domingo, 2 de março de 2014

OURO VERMELHO DE MINAS GERAIS

O primeiro nome das terras de Minas Gerais, no início do século XVIII, foi Minas dos Cataguases, uma referência ao grupo indígena de procedência Jê que habitava vastas regiões dos sertões. No entanto, são raras as pesquisas sobre a história dos povos indígenas. O genocídio promovido pelos bandeirantes – que teriam exterminado toda a população nativa – serviu como justificativa habitual dos historiadores para a falta de informações. Chacinados pela violência dessas expedições, os índios teriam desaparecido.

Mas há evidências incontestáveis da permanência de vários grupos indígenas ao longo de todo o período colonial, demonstrando que eles jamais foram extintos, como afirmava essa versão tradicional. Se a história de Minas é relacionada à busca de riquezas minerais e à Inconfidência Mineira, ela também esteve essencialmente associada aos índios – o “ouro vermelho”, como a eles se referiam os colonizadores. Afinal, a história de Minas é também a crônica de uma guerra silenciosa e de incontáveis embates entre colonos e índios nos sertões e nas vilas.

Gerações de historiadores têm sido instigadas a compreender o movimento da Inconfidência Mineira. No entanto, é estranho que a alegação do governador Luís Antônio Furtado de Mendonça, o visconde de Barbacena (1788-97), no episódio da prisão dos inconfidentes jamais tenha provocado curiosidade. Ao descobrir uma conspiração que planejava seu assassinato e a declaração de uma república independente, o governador articulou uma armação. Apressou-se em reforçar a presença das forças militares em pontos estratégicos da Capitania das Minas Gerais. Para evitar suspeitas, espalhou a notícia de que índios hostis tinham sido vistos ao longo da principal rota de fuga da capitania, o que deu a ele a justificativa necessária para reforçar as tropas de patrulha. Mendonça calculou que os moradores do distrito mineiro, acostumados a ver soldados de prontidão para controlar índios rebeldes, permaneceriam alheios aos seus motivos particulares. O que ele realmente queria – e conseguiu – era que os rebeldes conspiradores fossem presos rapidamente.

O papel dos índios nesse momento histórico decisivo levanta uma questão importante. Por que o policiamento dos índios serviu ao governador como uma desculpa plausível para a movimentação das tropas portuguesas? Ora, durante toda a era colonial, os habitantes de Minas Gerais acreditavam não somente que índios poderiam ser avistados ao longo do Caminho Novo, mas que muitos índios e seus descendentes viviam nas vilas e povoações da capitania. Imaginavam ainda que outros tantos – a maioria, canibais – permaneciam escondidos nas florestas circunvizinhas.

Na segunda metade do século XVIII, os mineiros estavam convencidos de que a presença de índios na periferia dos assentamentos do distrito das minas prejudicava a descoberta de novos veios de ouro, esmeraldas e diamantes. Acreditavam que a conquista dessas terras distantes pelas entradas e bandeiras devolveria a Minas Gerais a grandeza que se esvaía rapidamente com a exaustão de seus grandes tesouros aluviais. E que o único entrave era, justamente, a presença dos índios que “infestavam” os sertões. Em função dessas crenças, sucessivos governadores de Minas adotaram a política de patrocinar ou apoiar a iniciativa de colonos na organização de expedições armadas para conquistar o gentio. Durante a segunda metade do século XVIII, dezenas de bandeiras devassaram todo o território, em uma guerra não-declarada que afugentou, exterminou, aprisionou e escravizou populações indígenas de diversas procedências étnicas. Criavam-se, assim, condições para a apropriação e a exploração das terras que se tornaram uma das maiores benesses para participantes dessas campanhas. A violência contra os índios não ocorreu apenas no início da corrida do ouro, como imaginaram alguns, mas persistiu ao longo de todo o século XVIII.

É verdade que os diversos povos nativos da região – incluindo Coroado, Puri, Botocudo, Kamakã, Pataxó, Maxakali, Caiapó, entre outros – encontraram-se, no fim, em minoria de armas e homens, atacados por doenças e obrigados a se deslocarem continuamente, em face da diminuição da terra e dos recursos naturais. Mesmo assim, eles lutaram tenazmente, sobretudo no caso dos caiapós no oeste e dos botocudos no leste da capitania, em territórios de grande interesse do poder colonial.

Entre 1760 e 1808, o ano em que o príncipe regente João declarou guerra ofensiva aos botocudos, ato que oficializou meio século de conflitos, 85 embates violentos no sertão leste foram registrados nos diários do governo da capitania. Quase metade dos incidentes ocorreu na década de 1760, período em que as operações militares contra os índios atingiram o auge sob a batuta do governador Diogo Lobo da Silva (1763-68) e de seu sucessor, José Luís de Meneses Abranches Castello Branco e Noronha, o conde de Valadares (1768-73).
A política indigenista de Lobo da Silva indicava que, no caso de haver qualquer mínima resistência por parte dos indígenas – o que quase sempre ocorria –, era permitido “proceder a violência indispensável e sujeitá-los”. Os índios seriam declarados inimigos dos portugueses e, por isso, “merecedores do castigo competente, a pô-los na predita obediência”. Com esta posição, o governador declarou a “Guerra Justa” contra os índios, reafirmada pelos seus sucessores e oficializada, em 13 de maio de 1808, pelo príncipe regente. A negação da responsabilidade dos colonos pelos conflitos com os povos indígenas tornou-se um tema da história da conquista de todas as Américas. A versão portuguesa do conflito no sertão mineiro não constitui exceção. Fontes documentais submetidas a uma análise criteriosa revelam que as lutas entre os colonos e os índios ocorreram em número maior do que sugere a versão oficial. Para os portugueses, a violência endêmica nas florestas assumiu o caráter de uma competição permanente entre civilização e barbárie, o que exigia um avanço militar organizado sobre o território indígena para combater os canibais irracionais, na forma das entradas e bandeiras. No entanto, os incidentes reportados – atribuídos, quase sem exceção, à selvageria dos índios – continham evidências também da responsabilidade dos próprios posseiros. Apesar das restrições da Coroa, estes continuavam a invadir, lenta mas inexoravelmente, as terras, o que levou a uma reação imediata e vigorosa dos índios. Se o comportamento português não refletia na prática o discurso civilizador, a resposta dos nativos também não se caracterizava pela aceitação passiva da ocupação de seus territórios. No fim, torna-se evidente que as bandeiras levantaram a resistência dos índios tanto quanto os assentamentos de colonos posseiros.

Depois de enfrentar conflitos violentos nos sertões, muitos índios foram aprisionados e levados para as vilas e arraiais, prestando-se como mão-de-obra para a lavra mineral, para o trabalho agrícola ou para serviços domésticos, ora na condição de administrados, ora na de escravos – quando esta situação não se confundia. Em vista das restrições legais à escravização de indígenas, previstas em uma série de leis, os colonos reproduziram a prática secular da “administração”. Tal costume significava que assumiam a instrução particular dos índios na fé cristã. De fato, com o pretexto de catequizar, obtinham a prerrogativa de exercer controle sobre eles sem que isso pudesse ser caracterizado como escravidão. Contornavam, assim, problemas de ordem jurídica e moral e mantinham as relações escravistas.

De qualquer forma, se a prerrogativa da administração foi uma estratégia para burlar a legislação colonial que garantia a liberdade aos índios, tal prática não foi aceita sem resistência. Depois de 1758, a política do marquês de Pombal agravou ainda mais o impasse em relação à emancipação indígena. A repercussão dessa medida abriu um precedente fabuloso para que os índios e seus descendentes mestiços sob condição jurídica incerta – na posição de “administrados”, enredados entre a escravidão e a liberdade – acionassem a justiça colonial em defesa de seus direitos. Para se proteger do cativeiro, muitos moveram “ações de liberdade” contra seus administradores em várias regiões de Minas Gerais, e diversos julgamentos foram levados a cabo. Evocando sua origem indígena diante dos juízes, eles reconstruíram sua identidade. Em Minas dos Cataguases, muitos índios coloniais foram reconhecidos como herdeiros de um passado indígena, rompendo assim os grilhões da escravidão.

Os colonos que mais resistiam a conceder a liberdade aos índios sob sua administração alegavam que eles eram filhos de mães escravas. Em 1766, por exemplo, uma índia chamada Caterina Florência apresentou uma ação de liberdade contra seu senhor, Dr. Francisco Pais de Oliveira Leite. Este apresentou uma contestação, negando-se a reconhecer a “naturalidade de Caterina Florência, por se chamar esta de nação índia”. Para alívio da mulher, seu senhor não apresentou o registro de batismo, e diante da falta da documentação, em conformidade com a lei, cabia ao juiz proceder à “inspeção ocular”. Na prática, o juiz considerava a aparência física para julgar a ascendência étnica. Naquele caso, ficou convencido da “qualidade de índia” de Caterina e deu despacho favorável: ela “não poderia ser consternada ao cativeiro”. Pode-se deduzir desse parecer que as características físicas, devidamente exploradas pelos indígenas e seus descendentes, foram atributos de que lançaram mão para se beneficiarem, e dos quais souberam tirar todo proveito.

No fim, a história que conhecemos de Minas Gerais, umas das mais estudadas pela historiografia brasileira, não é mais a mesma. Pela perspectiva da história indígena, um novo cenário é revelado a partir da atuação dos índios, seja nas matas mais recônditas, seja nos centros urbanizados. O reconhecimento do devido lugar que as populações indígenas ocuparam na história de Minas colonial, uma história em que raramente aparecem – e, quando muito, como coadjuvantes de outros atores sociais –, é imperativo. Não é fortuito que Minas Gerais tenha sido batizada desde as primeiras horas de “Minas dos Cataguases” e que o seu ocaso tenha sido a deflagração da guerra contra os botocudos.

Texto de Maria Leônia Chaves de Resende e Hal Langfur

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