quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

O PRINCIPEZINHO

Estava o principezinho sentado, com as mãos e a cabeça sobre os joelhos... e dormia. A seu lado, brinquedos esperavam: boneca de plumas, o lhama, a bolsa contendo pequeninas coisas. O sono era tão mineral que o principezinho se deixou carregar por dois estranhos e se naquela postura estava, naquela postura ficou. Desceram-no e depositaram-no com seus objetos ao pé da escarpa.
 
Pessoas experimentadas interferiram que ele se perdera na montanha e adormecera com fome. Outros deslumbraram no rosto semi-descoberto uma expressão de medo, como a de menino que presenciasse um bombardeiro aéreo. E sua atitude seria de quem se protege contra perigo eminente.

 
Mas observando bem, sentia-se a paz daquele sono... Que nem a picareta dos homens batendo na rocha viera a perturbar. Aquele sono que envolvia todo o menino em peculiar camada de silêncio, e o tornava indiferente ao desconforto da posição e ao frio da altura.

 
Sua condição de príncipe ressaltava das veste e adornos, que eram nobres. E se confirmava no lavor de ouro dos brinquedos. Cingia-lhe o pescoço um colar de pérolas. A boneca, tinha o ombro transpassado por um grande alfinete de prata.

 
Alçaram de novo o principezinho e levaram-no para a cidade grande, onde é hoje objeto de pasmo geral. Continua dormindo. Todo barulho da Terra não faria essa criança acordar. Dorme há 500 anos. Desde o dia que os pais a colocaram a uma altura de 5.000 metros, protegendo-lhe o sono com amuletos. É um príncipe da nação dos Incas.

 
Que maravilhoso acaso foi esse, de gente rústica, há trinta anos a procura de um tesouro, deparar com seu pequeno túmulo congelado. O gelo conservara, pois, por sua simples virtude, no alto de um pico chileno, a criança nascida quando não existiam nem Pizarro, nem Chile, nem Brasil, nem América...

 
Foi-se o glorioso império dos incas com sua pompa, e nos deixou apenas formas artísticas, modeladas por arquitetos, escultores, joalheiros e tecelões. Mas o menininho, acocorado e dormindo o mesmo sono iniciado há 5 séculos, ai está agora a cativar-nos com seu mistério.

Envelhecemos depressa... No tempo de uma criança dormindo, o império espanhol na América se inaugura e se faz escombro... e o português também. Ela ainda não acordou e já nasceram e morrem Camões, Cervantes, Shakespeare, Hassine, São Vicente de Paula, Newton.. E vem os direitos dos homens, e surgem teorias novas e novas guerras.

 
Em seu sono infinito, o menino passou pelos homens e suas obras, por instituições, idéias, sonhos, vidas e mortes, sempre dormindo em postura humilde, cercado de ídolos, cachos de cabelos, dentes de leite. Nada mudou para ele. O mundo é, talvez, um sonhar acordado.

Dorme menininho... dorme...



Carlos Drummond de Andrade

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