomé foi iniciado por seu informante, o pajé chiripá Avá Ñembiara, este lhe disse para pensar no animal que acabara de matar, sem lhe dizer se isso era bom ou ruim. Em seguida, falou-lhe da dieta vegetariana que deveria seguir e instou-o a deixar-se reger apenas pelo amor. O canibalismo como modelo de relação com outrem parece ter sido substituído por outra forma relacional, cuja categoria central é o amor (mborayhu).

A disjunção entre xamanismo e predação, bem como a associação exclusiva do primeiro a uma alma divina imorredoura abriram caminho para uma transformação na noção de pessoas guarani e o surgimento do conceito de acyguá, essa alma-dor, animal e vigorosa, que representa o outro dos deuses e do desejo humano de imortalidade. O acyguá é, pois, o que nos prende a essa existência de infortúnios (teko achy) e nos impede de atingir a terra sem mal (ywy marã’ey). Alteridade constitutiva, a alma-animal deve ser negada e limitada por uma dieta antivenatória, uma estética (veja-se a produtividade dos conceitos de belo e adornado). A pessoa ideal não é aqui a do guerreiro, que ao matar sua vítima captura uma alma-outra que é fonte de conhecimento e criatividade, mas a do xamã que se desfaz de sua alteridade para voltar a ser divino, à imagem de um deus que não é um jaguar.


Baseado em texto de Carlos Fausto

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