Os pajés guarani dizem que o ser humano é, em sua origem, uma palavra sonhada. Quando chega a hora de dar a luz, o Verdadeiro Pai e a Verdadeira Mãe das palavras-alma dizem pra a que está por nascer: “Vá à terra. Eu farei que minha palavra circule por teus ossos e que tu lembres de mim no teu ser erguido”. Por um lado, esta palavra fundamenta a convicção guarani de que os seres humanos se constituem de uma porção divina e divinizadora, que mantém o ser humano na posição vertical. Ela é representada no nome ITUPARERA. Por outro lado, essa palavra integra os humanos ao cosmos e marca neles a sua condição de seres dependentes, representado no seu nome “selvagem”, nome do mato, HERAKA’AGUY. É digno de nota que a palavra não é recebida pronta, completa. Ela é um impulso inicial que deve ser desenvolvido ao longo da vida, por meio da dedicação e do esforço pessoais.
Mas esta tarefa de desenvolver a palavra divina em si e desenvolver-se nela coexiste com a tendência de descuido com a palavra divina. Então, o ser humano se divide, fica encurvado. Sobrevêm confusão, enfermidade, tristeza, inimizade, etc. Bifurca-se a palavra. De modo que a vida é marcada pela inestabilidade. De um lado, o otimismo de erguer-se como alguém por cujos ossos flui a Palavra, de crer poder adquirir-se grandeza de coração (PY’A GUASU), de plenificar-se na Palavra (ÑE’E AGYUJE), de alcançar a Palavra sem Mal (ÑE’E MARANE’Y). De outro, o pessimismo decorrente da ignorância, da ira e do ato de ofender.
Assim, na antropologia guarani, a Palavra é, por um lado, um numem, a alma, o próprio tornar-se pessoa. Por outro lado, ela é sua própria língua, o guarani.
A experiência com o português se impõe para muitos indígenas no âmbito da palavra lida e escrita. O Guarani domina no âmbito do falar e do escutar. Dos intelectuais da ciência guarani experimenta-se esse falar e escutar a palavra como ÑE’EENDU, enquanto que o ver a palavra como ÑE’EECHA, que, por sua vez, originam duas formas distintas de perceber, desenvolver e administrar a palavra. De modo que podem distinguir-se dois tipos de lideranças no âmbito da palavra. As OHENDUVA são as que alcançaram sua ciência por intermédio de outras pessoas (reconhecidas colmo ÑE’ENGATU: de boa palavra), seja ouvindo delas cantos, rezas, histórias ou mesmo as experiências do povo. As OHECHAVA são aquelas lideranças que fizeram uma experiência direta com a Palavra, contemplando-a num ato místico ou sendo inspiradas por ela, em sonhos.
Segundo a liderança intelectual guarani, é a maior ou menor predisposição e esforço para “ouvir” e “ver” a que permite à pessoa desenvolver-se na Palavra, que no fundo é desenvolver-se como pessoa. Via de regra, embora haja uma preferência teórica pelo “ver” como caminho para alcançar a Palavra e a maturidade, são raras as pessoas que se “esforçam” por alcançar “belas e boas palavras” por essa via. A maioria situa essa forma de conhecer no passado. Entende que esse caminho não é mais acessível, seja porque o meio ambiente – tão diferente do tradicional – o dificulta, seja porque os costumes adquiridos impedem que as pessoas desenvolvam sensibilidade para a contemplação.
O interessante é que tanto o “ver” como o “ouvir” convergem no “dizer” e no “dizer-se”. Assim, nas comunidades guarani, ainda que o “ver” pareça ser uma experiência mais individual, a pessoa que vê a Palavra é mais quando a comunica, quando faz do seu “nosso”, OÑOÑE’E. Isto é mais do que apenas “dizer”, um falar a respeito de, da Palavra; é um “dizer-se”, um falar onde quem fala é afetado pela Palavra que fala.
A experiência guarani de “ver” e “ouvir” a Palavra convergem ritualmente no ato de caminhar. Assim, numa das principais cerimônias guarani, homens recitam horas e horas a Palavra ouvida e aprendida de memória, enquanto caminham em círculo, seguindo os passos de um líder. Durante o andar, cada integrante rememora sua história pessoal e comunitária, ativa a memória coletiva, entra nela e mistura as histórias de sua vida com a dos seus antepassados. O guia declara versos de episódios míticos e aproxima o grupo de sua origem, ROGUATAMO ROÑEMBOYPY. O grupo de homens visualiza a terra pequenina. Ela vai crescendo adornada por um mando de neblina. Seres divinos e seres protetores fazem nela morada. Há dificuldades no lugar. Os celebrantes se tentam abrir caminhos no meio delas. Eles cruzam as diversas plataformas superpostas do universo e chegam ritualmente à morada de Nosso Pai e Nossa Mãe – Ñanderu e Ñandecy. Estes os recepcionam e lhes confia a tarefa de cultivar o bom modo de ser, celebrar as festas e proferir boas palavras.
Há nos grupos guarani quem diga que Ñanderu deu a eles a maracá e aos não-indígenas o kuatia jehaira (papel para escrever). Assim teriam ele estabelecido a diferença básica entre esses grupos: o mundo sonoro e musical dos guarani e o mundo da escrita dos não-indígenas.
Mas esta tarefa de desenvolver a palavra divina em si e desenvolver-se nela coexiste com a tendência de descuido com a palavra divina. Então, o ser humano se divide, fica encurvado. Sobrevêm confusão, enfermidade, tristeza, inimizade, etc. Bifurca-se a palavra. De modo que a vida é marcada pela inestabilidade. De um lado, o otimismo de erguer-se como alguém por cujos ossos flui a Palavra, de crer poder adquirir-se grandeza de coração (PY’A GUASU), de plenificar-se na Palavra (ÑE’E AGYUJE), de alcançar a Palavra sem Mal (ÑE’E MARANE’Y). De outro, o pessimismo decorrente da ignorância, da ira e do ato de ofender.
Assim, na antropologia guarani, a Palavra é, por um lado, um numem, a alma, o próprio tornar-se pessoa. Por outro lado, ela é sua própria língua, o guarani.
A experiência com o português se impõe para muitos indígenas no âmbito da palavra lida e escrita. O Guarani domina no âmbito do falar e do escutar. Dos intelectuais da ciência guarani experimenta-se esse falar e escutar a palavra como ÑE’EENDU, enquanto que o ver a palavra como ÑE’EECHA, que, por sua vez, originam duas formas distintas de perceber, desenvolver e administrar a palavra. De modo que podem distinguir-se dois tipos de lideranças no âmbito da palavra. As OHENDUVA são as que alcançaram sua ciência por intermédio de outras pessoas (reconhecidas colmo ÑE’ENGATU: de boa palavra), seja ouvindo delas cantos, rezas, histórias ou mesmo as experiências do povo. As OHECHAVA são aquelas lideranças que fizeram uma experiência direta com a Palavra, contemplando-a num ato místico ou sendo inspiradas por ela, em sonhos.
Segundo a liderança intelectual guarani, é a maior ou menor predisposição e esforço para “ouvir” e “ver” a que permite à pessoa desenvolver-se na Palavra, que no fundo é desenvolver-se como pessoa. Via de regra, embora haja uma preferência teórica pelo “ver” como caminho para alcançar a Palavra e a maturidade, são raras as pessoas que se “esforçam” por alcançar “belas e boas palavras” por essa via. A maioria situa essa forma de conhecer no passado. Entende que esse caminho não é mais acessível, seja porque o meio ambiente – tão diferente do tradicional – o dificulta, seja porque os costumes adquiridos impedem que as pessoas desenvolvam sensibilidade para a contemplação.
O interessante é que tanto o “ver” como o “ouvir” convergem no “dizer” e no “dizer-se”. Assim, nas comunidades guarani, ainda que o “ver” pareça ser uma experiência mais individual, a pessoa que vê a Palavra é mais quando a comunica, quando faz do seu “nosso”, OÑOÑE’E. Isto é mais do que apenas “dizer”, um falar a respeito de, da Palavra; é um “dizer-se”, um falar onde quem fala é afetado pela Palavra que fala.
A experiência guarani de “ver” e “ouvir” a Palavra convergem ritualmente no ato de caminhar. Assim, numa das principais cerimônias guarani, homens recitam horas e horas a Palavra ouvida e aprendida de memória, enquanto caminham em círculo, seguindo os passos de um líder. Durante o andar, cada integrante rememora sua história pessoal e comunitária, ativa a memória coletiva, entra nela e mistura as histórias de sua vida com a dos seus antepassados. O guia declara versos de episódios míticos e aproxima o grupo de sua origem, ROGUATAMO ROÑEMBOYPY. O grupo de homens visualiza a terra pequenina. Ela vai crescendo adornada por um mando de neblina. Seres divinos e seres protetores fazem nela morada. Há dificuldades no lugar. Os celebrantes se tentam abrir caminhos no meio delas. Eles cruzam as diversas plataformas superpostas do universo e chegam ritualmente à morada de Nosso Pai e Nossa Mãe – Ñanderu e Ñandecy. Estes os recepcionam e lhes confia a tarefa de cultivar o bom modo de ser, celebrar as festas e proferir boas palavras.
Há nos grupos guarani quem diga que Ñanderu deu a eles a maracá e aos não-indígenas o kuatia jehaira (papel para escrever). Assim teriam ele estabelecido a diferença básica entre esses grupos: o mundo sonoro e musical dos guarani e o mundo da escrita dos não-indígenas.
Baseado em texto de Graciela Chamorro.
Fico feliz com o seu retorno. Seu blog ajuda a todos que acreditam em um mundo melhor; Abya Yala é esse mundo. Que Ñanderu nos acolha. Graça Graúna
ResponderExcluirEste texto é uma grande lição,pois o mundo cada dia mais esquece a importância da palavra e seus efeitos...
ResponderExcluirObrigado por esta bela e profunda lição !