sábado, 23 de agosto de 2014

CORPO ÑANDEREKO - O JEITO DE SER GUARANI


A arte do corpo mbyá-guarani se desenvolve no tekoa, lugar onde se pode viver e agir conforme seus próprios costumes, leis, tradição e sabedoria, sendo, pois, necessário compreender sua constituição, organizada simetricamente no plano da relação natureza-cultura, metáfora fundadora da sociedade guarani.

No início dos tempos, Nhanderu Ypy (Pai Primeiro) criou uma mulher Nhandesy Ypy (Mãe Primeira) que gerou dois gêmeos: Kuaray (Sol) e Jasy (Lua). Nesse começo, todos os seres vivos eram humanos, porém num dado momento, de acordo com suas ações, grupos foram (trans)formados em vegetais e animais, surgindo então, outros núcleos familiares. Esses núcleos familiares – humanos, vegetais e animais – convivem no mesmo espaço-tempo – o Ara Ypycircundados pelos Espíritos e Divindades. Esses Espíritos e Divindades vivem no espaço entre os núcleos, energizando essa rede. Como agentes operadores do universo cosmológico guarani, materializados na fumaça aspergida pelo petÿngua – cachimbo guarani –, provocam relações de interação, resultando em diferentes elaborações criativas.

Se os humanos veem-se como humanos e são vistos como não-humanos – como animais ou espíritos – pelos não-humanos, então, “os animais devem necessariamente se ver como humanos. Se todos têm almas, ninguém é idêntico a si. Se tudo pode ser humano, então nada é humano inequivocamente”. Dizer que animais e espíritos são gente é dizer que são pessoas, é atribuir aos não-humanos capacidades de intencionalidade consciente e de agência. Tais capacidades são reificadas na alma ou espírito. “É sujeito quem tem alma e tem alma quem é capaz de um ponto de vista”. O ponto de vista cria o sujeito e será sujeito quem se encontrar ativado ou agenciado pelo ponto de vista – a perspectiva cria o sujeito (Viveiros de Castro, 2002). O perspectivismo, concebido por Viveiros de Castro, é um conceito que qualifica um aspecto muito característico de várias, senão todas, as cosmologias indígenas.

O esquema de origem do povo Guarani corrobora o perspectivismo apontado por Viveiros de Castro. Trata-se da noção de que o mundo é povoado de muitas espécies e seres dotados de consciência e de cultura e de que cada uma dessas espécies vê a si mesma e às demais espécies de modo bastante particular: cada uma se vê como humana, vendo todas as demais como animais ou espíritos. Todo ser que ocupa vicariamente o ponto de vista de referência, estando em posição de sujeito, apreende-se sob a espécie de humanidade.

A humanidade é menos o nome de uma substância e muito mais um tipo de relação que todo ente tem consigo mesmo. Significa que toda espécie vê a si mesma como humana. Significa que o que é humano é o "se ver", muito mais do que aquilo que se está vendo. É o pronome reflexivo que define a humanidade. Ao se ver, todo sujeito vê-se como humano. Nesse sentido, a humanidade também é uma relação. Para Viveiros de Castro, sujeitos e coisas não existem por si mesmos, mas sempre a partir da relação em que estão inseridos. A relação vem antes da substância e, portanto, os sujeitos e os objetos são, antes de tudo, efeitos das relações em que estão localizados e assim se definem, redefinem, se produzem e se destroem na medida em que as relações que os constituem mudam.

No entanto, essa é uma tradução apontada por Viveiros de Castro e Bruno Latour. O eixo epistemológico da distinção clássica entre natureza e cultura defendida por Lévi-Strauss, parte da compreensão de que tudo que é universal no homem corresponde à ordem de natureza e se caracteriza pela espontaneidade, enquanto tudo que está sujeito a uma norma pertence à cultura e apresenta os atributos de relatividade e particularidade, portanto recebe as interferências das diferenças conjunturais, étnicas e simbólicas de cada povo, do contexto social e de outros fatores, como o econômico, o político e o ideológico. Lévi-Strauss observou que, para os “selvagens”, a humanidade cessa nas fronteiras dos grupos, ao mostrar que eles faziam as mesmas distinções ao se considerarem como “humanos verdadeiros”. Para o autor, eles distinguiam a natureza da cultura. A universalidade da distinção cultural entre natureza e cultura atestava a universalidade da cultura como natureza do humano.

Para Hélène Clastres, a cultura é a marca do sobrenatural na Terra imperfeita, o signo de uma eleição que separa os homens da animalidade. Os ritos religiosos dos Guarani, a gesta de seus heróis míticos, são governados pela crença de que o homem pode ascender à imortalidade sem passar pela prova da morte, e que depende de cada um a boa escolha de sua vida, o que possibilitará o alcance da Terra Sem Mal.

Serem as testemunhas dos deuses na terra má faz com que os homens existam na ambiguidade. Habitantes da terra imperfeita, eles mesmos são imperfeitos, sujeitos às leis da natureza – nascem, geram, morrem. Por outro lado, separam-se do resto dos seres vivos pela cultura, isto é, pelo reconhecimento de uma força necessária de outro tipo, sobrenatural (CLASTRES, H., 2007).

José Savio Leopoldi, por sua vez, compreende que a fala marca a distinção entre os homens e os animais. A fala é privilégio exclusivo dos humanos. Ainda que possam comunicar-se por outras vias, os animais não falam, ou seja, não usam palavras com acepções específicas, que navegam pelas abstrações e simbolismo inerentes à teia de significados ao que se convencionou chamar cultura. Vale ressaltar, entretanto, que se considerarmos a perspectiva dos índios que concebem humanos e animais como parte de um mesmo universo cultural, onde estabelecem uma relação intrínseca, o som que os animais emitem pode ser compreendido como uma forma de comunicação tão significativa quanto a fala humana.

No mito de origem do povo Guarani, Kuaray (Sol) e seu irmão gêmeo Jasy (Lua) presenciaram, no ventre da mãe (Nhandesy Ypy), sua morte. Ao percorrer as trilhas da floresta à procura do marido (Nhanderu Ypy) que havia deixando sua criação, a Terra, foi comida pelas onças esfomeadas. Seus filhos, depois de crescidos, resolveram vingar a morte da mãe: construíram armadilhas e mataram quase todas as onças, deixando somente uma, que estava prenha, garantindo a continuidade da espécie, e consequentemente, a manutenção do estado de alerta frente os desafios da Terra Com Mal. Kuaray, após inúmeras aventuras vividas sobre a Terra com seu irmão Jasy, decidiu deixá-la para ir ao encontro de seu pai, que vivia em outro espaço cosmológico, o Ara Ypy – o universo, o tempo/espaço guarani. Sua preparação para isso consistiu em jejuar, dançar e rezar até sentir-se suficientemente leve, de modo a poder alcançar este tempo/espaço, caminho aberto por uma sequência de flechas lançadas por Kuaray. O Sol, Kuaray, que vem do leste, orienta a crença guarani, é como uma luz que circula por toda a Terra, iluminando e abrindo o caminho para todos trilhar. Assim, esse mito de origem funda o nhanderekó (jeito de ser guarani): a trilha é repleta de armadilhas, sendo necessário jejuar, dançar e rezar para manter o corpo em estado de alerta, e somente desse modo o corpo estará autorizado a receber a luz que iluminará e abrirá o caminho de encontro ao Pai (Nhanderu), que vive na Terra Sem Mal.

A importância dos mais velhos, para os Guarani, é explícita na refeição matinal: momento de partilha em que o mais velho, após ouvir as histórias dos mais novos, orienta o melhor caminho a seguir, caminho esse que possibilitará a alegria – sair pela mata, visitar um parente em outra aldeia, ir à cidade, procurar outro lugar para morar, entre outros desejos – simbolizando uma ideia de movimento orientado. As andanças guarani, que requerem a orientação dos mais velhos, que, por sua vez, foram orientados por Nhanderu: é preciso estar atento, pois na mata vivem os Espíritos que controlam as espécies de bichos e os elementos da natureza. É também o lugar de possíveis encontros que põem em risco a vida das pessoas.

Um casal de deuses primeiros estabelece com os humanos uma relação afetivamente parental. Corpos e nomes, almas e ações, o eu e o outro se interpenetram, mergulhados em um mesmo meio pré-subjetivo e pré-objetivo, meio esse cujo fim a mitologia se propõe a contar. Os animais e outros seres do cosmo se encontram na qualidade de sujeito. Todos se assemelham.

Do ponto de vista de sua qualidade de sujeito, de subjetividade, eles são idênticos, sejam animais, plantas ou espíritos, se diferenciam por sua fisicalidade, pelo mundo de relações que lhe oferecem as pesquisas de seus corpos de espécie (Viveiros de Castro, 2006).

Os deuses, mais do que todos, são como os humanos, pessoas corpóreas, vivas e atuantes. Essa similitude, não apenas de aspectos, mas de destinos e relações, sugere aos humanos serem como os deuses, em perfeição interior. É dessa troca contínua de afetos e afecções que emana a arte do corpo nhanderekó experimentada no tekoa e apresentada no museu.


Baseado em texto de Maria Cristina Rezende de Campos –
“A arte do corpo mbyá-guarani: processos de negociação, patrimonialização e circulação de memória”

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