sexta-feira, 26 de março de 2010

MESSIANISMO INDÍGENA


Em tempos imemoriais, muito antes da invasão da América do Sul pelos europeus, no século XVI, a população Tupi-Guarani engajava-se periodicamente em extensa mobilização espacial, envolvendo dramáticos êxodos durante os quais mortes, fome, privações várias pontilhavam o caminho. Era a busca da TERRA SEM MAL - YVY MARA'EY. Esse destino messiânico foi talvez o maior responsável pela enorme dispersão geográfica dos Tupi-Guarani, desde a base oriental da Cordilheira dos Andes, descendo até o sul do que é hoje o Brasil, subindo a costa atlântica até o Pará e mais além no rio Amazonas. Numa interpretação original desse processo migratório, Pierre Clastres contrapõe sociedade igualitária ao surgimento do Estado e vê a religião Tupi-Guarani como um mecanismo de preservação da primeira e de solapamento do segundo.

Os movimentos messiânicos desses povos, ocorrendo em ciclos, correspondiam à confrontação entre a emergência de um governo centralizado, decorrente de crescimento e concentração populacional, e a rejeição dessa centralizaão de pode pelos valores igualitários dessas sociedades. Assim, quando um chefe político chegava a dominar várias aldeis e mostrava sinais de exercer certos privilégios, como o uso exclusivo da força, surgia um profeta capaz de mobilizar a população contra esse chefe, procurando outros lugares onde não houvesse dominação ou coerção, enfim uma terra sem males. O efeito disso era a fragmentação de uma grande unidade política e a reinstalação, em outro local, de comunidades politicamente autônomas, descentralizadas, onde a forma de governo era ditada pelo princípio da persuação e não de coerção. Esses ciclos de alterância entre centralização e descentralização, entre desigualdade social e iguallitarismo são vistos por Clastres como uma fuga à dominação e à exploração antes que erstas se implantassem definitivamente, uma luta da sociedade contra a possível emergência do Estado, luta essa que já se travava antes da chegada dos portugueses à costa atlântica.

Com o decorrer dos séculos, a dizimação maciça da população Tupinambá e outros Tupi-Guarani por doenças, escravidão, ação missionária coercitiva e outros cataclismas levaram a busca da terra sem mal a se tornar a busca da terra sem brancos.

Entretanto, os movimentos messiânicos indígenas não estão limitados aos Tupi-Guarani. Entre os Tükúna e os Krahó, por exemplo, o messianismo - a busca da terra prometida, a construção de uma nova era, a tentativa de erradicar da terra o pior dos males conhecidos, que é o homem branco e suas conseqüências - tem sido uma das armas com as quais as populações indígenas tentam combater os efeitos desastrosos do seu contato com a sociedade ocidental. Quando mais poderosos xamãs não conseguem dar conta de tantas doenças causadas por epidemias de gripe ou sarampo, quando a terra começa a encolher com o avanço de ondas de gente alienígen que destroem fauna, flora, homens e mulheres, quando a população se esvai pela mortalidade generalizada, pela necessidade de abandonar o grupo e ganhar o pão lá fora, quando intrusos vêm minar o sistema de crenças, então o cosmos está em crise e necessita de renovação. O messianismo é uma tentativa de renovar o mundo.

Através de cinco séculos, os povos indígenas do Brasil têm resistido tenazmente à morte. O longo processo de resistência, desde 1500, tem posto à prova as energias e determinação dos índios para sobreviver. Gigantescas pressões que vão desde matança intencional, transmissão de doenças, usurpação da terra e medidas mais sutis de desagregação, não têm sido suficientes para eliminar todos os povos indígenas nesse continente. O processo histórico da conquista abalou enormemente os povos indígenas, transformou suas culturas, mas não os eliminou.

Pode ser que suas culturas tenham sido desfiguradas - e isso tem ocorrido em vários casos -, mas sua identidade étnica permanece. Podem usar roupa, relógio de pulso, sandália havaiana e rádio a pilha... mas isso faz um índio se tornar branco tanto quanto um colar de contas, uma pulseira de fibra, uma rede de algodão ou uma panela de barro transformam um branco em índio. O que conta é o modo de ser, a visão de mundo, a atitude diante da vida, a sociedade, o universo cultural... e isso não se destrói tão facilmente. Nem mesmo onde missionários ortodoxos mantêm internados, submetendo crianças indígenas a um constante processo de endoutrinamento, o resultado é a erradicação da tradição étnica. Na verdade, é do Alto Xingu, no Amazonas, onde padres salesianos mantêm tais internatos, que vem um dos fortes clamores indígenas pela preservação da sua identidade.

A lição que os povos indígenas nos dão é que a violência do processo de conquista não aplainou a diversidade cultural e etnica. Eles nos mostram, na sua prática social e política, que a tradição não é uuma coisa fossilizada do passado que só pode persistir no isolamento. Ao contrário, a tradição é o conjunto de significados - crenças, valores, saberes - que um povo construiu e vai transformando de geração em geração. É esse processo de revitalização constante da tradição que dá a cada povo indígena a força para continuar a preservar a sua especificidade étnica no meio a todas as vicissitudes que advém do contato com a sociedade nacional que o rodeia. Essa tradição continuamente revivida é só deles e ninguém a pode tirar.

Baseado em texto de Alcida Rita Ramos

Um comentário:

  1. Herne, amigo(e tio hehehe), continue assim com o blog! Tem me ajudado bastante nalgumas reflexões atuais...

    Abração!
    óia que já já to indo ao Rio te fazer uma visita!

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