sábado, 20 de março de 2010

RECIPROCIDADE X ACUMULAÇÃO

As demandas econômicas de uma sociedade originária da América são, na realidade, minúsculas quando comparadas com as de uma sociedade industrial, que garante a própria continuidade gerando sempre novas demandas de mercado. O acervo material de uma sociedade indígena é relativamente limitado, mas isso não quer dizer "pobreza".

Como aponta o antropólogo Marshall Sahlins, o conceito de pobreza não se aplica a sociedades onde todos os membros são igualmente aquinhoados com número e tipo semelhantes de bens materiais. Isso implica que, assim como a riqueza, a pobreza é uma relação social, isto é, ela só tem significado em contraste com a não-pobreza. Alguém só é pobre porque contrasta com quem é rico. Ele ainda indica que o gosto pela acumulação de bens materiais não é universal, nem algo dado pela natureza, mas simplesmente um valor cultural característico das sociedades de consumo.

Tomando por base o esquema "produção - distribuição - consumo", nas sociedades indígenas, embora exista uma certa separação temporal e espacial entre essas três fases, elas envolvem as mesmas pessoas; não há PRODUTORES X CONSUMIDORES, e muito menos intermediários, comerciantes profissionais entre eles. O que um homem ou uma mulher produzem todos os demais fisicamente capazes podem produzir. A divisão do trabalho em sociedades indígenas raramente envolve especializaçaões que excedam considerações de sexo e idade.

O que é produzido em termos de alimentação ou de utilidades, desde utensílios domésticos a casas comunais ou canoas, tem seus canais regulamentares de distribuição, que são frequentemente as relações de parentesco dentro ou entre comunidades.

Objetos de uso pessoal são considerados propriedade de quem os fabricou, ou de quem os usa e para quem foram feitos: arcos e flechas, cestas de carregar mantimentos, redes de dormir, tangas, objetos de adorno pessoal, etc. Alguns deles podem ser utilizados por outras pessoas, mas não seria correto alguém se apropriar desses objetos sem consentimento do dono. Como todos têm praticamente o mesmo acervo de bens materiais, esse problema não é muito frequente e, quando ocorre, não tem as mesmas implicações do "lesa-propriedade", que a noção de roubo entre os ocidentais.

A idéia de roubo está ligada a uma o utra, que é a de ACUMULAÇÃO. O direito de proteção à propriedade privada é também o direito de adquirir e conservar tanta riqueza quanto for possível. É também o direito de punir a quem infringir essa prerrogativa. Numa sociedade indígena, a no ção de acumulação é tradicionalmente negada por meio de uma série de mecanismos culturalmente estabelecidos, como por exemplo a forte condenação à avareza como atitude anti-social; uma pessoa que tem, por exemplo, mais facas do que necessita e se recusa a distribuir o excedente é malvista e desprestigiada; um líder de aldeia que, sistematicamente, se recusa a ser generoso, isto é, a dar do que é seu quando lhe é pedido, acaba por perder sua credibilidade como líder e, consequentemente, a liderança. Seja como for, há várias maneiras de inibir tentativas de acumulação, ou de desigualdade social com base na aquisição material diferenciada.

Os bens que circulam pelas comunidades indígenas têm, em sua grande maioria, um valor de uso, que pode ser estritamente utilitário (como uma panela), ou religioso (como um chocalho), decorativo (como um colar de miçangas ou um cocar de penas). Portanto, são bens de uso que geralmente passam de mão em mão nas trocas rotineiras ou em rituais.

Segundo Goldman, "há pelo menos tres tipos de troca: uma com os brancos, que é comercial. A segunda é intertribal, em que se trocam especialidades. Cada tribo tem suas especialidades reconhecidas e seus produtos são procurados. A terceira, intratribal, é menos econômica e mais de caráter social, em que as pessoas adquirem objetos que elas mesmas podem facilmente fazer". Existe, portanto, várias modalidades de intercâmbio, dependendo da situação e do parceiro. O princípio da RECIPROCIDADE é a mola propulsora no processo de distribuição da produção dentro das sociedades indígenas. Seja numa prática imediata, do "toma-lá-dá-cá", ou por um processo a longo prazo, vinculando parceiros de troca durante semanas, anos ou mesmo a vida inteira.

A troca de bens e serviços exige a obrigação de dar, como também a de receber. Recusar-se a dar alguma coisa que alguém pede não é simplesmente uma grosseria, mas um ato de agressão. Mas negar-se a receber um presente também pode ter sérias conseqüências. É como se uma parte de q uem dá estivesse impregnada na coisa dada, e uma recusa a receber equivaleria a uma afronta à própria pessoa do doador. Em ambos os casos, quebra-se a cadeia de direitos e deveres mútuos que cimenta a vida comunitária e intercomunitária. Portanto, uma troca nunca é apenas isso: ela é, acima de tudo, uma relação social; pode firma alianças ou, se fracassar, desencadear hostilidade.

Essse princípio da reciprocidade que rege a distribuição interna numa sociedade indígena envolve não só os membros de uma mesma aldeia, mas também os de várias aldeias ou de várias sociedades. Ainda segundo Goldman "a áreia do noroeste amazônico é uma rede de trocas vastamente complexa. Objetos de todos tipo, utensílios domésticos, ornamentos, instrumentos musicais, objetos cerimonais, plantas, animais de estimação e substâncias mágicas estão em circulação constante de tribo a tribo. Os índios que estão em contato com os centros comerciais de colombianos ou brasileiros servem muitas vezes de intermediários, bombeando bens manufaturados para a corrente de trocas - panos, sal, anzóis, armas, terçados, além de ornamentos baratos".

Além da distribuição de alimentos e bens q ue tem lugar rotineiramente dentro de cada aldeia, existem as ocasiões rituais ou de festas em que trocas intercomunitárias ou mesmo intergrupais são efetuadas em contexto revestido de simbolismo: rituais de iniciação, de nominação, de morte, de primeiras colheitas e muitos outros. Nessas ocasiões, visitantes e anfitriões engajam-se em jogos, danças, cantos, trocas de notícias e intercâmbio de objetos e alimentos. Tudo isso num contexto de reciprocidade: o convidado de hoje será o anfitrião de amanhã, de modo que o ônus de tais eventos é, a longo prazo, repartido pela rede de comunidades envolvidas no circuito desses rituais.


Essa rede de circulação de bens através do sistema de troca, bem como a distibruição ampla e o consumo imediato de alimentos faz parte de um código de obrigações sociais que visa manter o sistema de partilhas - um dos aspectos fundamentais da organização comunitária das sociedades indígenas.

Baseado em texto de Alcida Rita Ramos.

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